
Em um e-mail endereçado ao conselho, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) afirmou que não atendeu a solicitação “por falta de vaga” e que entraria em contato “havendo disponibilidade.”
Arquivo pessoal
Os abrigos para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo não têm vagas suficientes para atender a demanda. No começo de agosto, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) abriu uma ação civil pública cobrando uma solução da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) sobre o tema.
A ação, que tramita em segredo de Justiça, é assinada pela promotora de Justiça da Infância e Juventude do MP-SP Sandra Massud. Os abrigos são oficialmente chamados de Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Saicas).
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Segundo o processo, jovens chegam a passar horas dentro dos Conselhos Tutelares à espera de vagas. Quando há a vaga, crianças e adolescentes estão sendo encaminhados para abrigos a quilômetros de distância de suas casas.
Sandra afirmou que, mesmo com decisões judiciais que obrigam a prefeitura a garantir vaga em até duas horas, o município não consegue cumprir a determinação.
“É um problema muito sério, porque, ao mesmo tempo em que a Justiça determina que sejam criadas vagas, a prefeitura acaba contratando de forma emergencial e sem planejamento. Isso não resolve o problema, só perpetua a falta de estrutura”, disse.
Maria da Cruz, conselheira tutelar em Sapopemba, na Zona Leste, relatou dificuldade para conseguir uma vaga de acolhimento para um adolescente atendido pelo órgão na última segunda-feira (25).
Segundo ela, o jovem chegou ao conselho por volta das 7h, mas permaneceu até as 20h sem encaminhamento, mesmo após diversas tentativas de contato com a Central de Vagas da prefeitura.
“Ligamos várias vezes e ninguém nos atendeu. O adolescente acabou pedindo ajuda ao avô, que prontamente veio buscá-lo para dormir em casa. Só no dia seguinte, às 11h, conseguimos a vaga — mas em Parelheiros, na Zona Sul, a quase duas horas de distância de Sapopemba. Isso é recorrente e representa uma falta de respeito com os conselheiros da cidade”, afirmou Maria.
A conselheira disse que já perdeu as contas de quantas vezes adolescentes dormiram no banco da sede por falta de vagas.
Em julho, o Conselho Tutelar Cidade Tiradentes II, também na Zona Leste, registrou um caso parecido. Um adolescente em situação de rua procurou os conselheiros, pediu ajuda para ser encaminhado a um abrigo e passou o dia no local aguardando vaga. Por volta das 22h30, porém, voltou para a rua.
Em um e-mail endereçado ao conselho, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) afirmou que não atendeu a solicitação “por falta de vaga” e que entraria em contato “havendo disponibilidade”.
Segundo a conselheira Juliana Cleiri, que atendeu o adolescente, ele não retornou mais.
No processo, o MP-SP também pede a criação de novos Saicas, com prazo de até seis meses para apresentação de um cronograma, além da ampliação da divulgação do Programa Família Acolhedora, em famílias cadastradas previamente oferecem acolhimento provisório à criança afastada do convívio familiar.
Dados da Smads informam que havia, em 2021, 2.055 vagas em abrigos, distribuídas em 137 unidades.
Em nota, a prefeitura informou que “tem investido no fortalecimento das políticas de proteção à infância. Prova disso é que o orçamento inicial para ações ligadas aos Conselhos Tutelares em 2025 é 23% superior ao do ano passado – R$ 53,6 milhões contra R$ 43,3 milhões” (leia a íntegra abaixo). Não houve resposta, no entanto, sobre a falta de vagas em abrigos.
Vontade política
Para a promotora Sandra, a ausência de vontade política trava propostas já discutidas entre técnicos e gestores.
“Muitas soluções já foram pensadas, mas não são colocadas em prática. Vi pessoas que apresentaram propostas, chegaram a assumir compromissos, mas foram exoneradas na semana seguinte”, relatou.
Ela também cobra a ampliação do Programa Famílias Acolhedoras, que hoje considera “muito pequeno” em São Paulo.
