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O relatório de 2024 do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) mostra crescimento do consumo de bebidas alcoólicas no Brasil entre homens a partir de 55 anos, com maior incidência de mortes por AVC e doenças do fígado nessa faixa-etária. E as novas gerações? Os mais jovens estão bebendo menos?O que o relatório de 2024 da Organização Mundial da Saúde mostra que houve foi uma redução no consumo de álcool tanto no Brasil, se a gente compara com anos anteriores, quanto em outros países. Mas esses números ainda são preocupantes. Há uma tendência crescente quanto aos transtornos por uso de substâncias, não só o álcool, mas também outras drogas. Um dado que chama a atenção, além da faixa etária que você destaca, é com relação a adolescentes: 23,5% de todos os jovens entre 15 e 19 anos se declaram bebedores atuais. Se a gente for olhar esses dados no Brasil, dos que bebem nessa faixa-etária, 43,3% o fazem de forma abusiva, enquanto 8,4% consomem de maneira pesada e contínua. Esse é um dado preocupante porque as pessoas na faixa dos 50 anos podem recorrer a um tratamento e a partir daí algo diferente acontece em sua vida. Ele pode encontrar outras formas de responder diante desse sofrimento. O que é preocupante nesse momento atual é que esses jovens fazem uso abusivo é que a gente vê casos como o de um trote recente em que jovens fizeram uso abusivo e foram parar em coma alcoólico no hospital.
Esse é um uso muito arriscado e que pode levar à morte. Eu chamo a atenção aí para outras formas de intervenção da sociedade. Levar para a educação, para a família. Convocar a sociedade para debater isso, que vem aumentando em nossa época atual
Psicanalista do Cetad, Carla Fernades fala sobre o vício do álcool
| Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE
O relatório do Cisa também aponta o aumento de mortes violentas após o consumo de álcool entre homens com até 34 anos…Seria interessante avaliar essa questão da violência junto com outros fatores. A gente não pode fazer uma relação de causa e efeito em que o uso da bebida alcoólica levaria necessariamente alguém a cometer atos violentos. É claro que a gente sabe que se essa pessoa vive em um contexto que possa favorecer esse comportamento violento, que possa favorecer essa conduta, o uso do álcool vai ser algo a dar um start nisso aí que já está lá, já está posto. Se a pessoa não fizer uso da substância, por exemplo, poderia não agir de forma agressiva. Essas são questões que realmente preocupam, mas que precisam ser avaliadas caso a caso para que não haja também uma relação de causa e efeito. A gente sabe que há pessoas com tendência a agir de forma mais agressiva quando estão sob o efeito de substâncias. Mas quando a gente se aproxima e vê o que se passa na vida de cada um, enxerga que há ali um sofrimento intenso, de situações que não são elaboradas de uma outra maneira, aí sim essa pessoa vai fazer o que a gente chama de passar ao ato.Muitos profissionais de saúde defendem a política de redução de danos. Talvez pela crença de que a pessoa não vai parar de beber, mas pode ter um certo controle. Essa abordagem é uma boa ideia?Sim. Essa é uma política que inclusive o Cetad trabalha desde o início. Não podemos pensar apenas na lógica da abstinência, a não ser que a própria pessoa queira ficar abstinente. Isso vai da proposta de cada um dentro do percurso do tratamento. A gente entende que o uso de substância, por ser algo muito complexo, com muitos fatores, não dá para exigir que essa pessoa pare de usar a substância. Mas dá para, junto com ela, construir uma forma que possibilite continuar esse uso sem trazer danos maiores para a vida dela. Se a gente for pensar por exemplo no uso do álcool, no início o Cetad fazia algumas campanhas que eram muito interessantes nos postos de gasolina. Muito antes da proibição do uso do álcool antes de dirigir um automóvel, o Cetad fazia essa discussão com as pessoas que estavam no posto consumindo bebidas alcoólicas, apontando para os riscos disso, “se for beber, não dirija”… isso é uma forma de redução de danos, de evitar um dano maior. Envolve muitos aspectos, desde não pegar o carro quando for beber a fazer esse uso de uma forma que não traga tantos prejuízos à vida dela e para as pessoas que estão no seu entorno. Isso vale para outras substâncias que, no imaginário social, trariam mais danos, como o crack. Hoje a gente vê pacientes atendidos no Cetad, que é liderado pelo Dr. Esdras Cabus Moreira, que conseguem fazer uma outra forma de uso da substância. E a partir disso evitam se expor a riscos que seriam muito maiores.Em 1996, a legislação brasileira restringiu de certa forma a publicidade de bebidas alcoólicas, com a estipulação de horários para veiculação de comerciais de TV. Ainda se faz muita publicidade do álcool?De alguma maneira, já não há essa propaganda em massa como havia há um tempo, mas sabemos que há divulgação da bebida alcoólica em grandes eventos. E isso é colocado inclusive em músicas que fazem apelo ao uso. É muito difícil dizer que seria necessária a proibição da publicidade para que houvesse redução do consumo. O consumo vai acontecer.
