Gilberto Gil faz última caminhada de fé e festa em BH pela turnê Tempo Rei

Quando Neil Armstrong pisou lá pelo terceiro degrau do módulo lunar Eagle, que o levara até a superfície da Lua, não teve jeito: Tom Zé, que assistia ao momento pela TV, correu para dentro do Teatro Castro Alves, em Salvador. “Não posso deixar Caetano e Gil”, pensou — reflexão contada, anos mais tarde, à Folha. Era 20 de julho de 1969, e os dois baianos se apresentavam pela última vez no Brasil antes do exílio que os levaria a Londres durante a Ditadura Militar. Tão importantes quanto os passos de Armstrong foram os passos de Gilberto Gil nos anos seguintes — indeléveis na história da cultura e política brasileira. Na noite desse sábado (14), mais de meio século depois da despedida em Salvador, o compositor apresentou, no Mineirão, em Belo Horizonte, parte da bagagem acumulada na caminhada de resistência, fé e musicalidade que completa, no próximo dia 26, 83 anos.

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Divididas entre gramado e arquibancadas do Gigante da Pampulha, mais de 60 mil pessoas receberam o baiano com gritos e saudações calorosas, em contraste com a noite fria da capital. No início do show, às 20h30, os termômetros marcavam 15 °C, no entanto, ninguém parecia se importar com nada além da última turnê de Gil, ‘Tempo Rei’, iniciada em março na mesma cidade que, em 69, fora palco da famosa despedida.

A abertura da apresentação veio em tom metalinguístico: ‘Palco’ — dessa vez, em Minas, mas com a mesma alma que cheira a talco “como bumbum de bebê”. A sequência, com ‘Banda Um’ e ‘Tempo Rei’ — a música —, prepararam o terreno para a mensagem que todos pareciam concordar: ‘O melhor lugar do mundo é aqui e agora’.

Mais de 48 horas após o Dia dos Namorados, o romance ainda pairava sob o céu noturno de Belo Horizonte. O frio ajudava na química, é bem verdade. Para todos os lados, casais se emaranhavam na tentativa de escapar das rajadas de vento que mais pareciam dançar na pista com os acordes de Gil e banda.

Aliás, formosa banda, composta por mais de 10 instrumentistas — com destaque para Mestrinho, na sanfona. Quem não tinha par sofreu dobrado ao som de ‘Eu só quero um xodó’. Ainda assim, a noite seguiu bem.

(Thiago Cândido/BHAZ)

Tropicália e Trilogia RE

Bem mais que o exílio, Caetano Veloso e Gilberto Gil dividiram uma vida. Foram parceiros de palcos e de bastidores, de discos, de Bahia e, sobretudo, de Tropicália, movimento que revolucionou a música, o cinema e as artes visuais brasileiras ao incorporar elementos antropofágicos.

A parceria não impede, porém, que os amigos discordem, ainda hoje, sobre a identidade do principal motivador do movimento vanguardista. “O Tropicalismo se deve, em primeiro lugar, a Gilberto Gil”, garante Caetano em entrevista à jornalista Chris Fuscaldo. “O máximo que eu posso aceitar é uma co-responsabilidade”, rebate o amigo. 

Quem deve levar o fardo de principal organizador da Tropicália, pouco importa. Fato é que sua influência é percebida nas linhas e entrelinhas da arte produzida no Brasil desde então. Era de se esperar que a turnê de despedida de Gil reservasse espaço precioso para o movimento em questão, e reservou: começou no ritmo “berimbolado” de ‘Domingo no Parque’ e terminou num riff breve de ‘Bat Macumba’, faixa ilustre do disco-manifesto ‘Panis et Circenses’.

Entre elas, Chico Buarque apareceu no telão para recordar a criação de ‘Cálice’, à época de um dos momentos mais sombrios da história do país. O público interagiu com a participação virtual do artista: “Sem anistia”, gritou em coro.

Passadas as lembranças mais tensas, Gil emendou duas faixas-título da sua discografia: ‘Refazenda’ e ‘Refavela’. A primeira, envolta em tradições nordestinas, dá nome ao álbum lançado em 1975; enquanto a segunda, com forte carga africana, batiza o disco de 77. De alguma forma, elas pareciam antecipar o recado que viria na sequência: “tudo, tudo, tudo vai dar pé”. Antes de fechar a trilogia RE com ‘Realce’, faixa que empresta nome ao compilado de 79, deu tempo de fugir com Samuel Rosa “proutro lugar”. Juntos no palco, os dois amigos reinterpretaram a música adotada pelo Skank há 20 anos. Dessa vez, no entanto, com roupagem mais puxada para o reggae, na onda da novíssima versão lançada nas plataformas digitais um dia antes da apresentação em BH.

A sós

Os graus iam caindo enquanto a Lua escalava a muralha de concreto do Mineirão. Gil chamou todos para vê-la. ‘A gente precisa ver o luar’, cantou, dando início à ala intimista da apresentação. A banda deu espaço ao violão, e as pernas, cansadas após 1h de show, pediram por um banco. “Se eu quiser falar com Deus/ tenho que ficar a sós/ […] apagar a luz/ […] calar a voz”, refletiu o compositor. Milhares de ouvidos recebiam atentos o conselho, que mais parecia uma oração do baiano para ele mesmo: “Tenho que dizer adeus/ dar as costas, caminhar/ decidido pela estrada/ que ao findar vai dar em nada”, completou.

Embora humilde, a reflexão pode gerar discordância em quem ouve. Nos 82 anos de caminhada até aqui, Gil foi liderança política ativa, ministro da Cultura, Artista pela Paz da Unesco, integrante da Academia Brasileira de Letras e mais. Perto ou não do fim da estrada, seu legado ecoa pelas paredes da história do país. Na música seguinte, ‘Drão’, a dimensão desse legado ficou ainda mais visível: “O amor da gente é como um grão/ […] tem que morrer pra germinar/ plantar n’algum lugar, ressuscitar no chão/ nossa semeadura”.

Alguns minutos adiante, ‘Esotérico’ fechou o recado: “Mistério sempre há de pintar por aí”.

Encerramento

No bonde do ‘Expresso 2222’ os instrumentais voltaram em peso. Antes de partir para os momentos finais, deu tempo de ‘Andar com fé’ pra lá e pra cá, de cima de palco. O descanso das pernas na ala anterior parece ter ajudado — aos 82 anos, Gil arriscou dancinha no momento mais animado do show. Filho de Gandhy, o baiano não esqueceu de chamar o Carnaval de Salvador para Belo Horizonte. ‘Emoriô’ fez a festa da galera. 

A despedida, enfim, veio ao som dos maiores sucessos comerciais do artista: ‘Aquele abraço’, ‘Esperando na janela’ e ‘Toda menina baiana’. Pra cima, como deve ser em todo encerramento de ciclo apto a ser chamado de majestoso. Duas horas e meia após o início do espetáculo, as luzes frias do Mineirão reacendiam e indicavam o caminho de volta do público. Atrás do palco, a luz maior se recolhia, a passos curtos, para descanso merecido. Passos como aqueles de Armstrong, que provaram que a fé na caminhada não costuma “faiá”.

A turnê ‘Tempo Rei’ segue para Curitiba, em julho, depois vai a Belém, em agosto, Porto Alegre, em setembro, Fortaleza e Recife, em novembro. Há também uma apresentação prevista para o alto mar, no Navio Tempo Rei, em dezembro. Os ingressos estão disponíveis aqui.

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