“É muito mais barato para a prefeitura e melhor para a criança, que não fica institucionalizada por mais tempo do que o necessário”, explicou.
Na cidade de São Paulo, O Instituto Fazendo História, organização sem fins lucrativos, atua há mais de 20 anos com crianças e adolescentes acolhidos. A ONG tem parceria com a prefeitura e recebe famílias voluntárias que passam por uma série de entrevistas e análises até se tornarem famílias acolhedoras.
Atualmente, 21 famílias estão aptas para receber crianças de até 6 anos. O Profissão Repórter acompanhou o trabalho do instituto e de famílias voluntárias que decidiram abrir suas casas para receber bebês e crianças em situação de vulnerabilidade e que, por alguma razão, a Justiça determinou o afastamento da família de origem.
Além da falta de vagas, a promotora critica falhas no registro e no acompanhamento dos atendimentos feitos pelos Conselhos Tutelares.
“Tem conselhos que ainda registram em cadernos de papel, com poucas informações. Isso é muito sério. Sem dados confiáveis, fica impossível planejar políticas de prevenção”, afirmou.
Falta de Conselhos Tutelares
Em Perus, na Zona Norte, a conselheira Noeme Silva Batista afirmou que o atendimento ainda é registrado em cadernetas de papel.
Reprodução
A capital precisaria ter pelo menos o dobro de Conselhos Tutelares para atender à demanda de proteção de crianças e adolescentes. A recomendação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) é de uma unidade para cada 100 mil habitantes, mas São Paulo conta apenas com 52 órgãos, número insuficiente para os cerca de 12 milhões de moradores.
O Conselho Tutelar funciona como guardião dos direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cobrando que as políticas públicas funcionem e que a rede de proteção atue de forma integrada em diferentes regiões da cidade.
A cidade de São Paulo possui 52 Conselhos Tutelares, cada um formado por cinco membros eleitos pela população. Eles estão vinculados à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Prefeitura, responsável por providenciar estrutura física, serviços de limpeza e segurança, entre outros apoios.
O g1 conversou com sete conselheiros tutelares das zonas Leste, Oeste, Norte e Sul da capital. Eles relataram sobrecarga de responsabilidades, ausência de recursos básicos — como internet, armários e até telefone — e problemas de articulação entre saúde, assistência social, educação e Justiça. O resultado é um atendimento precário para famílias em situação de vulnerabilidade.
Em Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo, uma mãe com seis filhos, em depressão pós-parto, agrediu um dos meninos. A escola acionou o Conselho Tutelar, mas os encaminhamentos não tiveram retorno da rede.
“A mãe estava tendo atendimento da Casa Ser, mas não tinha acolhimento da UBS [Unidade Básica de Saúde] e do Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], que são equipamentos essenciais nessa fase. A mãe está com depressão, precisa de ajuda”, relatou a conselheira Vanuza Fonseca, que atende no Conselho Tutelar Cidade Tiradentes II.
Sem acompanhamento, o quadro se agravou. A mãe foi presa, e as crianças, retiradas de casa. Hoje, estão sob cuidado de uma tia, que é mãe solo e já cria dois filhos.
“Se a rede não funcionar, essa mãe vai perder os seis filhos. Vai chegar uma hora que a tia não vai aguentar”, ressalta a conselheira.
Casos semelhantes se repetem em outras regiões. Em Perus e Anhanguera, na Zona Norte, a conselheira Noeme Silva Batista afirmou que o atendimento ainda é registrado em cadernetas de papel.
Em Guaianases, na Zona Leste, a conselheira Danielle Cristine disse que estão há quatro meses sem telefone na sede.
Também na Zona Leste, um conselheiro foi alvo de uma ameaça de morte depois que um oficial cometeu um descuido e deixou seu nome aparecer em um documento entregue a um pai.
