‘O resgate do porquê é a essência da educação hoje’

Giz e paixão — título do novo livro do educador e escritor paranaense Renato Casagrande — continuam sendo ferramentas essenciais na sala de aula. Em passagem por Salvador, ele concedeu entrevista exclusiva ao A TARDE para falar sobre os desafios e inspirações da educação brasileira.Na conversa, Casagrande ressaltou a importância de uma educação mais humanizada, com menos tecnologia em sala de aula e um vínculo mais forte entre professores e alunos. “Hoje, os alunos são movidos por propósito. Eles não vão obedecer por obedecer.”O educador defende o resgate do papel do professor, buscando equilíbrio entre método e emoção. “Se o educador não colocar a alma, não vai funcionar”, afirma, destacando que o maior desafio da escola atual é resgatar o ‘porquê’ de ensinar — que, para ele, é a verdadeira essência da educação. Saiba mais na entrevista a seguir.Depois de visitar escolas na Alemanha, Suíça e França, que aspectos desses modelos o senhor acredita que poderiam inspirar mudanças na educação brasileira?Eu vou começar pela educação infantil. Só recentemente ela passou a ser mais valorizada no Brasil. Sempre foi vista mais como uma forma de resolver o problema dos pais do que como um espaço real de educação das crianças. Agora é que estamos construindo escolas, trazendo professores formados para a educação infantil — porque, por muito tempo, tratamos esses profissionais como monitores. Já na Europa, a educação infantil é tratada como ciência há muito tempo. A brincadeira que o professor propõe à criança é estudada, planejada, cientificamente fundamentada. Ele precisa oferecer, ao longo do dia, três ou quatro tipos de brincadeiras diferentes para estimular o desenvolvimento motor e intelectual. Não são brincadeiras aleatórias — embora pareçam —, mas organizadas, planejadas. Isso faz uma diferença enorme.Quando a criança chega ao ensino fundamental ou médio, já vem com outro tipo de habilidade, com maior capacidade de aprendizagem. Aqui no Brasil, passamos a lutar por algo que não foi bem trabalhado lá atrás. Faço uma analogia simples com a aprendizagem de uma língua estrangeira. Sabemos que, quando uma criança é exposta desde cedo a outro idioma, ela consegue aprender três, quatro línguas com muita facilidade. Muitos brasileiros só vão estudar uma língua estrangeira depois do ensino médio. Isso porque, com raras exceções, o ensino de línguas na educação básica não funciona. Ninguém aprende de fato, a não ser em escolas bilíngues ou muito especializadas. E mesmo quando os jovens buscam aprender depois, só conseguem com alguma imersão fora do país.Na Alemanha, por exemplo, os alunos saem da escola fluentes em três idiomas. Desde os dois anos de idade, de forma leve e gradual, o outro idioma é introduzido. Vão mostrando outras perspectivas e preparando a base. Acho que aí está o segredo: não é sobre encher a base de conteúdos, mas preparar uma base sólida para, depois, na idade certa, avançar. Tudo lá é estudado, tudo é científico. E o professor da educação infantil é muito valorizado. No Brasil, ainda improvisamos muito. Por isso, quando os alunos chegam ao ensino fundamental, começamos a perceber deficiências importantes na aprendizagem.O que mais o senhor viu que lhe chamou atenção?Outra coisa que me chamou bastante atenção é que as escolas são bem analógicas. Quem viajar esperando encontrar uma educação infantil digitalizada vai se frustrar. Eles não têm tela, não têm nada. Têm brincadeiras, jogos que me remetem à infância. Não é nada tecnológico. O celular é proibido em todas as escolas. Eles já entenderam que, naquele ambiente, não é preciso celular para ensinar a criança, não é preciso celular para formar o cidadão. Isso vai acontecer em outros momentos, mas na escola, não.O senhor falou sobre educação infantil e o Ideb 2023 (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mostrou avanços nos anos iniciais do ensino fundamental em grande parte do país. O que esses resultados indicam sobre a importância de investir na base da educação?Eu acabei de fazer uma pesquisa que ainda não divulguei, sobre os microdados fornecidos pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) sobre o Ideb. A mídia tem acesso, mas geralmente não trabalha com esses microdados, porque são complexos. Mas estou fazendo uma pesquisa científica com o software para entender melhor esses microdados, porque