Também só recentemente resolvi “mudar” o dia do meu aniversário. Quer dizer, não sou muito de comemorar datas, e tenho uma certa preguiça de responder mensagens eletrônicas, por isso escondo dos meus perfis nas redes sociais o momento em que vim ao mundo. Acho que dia bom é aquele em que sai o pagamento ou ocorre outra alegria, na hora em que acontece, e em que deve ser imediatamente aproveitada, sem muita complicação. A formatura festejada quando sai o resultado da última avaliação, o casamento quando o casal estiver bem. No entanto, entendo que é possível aproveitar a passagem do natalício de alguma maneira leve, e achei uma oportunidade de fazê-lo.
Nasci às 18h do dia 1º de julho, então é quase 2 de julho. E o Hino da Bahia diz que o sol brilha mais no dia 2 que no primeiro, o que projeta uma melancolia nebulosa sobre as primeiras 24 horas do mês. Além disso, o dia 2 é data de festa nas ruas de Salvador, em homenagem à Independência do Brasil na Bahia, citada no mesmo hino. Feriado e tudo, com o desfile de fanfarras e a concentração de milhares de estudantes, de famílias e de batalhões de fotógrafos e antropólogos de várias patentes.Então, de uns anos para cá, é no dia 2 que estou celebrando, misturado na multidão de artistas, místicos, desportistas e outros anônimos. Renasço daquelas cores, azul, vermelho, branco, verde e amarelo, e daqueles gritos e suores, no cortejo que rasga as gargantas estreitas do Centro de Salvador. Sigo com os vaqueiros, que passam a cavalo, e com os devotos que vão ao lado das imagens do Caboclo e da Cabocla, gente que atribui a essas entidades muitas graças alcançadas.
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Pronto, aniversário resolvido sem formalidades, decido outro dilema: olhar as redes sociais apenas uma vez por semana, como quem passa nos atuais supermercados atacadistas: sem muita esperança de achar novidade. Uma vez só por semana mesmo, para ver a caixa de mensagens, dar um salve para as pessoas e lutas de bom propósito e deixar alguma manifestação.
Estou numa fase em que as semanas se arrastam e cada sexta-feira custa a chegar, mas o ano acaba logo. Preciso ficar longe das falsas polêmicas, dos redemoinhos de bobagens e dos espirais de escândalos fabricados para eleger moralistas sebosos. Longe também dos golpes de inteligência artificial, das pilantragens graciosas e dos heróis de araque que o algoritmo recomenda.
Também estou praticando uma fisioterapia que eu mesmo inventei, de viver mais presencialmente, distante do computador, exercitando pernas e olhos, superando os maus hábitos criados na pandemia. Vale ver uma missa numa igreja antiga, assistir um filme como Premonição num cinema às quartas-feiras, tomar um ônibus para a velha cidade de Araci ou ir conhecer pessoalmente a bela São Gonçalo do Campo, de que eu só tinha ouvido falar uma vez, num programa de TV. E tem sido tudo muito bom. Até onde poderia ir esta lista?Outra coisa que vem demandando atenção são estas cicatrizes que o Tempo faz silenciosamente na minha face, à medida que ele passa. Arrumei um creme baratinho, importado da China, mas esqueço de usar. Também esqueço de banhar o cabelo com o chá de alecrim que diminui a calvície, e que fica numa garrafa na pia. O poeta tem razão: a vida arrasa e contamina.De qualquer forma, cicatrizes e tatuagens falam demais, e são más conselheiras. Mais tarde passo o creme para rugas.Mais tarde, talvez.*Franklin Carvalho é autor de Tesserato – A Tempestade a caminho (Ed. Noir)