Na Zona Sul de São Paulo, há relatos de conselheiros que recebem denúncias de abusos e, sem comunicar um oficial, teriam decidido resolver a situação “com as próprias mãos”, segundo dois profissionais ouvidos pelo g1 que não quiseram se identificar.
Já em Pinheiros, na Zona Oeste, apesar de haver melhor estrutura física no local, falta material básico, como armários e pastas, que, segundo a conselheira Carlina Henrique, muitas vezes são comprados com recursos do próprio bolso.
Em Guaianases, na Zona Leste, a conselheira Danielle Cristine disse que estão há quatro meses sem telefone na sede.
Reprodução
Uma defensora pública do estado de São Paulo da área da infância, que pediu para não ser identificada, afirmou que existe uma falta de estrutura generalizada. Segundo ela, o Conselho Tutelar da Sé, no Centro, ficou um longo período sem computadores e arquivos no início de 2023.
Ao g1, ela apontou um entendimento equivocado da função do Conselho Tutelar por parte de outras instituições, como transportar crianças entre serviços.
“A função do Conselho Tutelar é garantir direitos, fiscalizar políticas públicas e, em casos emergenciais, determinar o acolhimento, mas não executar serviços que cabem a outras secretarias.”
De acordo com Sandra Massud, a atuação dos Conselhos Tutelares vai além de simplesmente remover crianças e adolescentes de situações de risco.
“Os conselheiros têm que realizar um trabalho preventivo que é previsto, inclusive em lei municipal, com o objetivo de evitar o acolhimento de crianças e adolescentes. Contudo, é muito difícil da gente ver isso acontecer”, disse.
Já em Pinheiros, na Zona Oeste, apesar de melhor estrutura física no local, falta material básico como armários e pastas.
Arquivo pessoal
O advogado Ariel de Castro Alves, membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB, disse que os órgãos são tratados com negligência e até desprezo.
“Conselhos são órgãos fiscalizadores que requisitam e exigem serviços, políticas públicas e medidas de proteção para as crianças e adolescentes. Isso acaba prejudicando seriamente a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes e as colocando em situações de riscos” afirmou.
“São Paulo está longe de cumprir a resolução do Conanda e várias cidades da região metropolitana também.”
O que fazem os CTs em SP:
Aplicar medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como encaminhamentos, orientações e acompanhamento das famílias;
Buscar alternativas ao afastamento familiar, acionando serviços como Cras, Creas ou outras redes de proteção social para evitar a separação da criança da família;
Elaborar planos de ação com a criança, o adolescente, a família e, quando necessário, com o próprio agente violador, respeitando os limites de cada situação;
Atuar de forma preventiva, buscando proteger crianças e adolescentes antes que seja necessária uma medida extrema, como o acolhimento institucional;
Encaminhar casos graves ao Ministério Público, ao Judiciário ou à Segurança Pública, sem deixar de aplicar as medidas protetivas cabíveis;
Tomar decisões de forma colegiada, com participação de todos os conselheiros, para evitar decisões isoladas ou sem planejamento.
O acolhimento institucional, realizado em unidades chamadas de Saicas (Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes), e popularmente conhecidas como abrigos, deveria ser a última medida, usada apenas quando não há alternativa segura de permanência com a família.
Na prática, porém, faltam vagas. Segundo ação civil pública movida pelo MP-SP na semana passada, crianças e adolescentes estão sendo encaminhados para abrigos a quilômetros de distância de suas casas, irmãos acabam separados, e adolescentes chegam a passar horas dentro dos Conselhos Tutelares à espera de vagas.
“Já tivemos casos de cinco crianças dormindo dentro do próprio conselho, sem nenhuma estrutura para isso. Mas vamos fazer o quê? Jogar na rua?”, indagou Carlina, conselheira em Pinheiros.
Segundo ela, os casos mais comuns na região são de trabalho infantil e mendicância. Ela explica que, embora haja uma equipe da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de São Paulo que realiza abordagens diurnas, no período noturno não há quem faça esse serviço.