eu estou estudando hoje qual é o perfil do líder educacional, do diretor de escola que melhor gera resultado na aprendizagem dos alunos.Preciso desmistificar, porque o Ideb é um indicador misto. De um lado, tem a aprendizagem das crianças, que é com a nota da prova que eles fazem, e a outra é a retenção. Quanto mais o aluno permanece na escola, mais sobe o Ideb. O que a gente observa, que não é falado, é que o Ideb tem crescido pouquinho, mas o pouco que tem crescido não é na aprendizagem. É na retenção do aluno. O aluno tem permanecido mais na escola. Por quê? Não tem reprovação, porque tem muito controle sobre o aluno ficar na escola, e ainda benefício se ele fica na escola. Está atrelado a programas sociais do governo e, portanto, o que é muito positivo, o aluno hoje fica mais na escola. Nós reprovamos menos, no sentido positivo, porque o aluno não evade tanto da escola. E aí melhora o Ideb. Você vê, por exemplo, estados que subiram o Ideb, mas não é a aprendizagem. O que subiu, na verdade, foi o indicador. Se você tem um indicador que tem duas variáveis, uma variável subindo, ela melhora o indicador. E a variável que nós estamos crescendo é a manutenção do aluno na escola.A aprendizagem, infelizmente, ou nós estamos estacionados, ou caímos. Até porque tínhamos reflexo da pandemia, e a gente tem esse reflexo ainda. Não pense que a pandemia na escola passou. Ela está latente, porque as crianças que não foram alfabetizadas lá na pandemia foram para frente sem serem alfabetizadas. Então o professor hoje precisa lidar com conteúdos do quinto ano, do quarto ano, e com a alfabetização. Sendo que a alfabetização é uma ciência que nem todos os professores dominam. Muitos professores que dão aula, por exemplo, no quinto ano, não sabem alfabetizar.Além desta questão que o senhor levantou, a pandemia escancarou também as desigualdades e deixou milhares de estudantes para trás. Como a escola pode deixar de ser espelho — e, pior, amplificadora — das desigualdades brasileiras?A pandemia nos mostrou o tamanho da desigualdade. Quando nós fomos fazer o ensino remoto e precisamos usar tecnologias básicas como o celular, vimos que as crianças ou não tinham celular, ou não tinham wi-fi, ou não tinham condições de estudar em casa, porque era uma casa que tinha dois cômodos, com 10 pessoas morando, cachorro, gato, papagaio, crianças chorando, avô doente. Era impossível a aprendizagem. Portanto, mostrou que a escola ainda é o melhor ambiente para essa criança, porque ela tem alimentação, tem um ambiente de concentração, tem um líder que é o professor. Tem uma estrutura que, quando não tem, a aprendizagem não funciona. Não é à toa que nossa aprendizagem na pandemia ficou em algo em torno de 33%. Se ele tirava nota 4, ele aprendeu 33% de 4.Então, veja como foi um período bem desastroso. E nós, nesse momento, sentimos o quanto não estávamos conhecendo a realidade da criança. Porque os professores também recebiam crianças com fome, com problemas estruturais, problemas sociais, mas não tinham essa dimensão. Quando nós tivemos que ir até a casa do aluno, tivemos que entrar em contato com a criança e verificamos a fragilidade, nós entendemos que é muito mais complexo fazermos equidade do que falarmos de equidade. E a gente vive hoje um problema seríssimo porque essas desigualdades na pandemia foram escancaradas, mas não foram resolvidas. Elas estão latentes, elas estão abertas. E agora, nossas políticas precisam ser políticas inclusivas a ponto de nós encontrarmos caminhos para minimizar. Não vou dizer que a gente vai resolver a situação, porque essas desigualdades estão no mundo. Só que o Brasil, acho que lidera esse ranking de desigualdade, e essas brigas ideológicas têm acentuado isso. Porque, em vez de nos unirmos para encontrar uma educação que realmente seja inclusiva e que seja eficaz, estamos discutindo ainda muita ideologia e polarizando a educação. A educação é uma das áreas mais polarizadas que existem.Qual é o reflexo dessa polarização?O reflexo disso é, primeiro, professores que muitas vezes não têm uma orientação clara do que fazer porque, mesmo na formação de professores, nós temos essa polarização ideológica. O sindicato não dialoga com o sistema. O sindicato faz o seu papel porque tem um papel corporativista, mas muitas vezes, ao se opor a tudo e não encontrar um caminho, ele não favorece a aprendizagem e acaba ampliando essa desigualdade. Ou