Vamos falar sobre o patrimônio edificado de BH?

No último dia 17 de agosto foi celebrado em nosso país o Dia Nacional do Patrimônio Cultural, e essa data nos faz refletir sobre um dos grandes pilares desse tema em Belo Horizonte: a arquitetura produzida por nossos antepassados, que constitui a identidade urbana da cidade – marcada, em última análise, pela pluralidade, ou seja, pelo convívio de várias expressões arquitetônicas de épocas distintas no território.

Em relação a essa abordagem, antes de tudo, é relevante destacar que um imóvel se torna patrimônio cultural a ser preservado para a posteridade – pelo instrumento do tombamento – quando a sociedade o considera portadora de significativa importância histórica e artística. Vale lembrar que, no caso do patrimônio edificado, estamos nos referindo a uma diversidade de monumentos, incluindo edificações civis, religiosas e militares, bem como conjuntos históricos com valor cultural em âmbito local, regional ou nacional.

Por outro lado, ao tratarmos da constituição do campo do patrimônio cultural no Brasil, não podemos deixar de lado alguns personagens mineiros de grande relevância. Comecemos pelo notável belo-horizontino Rodrigo Melo Franco de Andrade, cujo dia de aniversário ensejou a referida data de comemoração nacional do patrimônio. Em 1937 – por indicação do então ministro da Educação e Saúde do governo Vargas, Gustavo Capanema (mineiro de Pitangui) –, Melo Franco foi responsável por revisar e dar a redação final ao Decreto-Lei n.º 25, de 1937 (conhecido como Lei do Tombamento e ainda em vigor) e, posteriormente, entre 1937 e 1967, consolidar sob sua direção o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) como órgão federal de gestão do patrimônio cultural – atual Iphan.

Os mineiros Gustavo Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Sylvio de Vasconcellos: guardiões do patrimônio cultural do Brasil e de Minas Gerais. (Crédito: CPDOC-FGV, Iphan e UFMG / Montagem).

Cabe recordar que, entre 1945 e 1962, Carlos Drummond de Andrade – mineiro de Itabira e ex-chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema – atuou na antiga Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), sendo responsável pela organização e indexação dos arquivos da instituição. O trabalho de Drummond nesse órgão – com suas virtudes e adversidades – foi eternizado por ele na crônica Rendição de Guarda, publicada em março de 1967 no Correio da Manhã, por ocasião da saída de Melo Franco da instituição:

[…] duas ou três mesas e cadeiras, um arquivo de aço, dinheiro nenhum, e muita coragem silenciosa para agir em termos nacionais, pesquisando, descobrindo, inventariando e recuperando o acervo disperso, oculto, desfigurado, em ruínas (…) A DPHAN existe, e goza de conceito internacional, embora em alguma cidade no interior de Minas ou da Bahia o senhor prefeito Fulustruca dos Bigodes teime em desrespeitar a ação do Patrimônio.

Para encerrar o panorama sobre essa extraordinária geração mineira de guardiões do patrimônio cultural, aproximemo-nos do cenário local e falemos do ilustre arquiteto belo-horizontino Sylvio de Vasconcellos, um de seus maiores nomes. Vasconcellos – nomeado por Rodrigo Melo Franco de Andrade para compor o corpo técnico do Sphan em Minas Gerais – foi um dos grandes responsáveis pela estruturação deste órgão em terras mineiras, atuando desde os seus primórdios, numa longa e heroica trajetória de 30 anos – entre 1939 e 1969. Além de cuidar do patrimônio arquitetônico, Vasconcellos atuou decisivamente na montagem dos grandes acervos dos museus históricos mineiros sob a tutela do antigo Sphan – como os museus de Diamantina, Ouro Preto, Caeté e Sabará. Em Belo Horizonte, foi o mentor intelectual da criação do Museu de Arte da Pampulha, sendo o seu primeiro diretor em 1957. Além disso, a própria produção modernista do arquiteto na capital tornou-se patrimônio cultural do município, reconhecido como Conjunto Arquitetônico Sylvio de Vasconcellos.

Capela Verda Farrar – do antigo Colégio Izabela Hendrix – arquitetura modernista projetada em 1957 por Sylvio de Vasconcellos, em parceria com Paulo Humberto Passos Baptista. Imóvel tombado. (Crédito: Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos).

Feito esse apanhado dos insignes personagens mineiros, agora vamos a um dos mais importantes bens do patrimônio cultural em Belo Horizonte: a arquitetura de valor transcendente – notável realização material que narra a nossa história. Embora muito desfigurada ao longo do tempo, BH conta atualmente com cerca de 1000 imóveis tombados e aproximadamente 1600 em processo de tombamento. Mas, pelo potencial observado na cidade – em termos de riqueza arquitetônica e diversidade tipológica – deveríamos ter centenas e centenas de outros mais tombados; contudo, a equipe da Fundação Municipal de Cultura que produz os preciosos dossiês de tombamento é muito reduzida em relação à demanda da cidade.