O que me parece importante colocar em debate é que quando se faz um apelo ao uso da bebida em excesso ou que se enfrentem os problemas usando a bebida, quando você termina um relacionamento, vai beber muito para lidar com o sofrimento a partir desse término, tem algo que complica aí. Porque isso circula entre os jovens, circula na sociedade, e de alguma maneira existe um certo pacto de aceitação ao uso do álcool, que acaba trazendo muito mais prejuízo do que as outras substâncias que não são legalizadas. Eu acho que valeria a pena ampliar um pouco mais essa discussão
O consumo desenfreado faz parte de nossa época contemporânea para dar conta de lidar com o sofrimento humano. E isso de alguma forma se transforma numa espécie de espetáculo, com o incentivo para que alguém realize o consumo quando está passando por uma situação de sofrimento. É banalizado, como se fosse algo natural. Como se fosse uma forma interessante ou divertida de resolver um conflito que é difícil de lidar. Pode ser uma das formas, mas esse apelo é algo que tem chamado a minha atenção.A senhora mencionou o consumo desenfreado. Isso remete a outras coisas também, comida, internet. Seriam formas de alienação frente a um problema?Isso é importante porque a gente pode pensar a partir das compulsões dessas adições, que não se trata apenas de um apego à substância, esses objetos podem ser os mais variados possíveis. Podem ser as telas, podem ser compras. Pode ser uma compulsão por parcerias amorosas. A pessoa não suporta o término e recorre a uma outra relação, como se isso fosse um objeto também. A compulsão por sexo, por exemplo, que aparece muito na atualidade. Tem um autor da psicanálise, Jacques-Alain Miller, que traz isso, que a gente vive numa época do forçamento, esse modo desenfreado de consumo. Na psicanálise, a gente diz que é uma forma de gozar, de encontrar satisfação pelos objetos. Cada um pode encontrar satisfação no trabalho, numa relação, numa viagem ou com os filhos. Isso é diluído, pode ser distribuído em vários setores da vida dessa pessoa. E há casos em que existe uma tendência a recorrer a esses objetos como uma forma de lidar com o sofrimento e uma maneira mesmo de existir no mundo. Como se o sujeito só pudesse existir apoiado nessa vivência. Há pessoas que comem compulsivamente quando estão felizes, quando estão tristes, quando obtêm satisfação em uma determinada situação.Métodos de tratamento coletivo como os Alcoólicos Anônimos funcionam?
A resposta que a gente trabalha muito em psicanálise e também no Cetad é de que é preciso avaliar isso no caso a caso. Há pacientes que recorrem ao AA e trazem uma experiência muito bem-sucedida. Aquilo tem uma importância na sustentação daquele sujeito para poder seguir sua vida podendo estar em abstinência ou não, mas ele faz um laço ali e a partir daquele grupo ele encontra um lugar de ancoragem para poder lidar com essa questão da compulsão ao uso da bebida ou outra substância.
Já outros pacientes trazem a experiência de que isso não funciona. Eles preferem recorrer a outras formas de tratamento. Aqui no Cetad, e o doutor Esdras traz sempre essa perspectiva, nós temos uma abordagem multidisciplinar, para que a partir de cada caso, discutido ali por essa equipe, se possa pensar o que é mais interessante para o tratamento desse sujeito.