seja, em nome de uma justiça social, ele não promove a justiça social. Os professores que estão envolvidos tanto de um lado quanto do outro, em nome de uma justiça social, acabam criando mais injustiça. Então, a gente precisa formar um cidadão consciente.Mas, no momento em que eu não encontro um diálogo com o sistema que comanda, o que vai acontecer? A oposição pela oposição, a briga pela briga não tem gerado resultados. Se eu faço, por exemplo, o movimento tartaruga, que é de dar aulas mais curtas e ficar, às vezes, 100 dias, 150 dias nessa situação. Eu já fui líder de sindicato e também participei de movimentos tartarugas. Participei de movimentos que, de certa maneira, geraram alguma coisa para a categoria — pouca coisa, que a gente não consegue muito —, mas o prejuízo que você deixou para aquela criança às vezes é irreparável. Porque uma criança que viveu uma greve de dois, três meses, e a reposição, nós sabemos, nunca é real, ela tem parte da sua escolaridade comprometida. Não estou dizendo com isso que os movimentos dos sindicatos não são legítimos. O que sinto é que a gente não consegue criar um espaço de diálogo, nem do sistema que promove e é responsável pela educação, nem daquele que trabalha como professor. Então, esse movimento não colabora, nem de um lado do sistema que é radical, nem do sindicato que também é radical. A educação não merece isso.Mais de 60% dos professores relatam sintomas de estresse crônico, mas o problema vai além do emocional — é também estrutural. O que precisa mudar, na prática, para que o cuidado com a saúde mental vá além do discurso e se torne parte efetiva das políticas educacionais?Essa é uma área muito forte para mim. Sou presidente do Instituto Casagrande, que trabalha com esse tema. Temos eventos que reúnem milhares de educadores e, na minha rede social, recebo todos os dias uma avalanche de pedidos de socorro. Esse é o termo que eu estou dizendo: socorro, porque o professor não está conseguindo dar aula. Antigamente, quando se falava do professor, a luta era por salário. Hoje, o salário ficou em segundo plano. Não que ele não seja importante, mas ficou em segundo e terceiro plano, porque a prioridade é a saúde, o bem-estar, a paz interior — e isso não existe. Está complicado.Vou elencar alguns problemas da saúde mental. O número de alunos em sala de aula, que é uma questão que a gente sempre reclamou, hoje ficou crítico. Se um pai tinha 10, 12 filhos no passado e passa a ter dois, um, o professor continua com 30 crianças, 25. E é uma outra relação com a autoridade, com a escola. Uma criança que não tem uma obediência — e não vou dizer que obediência cega seja uma coisa boa — mas é difícil o professor conseguir colocar uma ordem, conseguir um ambiente favorável à aprendizagem.Nós temos crianças neurodivergentes, nós temos a inclusão de crianças que não estão, às vezes, preparadas para lidar com aquele professor, com aquela sala. E são colocadas em sala de aula sem estrutura, sem alguém para apoiar. Ou seja, existe uma lei de inclusão e existe um professor que é obrigado a incluir sem ter preparo, sem ter condições estruturais, sem ter auxiliares de apoio — às vezes, uma ou duas pessoas juntas — porque é custo. Incluir custa caro. Agora, como eu preciso cumprir uma lei, coloco na sala de aula e jogo para o professor. Todas as escolas precisam lidar com uma inclusão que não foi planejada. Isso tem afetado muito a saúde mental dos professores.Outro problema é essa questão da reprovação automática. Tirou-se a autoridade do professor, tirou — e vou colocar entre aspas — o poder do professor de avaliar o aluno e dizer se vai ser retido ou não. Isso tem um lado perverso, no sentido de que o professor não tem isso.Esse projeto de lei que propõe o fim da progressão continuada nas escolas avançou na Câmara dos Deputados e reacendeu o debate sobre a chamada ‘aprovação automática’. Como o senhor avalia essa proposta?Eu quero deixar, primeiro, bem claro que não sou a favor da reprovação. Mas também tenho várias críticas à aprovação automática. Não significa que, se vou criticar um modelo, sou favorável ao outro. Não acho que temos que voltar à reprovação. Mas, quando promovo uma aprovação automática sem dar as condições para esse aluno, ele vai para frente e jogo, mais uma vez, para o professor o problema — como aconteceu na pandemia. Alunos não alfabetizados foram jogados para frente. Isso faz com que