23 de agosto é o Dia Internacional para Relembrar o Tráfico de Escravos e sua Abolição. Mas afinal, a abolição cumpriu o seu papel? A ausência de políticas públicas e de reparação fez com que a escravidão fosse abolida na lei, mas não na prática e, por consequência, seguiu viva nas estruturas sociais. Libertaram corpos, mas não abriram caminhos de acesso à educação, ao trabalho digno e à cidadania para aqueles que, enfim livres, continuaram aprisionados pela cor da própria pele.
No contexto brasileiro, em 1888, quando a Lei Áurea foi assinada, cerca de 700 mil pessoas ainda estavam escravizadas no país. Elas foram libertas sem terra, sem escola, sem oportunidades, empurradas para as margens da sociedade. Esse contingente inicial, enorme para a época, deu origem a milhões de descendentes que até hoje vivem os efeitos dessa exclusão.
Atualmente, os números mostram como esse legado permanece. Cerca de 16 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil. Dessas, 73% se autodeclaram pretas ou pardas — ou seja, aproximadamente 12 milhões de pessoas negras vivendo nessas condições.
E não estamos considerando aqui outros territórios vulnerabilizados, como comunidades quilombolas, áreas rurais empobrecidas, periferias urbanas não classificadas como favelas, regiões do sertão, dentre outros, onde políticas públicas ainda não chegam de forma plena.
Sim, estamos falando de dezenas de milhões de pessoas negras vivendo em condições de exclusão espacial, num contexto pautado pela ausência de infraestrutura básica, políticas públicas e dignidade. Essa é uma face concreta da herança estrutural da escravidão na prática, não só em teoria.
Mais de um século depois da abolição, ainda não partimos do mesmo lugar. Falar de igualdade parece justo, mas esconde a verdade: se os pontos de partida são desiguais, tratar todo mundo igual só perpetua a desigualdade. É por isso que precisamos falar de equidade. Reconhecer que existe uma diferença de partida de oportunidades e de olhares sociais é o primeiro passo para corrigir o caminho.
E o racismo estrutural não é só estatística ou política pública, ele aparece nas relações de todos os dias. Como eu ajo quando uma pessoa negra é cliente, prestador de serviço, colega de trabalho, par romântico ou faz parte do meu círculo social? Muitas vezes, sem perceber, reproduzimos os mesmos mecanismos de exclusão que herdamos do passado.
Recentemente, vivi uma situação que me fez pensar ainda mais sobre isso. Saí de uma loja e o alarme disparou: havia uma peça com lacre dentro da minha sacola. Um funcionário me acompanhou até o caixa, foi atencioso, pediu desculpas pelo inconveniente e resolveu o problema com cordialidade. Fiquei pensando: será que, se eu fosse uma mulher negra, teria recebido o mesmo tratamento? Será que o olhar teria sido também de acolhimento ou de suspeita? E mesmo que a solução fosse a mesma, a abordagem não seria — porque para uma mulher negra, essa situação já chega carregada de atravessamentos históricos e sociais que a tornam muito mais pesada.
É nesse ponto que o racismo estrutural se mostra de forma mais silenciosa: nas pequenas interações do cotidiano. A diferença de partida de oportunidades e de olhares sociais não se expressa apenas em números ou estatísticas, mas também em como as pessoas são vistas e tratadas.
A verdadeira abolição só será cumprida quando todos puderem usufruir, de forma equitativa, de uma mesma estrutura social, democrática e de cidadania — onde a cor da pele não determine atravessamentos de suspeita, exclusão ou violência. E é por isso que falar de racismo estrutural não é apenas discutir políticas públicas, mas também assumir a responsabilidade de cada relação que construímos. O enfrentamento do racismo exige responsabilidade institucional de governos, empresas e organizações para criar condições reais de inclusão. Mas exige também responsabilidade individual, porque são nossas escolhas, nossos olhares e nossas atitudes que sustentam ou transformam estruturas.
Memória não pode ser só data, precisa ser fio condutor de transformação. Essa é a reflexão que se intensifica neste 23 de agosto, mas que precisa ser feita todos os dias.
Fontes:
Robert Conrad, Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil (1978), sobre o dado de 700 mil pessoas ainda escravizadas em 1888.
IBGE, Censo Demográfico 2022, para os números de população em favelas e autodeclaração racial.
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