‘Ele teria me matado’: como Lei Maria da Penha ajudou mulher por fim a agressões e evitar feminicídio em MS


Violência contra mulher pode ser denunciada pela internet
Polícia Civil/Divulgação
A Lei Maria da Penha, que completa 19 anos nesta quinta-feira (7), foi implementada em 2006 no Brasil com o objetivo de combater a violência doméstica e familiar contra a mulher. Entre as principais medidas estabelecidas por essa legislação estão as medidas protetivas de urgência como forma de proteger a vítima.
A ferramenta de proteção, no entanto, precisa ser mais efetiva, conforme avaliam especialistas e até as próprias vítimas, como é o caso da cuidadora Daniela Lima, de 32 anos, que sofreu agressões do ex-marido.
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Na época da primeira agressão, Débora estava grávida de sete meses do filho mais novo. O comportamento do companheiro havia mudado e as brigas e ofensas eram constantes.
Em um dos episódios de agressão, Débora conta que segurava o filho no colo enquanto o ex-companheiro lançava objetos em sua direção. A filha mais velha, na época com 7 anos de idade, presenciou as discussões e agressões.
Sofrendo constantes ameaças e agressões – verbais e físicas – , a cuidadora permaneceu vivendo na mesma casa que o agressor por cerca de um ano.
Após receber orientação, ela procurou a delegacia da Casa da Mulher Brasileira, onde registrou o boletim de ocorrência e solicitou medida protetiva contra o agressor. No local, recebeu atendimento psicológico e suporte para resolver questões jurídicas como o divórcio e a guarda dos filhos.
Cerca de uma semana após o pedido, o ex-companheiro de Débora recebeu a notificação sobre a medida protetiva. Durante esse período, a cuidadora conta que continuou sendo procurada e ameaçada.
“Essa medida só funciona se o agressor recebe a intimação. Acredito que eu só tive sorte, pois se o meu ex marido fosse mais esperto, ele teria me matado nessa espera da intimação. Se a lei olhasse com mais atenção para essa questão, acredito sim, que muitas mulheres teriam o mesmo destino que eu tive”.
Somente em setembro de 2021 a relação teve fim, quando Débora pediu o divórcio e o agressor deixou definitivamente a residência em que viviam, com a escolta da polícia. O juíz responsável pelo caso também determinou tornozeleira eletrônica e monitoramento ao agressor.
“Acredito que a lei funcionou para mim, busquei ajuda, procurei meus direitos como mulher e não fiquei calada. Não tive vergonha de expor minha vida, e segui em frente. Já se passaram 4 anos, e vivemos bem na medida do possível.”
Falhas nas medidas protetivas
A efetividade do sistema de proteção às mulheres gerou discussões após casos de vítimas de violência com medida protetiva virem à tona. Um deles é o da jornalista Vanessa Ricarte, que foi morta pelo ex-companheiro em fevereiro deste ano, após denunciá-lo à polícia.
Poucas horas antes de ser assassinada pelo ex-noivo, Caio Nascimento, a jornalista, de 42 anos, chegou a reclamar do atendimento recebido na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), quando foi registrar o boletim de ocorrência contra o agressor. À época, o g1 teve acesso ao áudio em que a vítima relata o ocorrido a uma amiga (relembre aqui).
Após o crime, uma série de medidas foi anunciada pelo poder público e pelos órgãos de justiça para tentar corrigir os erros.
Para evitar feminicídios, o Centro de Inteligência do Ministério Públcio de Mato Grosso do Sul criou a ferramenta “Alerta lilás”, que integra as bases de dados do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), do Sistema de Execução Unificada e do Banco Nacional de Mandados de Prisão. A plataforma permite a identificação dos agressores com mais eficiência.
Confira abaixo outros avanços que ocorreram após o caso Vanessa Ricarte:
Servidores da Casa da Mulher Brasileira já passaram por capacitação e o local que antes era administrado somente pela prefeitura de Campo Grande, terá gestão compartilhada com o governo do Estado.
Um acordo entre o TJMS e a Secretaria de Segurança Pública possibilitou a capacitação de mais de 60 policiais militares e civis que, agora, podem atuar como oficiais de Justiça para agilizar as intimações dos agressores, além de escoltar a vítima.
Mais de 6 mil boletins de ocorrência que estavam parados na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), ainda estão sendo analisados pela força-tarefa da Polícia Civil, com apoio do Ministério Público.
Para dar mais agilidade aos processos, o MPMS recomendou ao governo do Estado para digitalizar os inquéritos e, também, implantar sistema de gravação de depoimentos nas delegacias.
O Ministério das Mulheres disponibilizou quase R$ 490 mil para a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário que serão usados para alugar tornozeleiras eletrônicas para monitoramento dos agressores. A agepen informou que o contrato com a prestadora do serviço está sendo atualizado para mudar a fonte de pagamento, que hoje é de responsábilidade do estado e agora, com o repasse, passará a ser feito com recursos federais. A previsão é concluir esse processo até o fim do mês de maio.
