Línguas indígenas: memória vive entre perdas e resistência

No coração das aldeias do nordeste brasileiro, a língua materna indígena pulsa memória, seja no cotidiano, seja em rituais. Entre as comunidades originárias, o idioma é mais que um código de comunicação: é uma ponte viva com os ancestrais e uma forma de manter a identidade coletiva. Mas enquanto alguns povos conseguiram preservar suas línguas, outros lutam contra o esquecimento forçado pela colonização.No Dia dos Povos Indígenas, celebrado neste sábado, 19, o Portal A TARDE traz a vivência dos dois lados dessa história: a luta dos Xukuru-Kariri (AL) para preservar o que restou de um idioma silenciado há gerações, e a resistência do povo Fulni-ô (PE), que mantém viva sua língua sagrada.Para Idyarony Xukuru-Kariri, liderança jovem e voz ativa da aldeia, a língua deles não está morta, mas adormecida. Ela pertence ao tronco linguístico Macro-jê, mais especificamente aos troncos Kipeá e Dzubukuá.“A língua do tronco macro-jê, na verdade, abrange a maioria dos povos do Nordeste, tanto o povo Xucuru, quanto o povo Kariri, quanto o povo Fulni-ô, quanto Tupinambá. Muda porque é como se fosse um dialeto do povo, como a língua portuguesa no Brasil, cada região tem sua forma de falar”, conta.

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A história de silenciamento da língua acompanha o processo de colonização violenta. Idyarony afirma que o Xukuru-Kariri foi um dos povos nordestinos que tiveram o maior enfrentamento na época.“O povo de Xukuru-Kariri nunca quis sair do seu território e entregar de mão beijada, sempre houve confronto, sempre houve embate. Por isso foram os povos que foram rapidamente capturados, catequizados. Nesse processo começaram a perder a língua porque uma coisa que é fato, numa guerra a primeira coisa que você tem que fazer para ganhá-la, é matar a cultura de um povo. E a primeira coisa que você tem que fazer é tirar deles a língua e as suas crenças, foi o que fizeram”, detalha.Segundo Idyarony, a espiritualidade indígena precisou se esconder para sobreviver. A religião sagrada do povo, o Ouricuri, foi o maior refúgio para manter os conhecimentos vivos.“Nesse processo, a parte da crença de fato não morreu, ela foi escondida por muito tempo. Por isso que hoje o Ouricuri é fechado. Foi a partir do processo de colonização que a gente precisou fechar, para que não morresse, para as pessoas acharem que não existiam mais, foi o que fez com que se mantivesse, o que fortaleceu o levante posteriormente. Mas o que sobrou da língua Xucuru-Kariri foram palavras que estão ligadas diretamente ao sentido religioso, que são ocultas e que só são usadas no Ouricuri”, pontua.

Na foto: Ynaykan, Idyarrury, Yaponã
e Idyarony, da aldeia Xukuru Kariri

|  Foto: Raphael Muller

Termos como “Ynatekyé”, que significa “obrigado”, e “Bukuya”, que no cotidiano significa “vamos”, mas no toré é usado como um chamado para “parar”, são utilizados em rituais fechados e também com não-indígenas. Essas palavras demonstram como a oralidade guarda memória.“Tem vários outros termos que a gente usa e são passados de geração em geração de forma oral, não existe cultura indígena ou escrita indígena”, reforça.A perda da língua foi impulsionada pela imposição da catequese, a língua portuguesa e os valores coloniais, como explica Idyarony.“É muito difícil conseguir levantar ou acordar essa língua porque muito foi perdido. A documentação que a gente tem escrita da língua mostra algumas gramáticas escritas pelos próprios padres que vieram nas missões. Só que eles assimilavam o que significava e construíam um sentido para aquilo, é assim que nasceu Tupi-Guarani. Necessidade de entenderem o que os indígenas estavam falando para conseguir se comunicar com eles e catequizá-los. Mesmo assim, não faz nenhum sentido para nós”, ressalta.A língua que vivePor outro lado, a história do povo Fulni-ô, é marcada pela resistência que conseguiu preservar a sua língua: o Yaathe. Com raízes formadas por cinco povos originários – Brobadas, Foclasa, Tapuya e Carnyjó – o idioma é falado no dia a dia, em casa, nas escolas e, principalmente, nos rituais.“Não existem mais esses povos, existem entre famílias, no caso, cada família tem uma forma diferente de falar. Um sotaque diferente e com palavras diferentes também, por isso que a gente se entende, dependendo do seu modo de falar, do meu, de outra pessoa. A gente repassa o ensinamento da língua dentro de casa, com os pais, no dia a dia”, explica o jovem Sainny Fulni-ô, também uma voz ativa na comunidade.Essa diversidade traz as diferenças da linguagem masculina e da feminina. Por exemplo, a palavra “eu”, na variação masculina, é dita como “Oê”, enquanto na feminina é “Ossô”. Já o verbo “vamos” muda para “Yoxtô” na fala dos homens, e “Yooxy” na das mulheres.