a aprovação automática seja um problema em vez de uma solução. Professores sem condições, e o aluno se sente, de certa maneira, sem obrigação de estudar.Quero lembrar que, quando nós tínhamos um sistema um pouco mais duro, o aluno se esforçava mais. Hoje, o fato de o aluno saber que não existe nenhum tipo de consequência pelo não estudo, ele não se sente motivado para estudar. Eu lembro que, quando era aluno, tinha minhas obrigações e tinha medo de uma reprovação. Repito: não sou a favor da reprovação, mas o modelo como está acaba afrouxando demais. Veja bem: um aluno que só quer brincar, que não tem interesse na aprendizagem, que não respeita o professor, não sente, em momento algum, que será punido, ameaçado, e por isso não tem medo. Porque ele sabe que, se não for bem na prova, vai passar. Esse é um ponto. Segundo, se ele desobedecer o professor, se não cumprir as questões, ele também vai passar e não vai sair da escola. Ou seja, não tem nenhum tipo de consequência, nem para ele, nem para a família. A única consequência é para o professor. Porque o professor é punido quando é colocado um Ideb e ele é exposto. Quando uma escola é exposta na cidade, na mídia, ele é exposto. Quando o pai confronta porque o filho não aprendeu, mas ele não entende que o professor não teve as condições. Então, o mais punido no sistema hoje é o professor.Mas, se você entrar numa sala de aula, vai verificar que foi tirado do professor muita força, muitos instrumentos que ele tinha, e não foi colocado nada no lugar. Repito: se eu tiro a reprovação, que é um instrumento perverso, eu teria que ter colocado algo no lugar. Esse aluno, por exemplo, que é aprovado automaticamente, é obrigado a fazer, por exemplo, um segundo turno, ter aulas aos sábados. Ele vai precisar — não digo nem uma punição — mas aulas de reforço, por exemplo. Só não pode responsabilizar o professor no ano seguinte.Os problemas do ensino médio estão longe de acabar. Mesmo com a reforma recente, diferentemente do ensino fundamental, a situação ainda é bastante complicada. Como o senhor avalia esse cenário atual do ensino médio, especialmente à luz das mudanças implementadas pela reforma?Olha que interessante, a ideia de que o ensino médio é pior. Mas não é que a aprendizagem seja a pior. O pior é que você não tem mais força para reter o aluno. Na hora em que você vai separar os indicadores, vai ver que a variação do ensino médio é melhor que a do fundamental, em relação à prova. Mas o Ideb é menor porque o aluno evade. O aluno protesta no ensino médio com os pés. Ele foge. Porque o ensino médio é extremamente chato. Na verdade, o ensino médio é chato no mundo. Não é uma questão brasileira. Voltando à minha viagem, eu encontrei problemas sérios no ensino médio. O ensino médio perdeu a identidade no mundo. A Alemanha é mais concentrada, mas ela promove uma certa desigualdade porque o aluno já faz o ensino médio dirigido para o curso técnico ou para a universidade. Se a escola identificar que ele tem potencial para a universidade, ele vai para a universidade. Se ela identificar que não tem, ele não vai. O ensino técnico acaba sendo mais valorizado. Na Suíça também. Ou seja, as crianças já vão sendo conduzidas para um itinerário mais técnico do que um conhecimento universal.No Brasil, nós demos a possibilidade para o aluno. Mas nós saímos de um ensino médio ruim e promovemos uma reforma que não funcionou. A primeira reforma foi proposta por um governo interino, que foi o governo de Michel Temer. Foi implantada pelo governo Bolsonaro, que era contra a reforma, e teve pandemia. E foi revisitada pelo governo Lula, que é contra a primeira e a segunda reformas. Ou seja, ficou um balaio de gato. Hoje, nós temos a reforma da reforma. Porque não é nem a reforma que o MEC quer, não é nem a reforma que o governo Temer quis, e não é a reforma do Bolsonaro. É uma reforma da reforma, que misturou um pouco o que foi discutido no Congresso. Então, um pouco foi colocado pela equipe do ministro da Educação na época do Temer, que foi o próprio relator agora da reforma que está no Congresso. Quem propôs revisitou a reforma e fez uma emenda, juntando uma coisa e outra.O senhor não acredita na reforma do ensino médio da forma como está?Eu acho que o ensino médio vai ter que ser reconstruído de novo. Talvez nem a reforma da reforma, nós vamos ter que fazer um novo projeto. Porque do jeito que está, ele prevê os