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Necessidade de avanços
A Lei Maria da Penha, que se tornou referência na defesa dos direitos das mulheres, teve avanços significativos mas, precisa ser ampliada e receber investimentos em áreas que vão para além da segurança pública, conforme avaliam especialistas.
Para a pós-doutora e professora de psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Jacy Corrêa Curado, o combate à violência contra a mulher, que recebeu investimentos como a criação de delegacias, equipamentos, carros, motos e efetivos da patrulha Maria da Penha, precisa de mais atenção para políticas nas áreas de educação e saúde, por exemplo, que abranjam a legislação de defesa das mulheres.
“A política de combate à violência da mulher foi a principal política dos últimos anos, dos governos federais, e repercutiu nos estaduais e municipais, nessa área. Então, a política não foi na área de educação, nem de saúde, foi o combate ao enfrentamento à violência contra a mulher”, relata a professora.
Jacy avalia que as punições aos agressores tiveram fortalecimento mas ressalta que essas medidas podem perder o efeito, já que é necessário conscientização das pessoas para evitar que a violência contra a mulher aconteça.
“Eu acho que só a punição não é a solução. Tem que ter a punição sim, mas tem que ter junto com ela um conjunto de medidas. Os homens que cometem violência precisam de participar, sim, de fazer uma reflexão. A maioria não tem [refletido], nem assume, nem reconhece que cometem violência, eles acham que é normal”, comenta Jacy.
Aumento das estatísticas
Os atendimentos do Ligue 180 do governo federal registraram aumento de 18,7% nos últimos anos em Mato Grosso do Sul. Em 2023, foram recebidas pelo serviço 7.924 ligações, contra 9.413 no ano seguinte.
As estatísticas da violência também mostram avanço significativo da violência contra as mulheres no estado, como é o caso de feminicídios. Nos dois últimos anos, a morte de mulheres por questões de gênero aumentaram de 30 para 35, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança. Em 2025, já são 21 vítimas de feminicídio em Mato Grosso do Sul, segundo a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
O estado é o segundo do país com a maior taxa de feminicídio para cada 100 mil mulheres (2,4), ficando atrás apenas do vizinho, Mato Grosso (2,5).
Para a professora Jacy Corrêa Curado, entre as hipóteses consideradas para esse aumento está ligado ao avanço das políticas públicas que têm permitido maior número de denúncias e, consequentemente, na coleta dos dados.
“Aqui [Mato Grosso do Sul] foi um dos lugares que primeiro criaram uma política pública da mulher. Por exemplo, aqui foi a primeira coordenadoria estadual de política para a mulher, criada em 1998. Foi a primeira Casa da Mulher Brasileira. (…) Nós temos os maiores indicadores, os maiores índices, porque nós temos uma política mais consolidada, vamos dizer assim’.
Combate à violência
A naturalização da violência contra as mulheres está inserida em uma concepção patriarcal que considera o homem como ‘dona da mulher’, como explica a professora Jacy Curado.
A especialista reforça que para mudar esse cenário, é preciso estabelecer novas relações de gênero, com mais investimento na área psicossocial.
“A gente só muda a violência combatendo o patriarcado, na minha concepção, só muda a violência mudando as relações de gênero. E isso foi muito pouco realizado, mesmo pelo conservadorismo, que você não pode hoje em dia falar de gênero nas escolas e tudo mais. Mas também de uma política mais incisiva, de trabalhar com os grupos de mulheres, com grupos de homens agressores, de ter uma parte psicossocial mais forte, tanto para prevenir, como também depois do ocorrido você não ter que [re]incidir”, destaca Jacy.
Além da reflexão e conscientização dos homens, a professora acredita que as mulheres precisam de apoio quando conseguem deixar um ciclo de violência.
“Ou a mulher, se ela não sair do ciclo de violência e também passar por uma reflexão, no caso, até uma terapia psicológica, ela pode voltar também a ter outras relações com a mesma característica, a gente sabe disso”, finaliza a professora.
Acolhimento
A Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande, abriga atualmente cerca de 25 mulheres com idades entre 25 e 40 anos. Conforme a gerente da instituição, Iacita Azamor, essas mulheres permanecem, em média, seis meses e, algumas, são acolhidas junto aos filhos.
Após a denúncia, o setor psicossocial faz o acompanhamento das vítimas e articula apoio de diversos órgãos para atendimento às mulheres e seus filhos, conforme explica Iacita.
“As técnicas como psicóloga e assistente social fazem o acompanhamento da vítima por telefone e visitas. [Verificam] se precisa de escola para os filhos, ajuda com moradia, com mercado de trabalho, entre outros. Em todos esses casos são encaminhadas para atendimento da rede de apoio, através da secretaria de educação, no caso das escola, da Emha para a moradia, pela Funsat – que tem um posto dentro da Casa da Mulher Brasileira, para cursos e emprego”, explica a gerente.
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