Não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas
(Carlos Drummond de Andrade)
Diante do costumeiro assombro causado por tantos “assassinatos arquitetônicos” ocorridos em série na capital mineira – sobretudo contra o acervo edificado dos seus primórdios, resultando num desequilíbrio fenomenal entre preservação do patrimônio cultural e desenvolvimento –, é preciso buscar suas possíveis motivações. Nesse sentido, a opção inicial de ocupação do espaço urbano talvez explique, em parte, tanta destruição no conjunto arquitetônico que conferiu à cidade sua bela feição inicial, qual seja, a intencional baixa densidade construtiva.
Normalmente, as maiores áreas edificadas das cidades são aquelas destinadas à habitação, que podem se concentrar em moradias coletivas ou se espalhar pelo território em casas isoladas. Ao optar pela segunda via em seu nascedouro, a capital mineira, em boa medida, atentou contra a permanência da sua paisagem arquitetônica original. Na mesma época, outras cidades do mundo — como Paris, Lisboa, Barcelona e Buenos Aires — construíam em massa belos prédios de apartamentos em estilo eclético de cinco ou seis pavimentos, estabelecendo ocupações mais densas e verticalizadas que, pela sua robustez e escala, se mantiveram preservados até os dias atuais.

Em direção contrária, nas primeiras décadas do século XX, raríssimos foram os exemplares de arquitetura residencial de uso coletivo em Belo Horizonte, sejam horizontais ou verticais. Aqui, prevaleceu a habitação individual nos lotes, resultando numa ocupação difusa do território e numa cidade horizontalizada de baixa densidade construtiva. Esse cenário se explica não apenas pela cultura brasileira que privilegia as casas isoladas, mas também pela postura da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), que via na habitação coletiva um risco à saúde pública, considerando‑a fonte de proliferação de doenças. Conforme a professora Heliana Angotti‑Salgueiro, em seu célebre A Casaca do Arlequim: Belo Horizonte, uma Capital Eclética do Século XIX, o pensamento higienista dos técnicos da CCNC tinha respaldo, inclusive, na Encyclopédie D’hygiéne, que advertia sobre os “perigos do amontoamento” urbano e apontava a sobreposição de pavimentos como uma das principais debilidades das habitações coletivas.
A ilustre professora ainda destacou um efeito prático desse pensamento higienista na cidade ao citar o artigo 28 do decreto estadual de n. 1.453, publicado em março de 1901, que regulamentava as construções e reformas em Belo Horizonte. Esse decreto foi taxativo quanto ao perfil de moradias que viria a tipificar nossa paisagem urbana:
[…] são estritamente proibidas na zona urbana [interior da Av. do Contorno] habitações coletivas ou qualquer tipo de dependências destinadas à habitação de muitas pessoas em um mesmo lote.

Por outro lado, nesse mesmo período, a cidade também não conheceu uma significativa verticalização de edifícios destinados a salas comerciais e escritórios; no máximo, essas atividades não residenciais instalaram‑se em sobrados e em poucos prédios de três ou quatro pavimentos – o mesmo fenômeno observou‑se nos edifícios públicos.
Esse tipo de ocupação dos primórdios da capital mineira – marcada pela baixa densidade edificada – não tardou em provocar um desmonte significativo das suas construções de raiz para ampliar as áreas construídas e atender ao subsequente crescimento econômico e populacional. No entanto, esse processo ocorreu praticamente sem critérios seletivos de preservação, resultando na destruição indiscriminada de incontáveis obras de arte arquitetônicas erguidas por nossos pioneiros.

A generalizada falta de critérios de preservação, que perdurou por muito tempo na cidade, fica evidente, só para citar um exemplo, na demolição de duas belas edificações ecléticas ligadas à história de um dos maiores escritores brasileiros, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Refiro-me ao Grande Hotel Internacional, que ficava na esquina da Rua da Bahia com a Rua dos Caetés, e à residência da Rua Silva Jardim, n. 107, no Bairro Floresta –, cujas perdas irreparáveis integram o obituário arquitetônico que apresentamos a seguir.
Conheça cinco obras que compõem o vasto obituário arquitetônico de BH
1. Hotel Internacional | Demolido no início dos anos 1950

O suntuoso Hotel Internacional, construído em estilo eclético na esquina da Rua da Bahia com a Rua dos Caetés, foi onde o ilustre poeta Carlos Drummond de Andrade residiu por algum tempo, assim que chegou a Belo Horizonte, em 1920. No térreo desse hotel funcionava o antigo Jornal de Minas, que, não por acaso, foi onde o poeta publicou seu primeiro artigo na grande imprensa, em abril de 1920, aos 17 anos de idade.
No início da década de 1950, o imóvel foi demolido para a construção do Edifício Itatiaia, que hoje integra o patrimônio edificado do município.
2. Casa da Rua Silva Jardim

Nesta charmosa casa eclética, que ficava na Rua Silva Jardim, n. 107, no Bairro Floresta, morou o grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Antes de ser “assassinada”, a casa passou por algumas alterações que, em 1947, não passaram despercebidas pelo célebre escritor mineiro e foram lamentadas no poema “Casa sem Raiz”. Lamentavelmente, a simpática moradia das memórias de Drummond foi derrubada, provavelmente nos anos 1980, para dar lugar a um inexpressivo prédio de apartamentos de sete pavimentos.
3. Palacete de Helena Barros Pinheiro

O brilhante arquiteto Francisco Izidro Monteiro projetou esse exuberante palacete, que foi uma das mais admiráveis construções de esquina dos primórdios da capital mineira. Essa requintada casa nobre, que ficava na Avenida João Pinheiro, esquina com a Rua dos Timbiras, foi demolida em 1970 para dar lugar a um edifício de apartamentos com treze andares. Helena de Barros Pinheiro (1871–1928), viúva do ex-governador João Pinheiro, residiu nesse palacete com seus doze filhos, entre eles Israel Pinheiro, que também foi governador de Minas Gerais.
4. Palacete Macedo

O exuberante Palacete Macedo, que já abrigou uma agência do Banco do Brasil no térreo e residência nos andares superiores, foi uma das mais suntuosas obras em estilo eclético do Centro de Belo Horizonte. O palacete ficava exatamente ao lado do Cine Brasil, na Avenida Amazonas, n. 311. O imóvel foi demolido nos anos 1950 para a construção do Edifício Londres, que possui 20 pavimentos.
O palacete pertenceu a José Francisco de Macedo (1873–1950), conhecido como Zé dos Lotes ou o Português dos Lotes, que foi um dos principais especuladores imobiliários nos primeiros anos de Belo Horizonte.
5. Palacete Av. Álvares Cabral

Na década de 1970, o grande memorialista Pedro Nava revisitou locais que fizeram parte de sua trajetória na capital mineira. Nesta fotografia de 1973, o renomado escritor mineiro posa em frente ao exuberante sobrado eclético projetado por Edgard Nascentes Coelho em 1912. Alguns anos depois, ambos desapareceram: o sobrado foi demolido e o escritor faleceu.
Atualmente, nesta esquina – na confluência da Rua da Bahia com a Avenida Álvares Cabral – resta apenas um terreno vago utilizado como estacionamento.
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