itinerários e não dá as condições para a escola. Para a gente fazer realmente uma grande reforma do ensino médio, nós temos que criar grandes escolas de ensino médio regionais. Essas micro escolas que nós temos não vão ter condições de oferecer os itinerários, que são caríssimos. Cada itinerário exige laboratórios que não temos. Eu, por exemplo, visitei uma cidade do interior da Alemanha em que a escola está muito próxima da estação de trem. E todas aquelas crianças viajam 10, 12, 15 quilômetros para ir a uma superescola. A escola é enorme, com laboratórios, e lá eles têm os itinerários. Ou seja, o jovem do ensino médio viaja até a escola para ter a melhor formação.No Brasil, nós temos uma outra visão. Nós queremos escolinhas perto do aluno para favorecer a vida dele, porque é fácil, porque é prático, porque talvez seja mais barato, porque não tem transporte. Mas fornecemos uma educação rasa. Então, a nossa reforma, que é inspirada nesses países que citei, só vai funcionar se nós tivermos superescolas. Eu fui pro Ceará, por exemplo, visitei essas escolas e fiquei fã. O aluno tem que ficar o dia todo, tem que ter refeição, tem que olhar para as artes. Porque o aluno que não vai para a área de linguagem, vai para a área de exatas, vai para a área técnica. Nós temos que ter complexos dentro da escola.Recentemente, tivemos a proibição do uso de celulares em sala de aula, ao mesmo tempo em que a inteligência artificial começa a impactar profundamente diversos setores, inclusive o ensino. Como o senhor vê esses dois movimentos — a proibição do celular e a chegada da inteligência artificial — e o que eles podem representar para a educação?A tecnologia foi uma questão que também identifiquei na minha viagem. De forma geral, como disse, não só na educação infantil, achei essas escolas mais analógicas que digitais, no geral. Eles valorizam muito uma educação humanizada, a relação do professor com o aluno, colega com colega. Não é uma educação digitalizada. Não que não exista. Existe investimento, mas tem muita dificuldade, porque, como costumo dizer, o computador entrou pela porta dos fundos da escola. Eu sou de uma geração analógica e, quando era diretor de escola, nós trouxemos o computador. Em vez de ser uma solução, ele virou um problema à procura de uma solução, porque antes não sabíamos o que fazer, e até hoje a gente não sabe direito. Por exemplo, começamos a introduzir o celular na sala de aula. Nos perdemos, tanto que foi proibido agora porque o aluno ficava muito mais tempo na rede social e nos joguinhos do que na aula.É injusto querer imaginar que uma criança com acesso a um celular que a leva para o mundo da diversão vá querer ler um livro de Machado de Assis, assistir a um vídeo que para ele é chato. Então, essas novas tecnologias não ajudaram. Elas contribuíram para que a criança deixasse de ler, aprendesse menos. Portanto, nós temos que proibir. À primeira medida, a proibição é saudável. Depois, nós vamos ter que nos reaproximar da tecnologia e ver como nós vamos namorar de novo com ela. Proibimos, mas agora, a gente está vendo como essa tecnologia pode favorecer. Por exemplo, hoje você vê os jovens saindo do ensino médio, com um cérebro mais preparado para o online do que para o offline. Os estudantes leem pouco, escrevem dependendo do Google.A chegada da Inteligência Artificial pode piorar essa situação?Sim, porque, na escola, as crianças não têm inteligência artificial, mas, em casa, elas têm. E a IA começa a fazer a tarefa para elas, começa a fazer exercício. E um professor com 35 alunos não vai conseguir, em 200 dias de aula, identificar se o aluno fez, em casa, a tarefa ou se foi a IA. Vamos pegar a maior equação, a mais complicada do mundo: a IA vai resolver para você. Nós ficaríamos duas horas fazendo a equação. Esse ponto é bom ou não é bom? Claro que não é bom. Porque a criança viu que tem um atalho que eliminou o esforço. Ela vai enganar o pai, a mãe, porque a gente não tem controle.O pai pode até controlar algo mais perverso para o aluno — não pode entrar num joguinho. Mas a IA está em tudo. Ela entrou e, para a criança, ela é perversa, porque vai ensinar a criança a fazer alguma coisa com o menor esforço. E a criança vai buscar eliminar o esforço, porque ela vai querer brincar. Nós vamos viver uma batalha. Quem vai vencer isso? Ao proibir o celular, de certa maneira, eu estou salvando um pouco essa criança, porque ela