Sainny Fulni-ô

|  Foto: Stuart Escoces

Sainny conta que aprendeu o idioma em casa, no convívio com a mãe e os parentes do pai. Dessa forma, acabou dominando duas variações. “Uso somente a masculina, é natural. Mas tem gente que é criado sem pai, só pela mãe, que fala só da variação feminina, isso não é ignorado”, conta.O segredo da preservação está, segundo o jovem, na espiritualidade. “O que fez a gente preservar hoje é o sigilo que a gente tem no nosso ritual, da nossa espiritualidade, das nossas crenças, que é muito importante e que a gente não abriu mão disso para o pessoal não-indígena invadir”, destaca.Durante o Ouricuri dos Fulni-ô, onde entram em reclusão por três meses, o Yaathe se torna a principal via de conexão com o sagrado, sem o uso do portugês. “A gente tem uma conexão com a nossa espiritualidade através do idioma, a comunicação de você chegar e pegar seu cachimbo, sua chanduca, se concentrar e fazer suas preces através do idioma. Os rezos saúdam a natureza e o grande espírito, que a gente chama de Êêdjadwa”, completa Sainny.Educação indígena como preservação da memóriaA educação escolar indígena também tem papel central nesse processo de resistência cultural. Como explica Idyarony, o ensino dentro das aldeias envolve o cotidiano, a natureza e a vida indígena.“Existe a educação escolar indígena que trata de ensinar aos indígenas temas comuns curriculares, só que eles são ensinados de uma forma voltada para a realidade da aldeia. A matemática, se você vai ensinar a contar, você não conta com a tabuada, você conta com semente, com folha, daí entende qual o significado da semente, o sentido da semente, para que serve a folha e aprende a contar com elas. Você aprende o ensinamento do branco, mas você fortalece a sua comunidade”, destaca.Não há rigidez na forma de ensinar a língua e as tradições, desde cedo a criança é envolvida nos torés, nos rezos e nos rituais. “Você nunca vai ver numa aldeia um pai ou uma mãe pegar na mão de uma criança e dizer: ‘é assim que você balança a maraca, é assim que você pisa o pé’. Você vai ver no toré, o pai chamar o filho, pegar na mão dele para ele entrar no toré e, naquele meio, soltar para dançar”, detalha.

Educação infantil nas aldeias

|  Foto: Arquivo Pessoal

Até os cinco ou seis anos, o menino vive sob o cuidado da mãe, aprendendo com ela valores e palavras tradicionalmente femininas. Depois, ele é conduzido pelo pai para um novo ciclo, onde começa a aprender os conhecimentos e responsabilidades masculinas dentro da aldeia, incluindo palavras que apenas os homens usam.“É a língua que faz com que as crianças se sintam curiosas de buscar o conhecimento. Muita coisa que elas veem, ficam curiosas para saber, muitas coisas que elas escutam e elas não podem saber. A língua provoca essa curiosidade nelas de entender, de saber o que é. A língua é também a construção principal do valor da identidade, do entendimento do atendimento”, pontua Idyarony.Do lado Fulni-ô, o ensino bilíngue ganhou ainda mais força com a atuação de lideranças da própria aldeia, como a educadora Marilene, que fundou a primeira escola bilíngue indígena da comunidade. “Está funcionando até hoje, já habituaram também outras matérias, a língua portuguesa, só que mantendo a língua tradicional da gente”, relata Sainny.Apesar disso, há críticas a registros externos da língua. “O dicionário que inventaram foi uma pessoa que é até um parente que conviveu no meio do pessoal, mas saiu da aldeia novo, então ele não tinha tanto conhecimento para fazer um dicionário […] Ele escreveu muita coisa errada que não existe realmente na linguagem. Eu que nasci e me criei vendo como é que é usado as palavras, vejo coisas que não tem nada a ver”, finaliza Sainny.

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