Em Belo Horizonte atuam três órgãos de tombamento e proteção de imóveis de interesse cultural: o mais antigo deles, de 1937, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); depois, temos o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), criado em 1971; e, por fim, o mais recente deles, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte (CDPCM-BH), em funcionamento desde 1984.

Prédio Verde da Praça da Liberdade, em estilo eclético, projetado por José de Magalhães – sede do Patrimônio Cultural de Minas Gerais. Imóvel tombado. (Crédito: Ulisses Morato).

No entanto, entre a fundação da cidade, em 1897, e os anos 1970, Belo Horizonte praticamente não teve edificações tombadas. Nesse período, o Iphan tombou apenas dois imóveis na cidade: em 1947, a Igrejinha da Pampulha e, em 1951, o atual Museu Histórico Abílio Barreto. O Iphan, primeiro órgão brasileiro de tombamento, foi estruturado e gerido pelos arquitetos e outros pensadores modernistas, que elegeram – legitimamente, diga-se de passagem – a arquitetura colonial como a verdadeira manifestação da arte nacional digna de preservação. Se por um lado os arquitetos da instituição realizaram uma tarefa monumental e louvável; por outro lado, desconsideraram as correntes arquitetônicas pós-coloniais, exceto a modernista. Sendo assim, entre 1897 e 1975 – ano dos primeiros tombamentos realizados pelo recém-criado Iepha-MG –, Belo Horizonte sofreu um verdadeiro apagão de tombamentos. Esse apagão, que durou cerca de 80 anos, infelizmente possibilitou a demolição de centenas de valiosos edifícios, sobretudo representantes das arquiteturas eclética e Art Déco na capital.

Demolição da antiga Delegacia Fiscal, em 1969. Esse edifício, construído em 1922 em estilo eclético, ficava na esquina das avenidas Afonso Pena e Álvares Cabral. (Crédito: Lab. de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos).

E por que patrimonializar edifícios antigos de Belo Horizonte? Exatamente porque a cidade – formada sobretudo de objetos arquitetônicos – é o maior artefato cultural que já produzimos, sendo um imenso repositório de registros materiais da ação humana nesse território. Assim, a cidade produz registros das formas de trabalho, da organização política, das práticas religiosas, dos modos de morar, de como nos socializamos, de como nos locomovemos, divertimos, estudamos, apreciamos a arte, etc. Sob esse aspecto, podemos comparar a cidade a um grande livro de história a céu aberto, em que os edifícios são as palavras, os quarteirões são as frases e os bairros são os capítulos… e, obviamente, os cidadãos são os leitores. Nesse “grande livro”, é sobretudo a arquitetura que nos conta em detalhes essas histórias, por meio da configuração material e estética das casas, templos, museus, fábricas, estabelecimentos comerciais e monumentos.

Vista aérea do Centro de Belo Horizonte na década de 1950 – período em que diversos estilos arquitetônicos já dividiam o espaço urbano. Atualmente, muitos desses edifícios integram o patrimônio municipal. (Crédito: Acervo IBGE).

Contudo, essa leitura não é fácil, porque estamos tão imersos no cotidiano da cidade e na interação em tempo integral com os edifícios que, normalmente, seus valores históricos e artísticos passam despercebidos. Em relação a esse fenômeno, certa vez o filósofo Walter Benjamin afirmou, em um de seus textos, que a arquitetura é fruição na desatenção. Dessa forma, a arquitetura acaba por ser o bem cultural mais naturalizado que existe e, por isso, é frequentemente banalizada pela sociedade. E todos sabem: qualquer fenômeno cultural que é banalizado decresce em importância social. Em razão disso, ressaltemos a extrema relevância do instituto do tombamento, que lembra à sociedade que os edifícios históricos devem ser preservados para que não percamos os rastros de nossa trajetória civilizatória, que, em última instância, constituem a nossa própria identidade cultural e a noção de pertencimento.

Igreja São Francisco de Assis – projeto modernista de Oscar Niemeyer, integra o Patrimônio Mundial da UNESCO e está tombada nos âmbitos municipal, estadual e federal. (Cartão-postal / reprodução).

Por fim, vale acrescentar que, para além da questão patrimonial, a arquitetura é um dos ativos mais explorados na atividade turística de uma infinidade de cidades. Basta lembrarmos que, sempre que viajamos para cidades como Ouro Preto, Rio de Janeiro, Brasília, Paris ou Roma, procuramos, via de regra, fazer registros fotográficos com os edifícios históricos e monumentos ao fundo – que, por décadas, antes da massificação da imagem digital, foram registrados para a nossa memória em belos cartões-postais.

Antigo cartão-postal com dois ícones do Art Déco de Belo Horizonte, que atualmente integram o patrimônio municipal: o Viaduto Santa Tereza e o Edifício Chagas Dória, à esquerda, em segundo plano. (Cartão-postal / reprodução).

O post Vamos falar sobre o patrimônio edificado de BH? apareceu primeiro em BHAZ.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.