não vai ter acesso à IA e vai ter que utilizar o livro.Agora, por exemplo, a Suécia voltou ao sistema analógico. Se você me perguntar: qual é o futuro da escola? Eu acho que a escola continuará analógica, e o papel do professor vai remeter muito à educação 1.0. A educação filosófica. É o método aristotélico, socrático. É a pergunta e a resposta, é a reflexão. E o professor tem que ter muita capacidade de lidar com esse aluno. Jamais o aluno irá até Machado de Assis, mas Machado de Assis tem que ir até o aluno, para depois o aluno chegar a Machado de Assis. Ou seja, eu tenho que ter mecanismos, metodologias para despertar um aluno a conhecer Fernando Pessoa, sem colocar lá: Fernando Pessoa.No seu livro Giz e Paixão, o ensino é apresentado como uma arte em constante reinvenção, onde educadores são catalisadores de mudanças. Como essa filosofia pode inspirar gestores e professores a construírem ambientes escolares mais inclusivos, inovadores e focados no sucesso de cada estudante?Por que eu escrevi este livro? Este livro é um guia prático para a sala de aula. Porque a gente não encontra guias para o professor. A academia valoriza a reflexão. Eu sou da academia também e valorizo muito a reflexão. Mas a reflexão sem ações concretas pode ficar no vazio. E vejo muitos professores saírem dos cursos de licenciatura e pedagogia sem saber dar aula.Eu ousei fazer um guia prático como se fosse o primeiro passo, para que o professor tivesse uma orientação mais clara. E aí eu deixo os autores clássicos para que os professores continuem pesquisando. E eu chamo isso de giz porque, neste guia prático, eu coloco toda a metodologia, a estrutura, como fazer uma sala de aula começar a funcionar.Mas quando eu terminei o livro, me questionei: com este livro, por si só, o professor consegue dar uma boa aula? Não, porque não basta só o giz. Se ele não colocar a emoção por trás, colocar paixão na história do Brasil ou numa regra gramatical, se ele não envolver o aluno, ele não vai aprender. Acho que todos nós tivemos professores que fizeram a gente se apaixonar por alguma área. Eu sou professor em função de minha mãe ser professora e de outros professores que eram tão enigmáticos. A paixão, para o professor, é fundamental. Aí eu dei o nome Giz e Paixão porque o giz é uma metáfora do conhecimento, da estrutura, do hardware. E tudo isso só vai ter sentido se colocar emoção. Daí eu dei o nome de paixão.Meu livro tem uma coisa interessante: toda a escrita dele é o giz, e no final de cada capítulo tem um QR code com um vídeo meu falando sobre a emoção para fazer aquilo funcionar. Não vai funcionar um professor que não for educador. Se ele não colocar a alma, não vai funcionar. Porque hoje foi-se embora a turma da obediência. Hoje os alunos são movidos por propósito. Vão fazer qualquer coisa movida por um propósito. Eles não vão obedecer por obedecer. Sou de uma geração que obedecia cegamente. Hoje o professor tem que ter a resposta de por que estou ensinando isso, por que tenho um currículo a cumprir. Esse resgate do porquê é a essência da educação hoje. Se não resgatar o porquê estou fazendo aquilo, o professor não consegue dar uma aula melhor. Se o professor não resgatar o porquê de o aluno estar estudando aquilo, ele não vai aprender. Essa volta do porquê é uma questão filosófica. Nós saímos do século XX extremamente pragmáticos: o que fazer, o que dar, como avaliar. É o quê e o como. Hoje é por que tenho que fazer?. Depois que tiver a resposta do porquê, é que vou pensar em como vou fazer isso acontecer. E, por último, o que vou ensinar. E essa mudança é uma mudança que a nova geração nos ensina.O livro traz esse questionamento: por que vou ensinar? Por paixão. Porque sem paixão eu não consigo. É nesse sentido. E por que eu sou professor hoje? Simplesmente, se eu optar por uma profissão por causa de salário, de estrutura, não vou ser professor. Mas, se tiver dentro de você uma resposta, eu digo: o professor é quem mais fica com o ser humano. Ele fica anos e anos, durante 200 dias por ano, quase o dia inteiro com essas crianças na fase mais fundamental da vida. Olha o poder de um professor. Ele tem que encontrar isso de novo. Porque, se ele pegar só a profissão, o salário não compensa, a atividade não compensa. Mas, se ele transformar esse o que ele faz no por que estou fazendo, acho que a gente muda o Brasil.
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