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania não respondeu, até a última atualização desta reportagem, sobre o que vem sendo realizado para enfrentar os problemas.
Sistema integrado
O Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), criado pelo governo federal para registrar violações e integrar políticas públicas, praticamente não funciona na capital paulista.
Apesar de a cidade ter registrado 1.087 casos de estupro de vulnerável nos seis primeiros meses deste ano, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o Sipia aponta apenas 49 casos.
Em 2024, a capital contabilizou 2.231 casos do mesmo crime. Nas contas dos conselheiros, porém, foram somente 60 registros.
Conselheiros afirmam que não conseguem acessar a plataforma por falta de internet, falhas técnicas e ausência de capacitação.
“A gente não consegue acessar o Sipia tem vários dias. Quando perguntam por que a gente não está usando, quero saber quem vai defender os conselheiros. O programa não funciona”, disse a conselheira Juliana Cleiri, da Cidade Tiradente II, na Zona Leste.
A promotora Sandra aponta ainda baixa escolaridade de parte dos conselheiros, falta de interesse e até uso político do cargo como entraves para o funcionamento adequado do sistema.
Como consequência, os atendimentos muitas vezes são registrados rudimentarmente em cadernos de papel, sem um banco de dados que permita o acompanhamento adequado.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reconheceu que há desafios históricos na utilização do sistema e que tem promovido uma série de melhorias para qualificar a experiência dos usuários e ampliar a adesão ao Sipia.
“Em 2025, 471 conselheiros tutelares do estado de São Paulo foram capacitados para operar a atual versão do sistema. Esse número representa 49% dos Conselhos Tutelares do estado.”
Políticas para a infância
Profissionais da rede afirmam que a desarticulação entre secretarias e a ausência de políticas contínuas agravam a situação.
“Na prática, tenho visto fechamento de serviços. Fecham com a justificativa de que vão abrir em outro lugar, mas esse serviço não reabre”, disse uma defensora pública que pediu para não ser identificada.
“Como que você elabora um projeto de começo, meio e fim de uma política pública? Quando você sempre começa do zero, fica muito mais difícil.”
Segundo ela, a falta de orçamento na assistência social na gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), com menos verba prevista do que a necessária, impacta salários e repasses a entidades e gera um cenário de sucateamento.
Para 2025, o orçamento destinado à administração dos Conselhos Tutelares no município de São Paulo está previsto em cerca de R$ 50,6 milhões.
No começo deste mês, após protesto de assistentes sociais, Nunes prometeu reajustar o valor de repasse para organizações. Os profissionais conveniados da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social cobraram valores não pagos e o reajuste no repasse às entidades de assistência social que têm convênio com o município.
Segundo a promotora Sandra, mesmo propostas viáveis já apresentadas por técnicos e especialistas tanto da prefeitura quanto do MP-SP não saíram do papel.
“Já participei de reuniões em que técnicos da própria prefeitura assumiram compromissos e, na semana seguinte, foram exonerados”, afirmou.
“Quando você está tratando de um problema social, ele não é definitivo. É uma situação que muda conforme a sociedade e outros problemas que influenciam. O fato é que as soluções muitas vezes não são colocadas em prática.”
O que diz a prefeitura
“A Prefeitura de São Paulo informa que tem investido no fortalecimento das políticas de proteção à infância. Prova disso é que o orçamento inicial para ações ligadas aos Conselhos Tutelares em 2025 é 23% superior ao do ano passado – R$ 53,6 milhões contra R$ 43,3 milhões. Ao longo deste ano, esses recursos já foram atualizados para R$ 54,9 milhões, sendo 77% aplicados até agora para o funcionamento das 52 unidades. Isso inclui remuneração dos conselheiros, locação de imóveis, manutenção, limpeza, veículos, entre outros. Para assegurar melhor estrutura, acessibilidade e condições de atendimento, a atual gestão realizou a transferência de 28 conselhos para novos imóveis, ampliou a banda larga de internet em todos os conselhos, adquiriu novo mobiliário para unidades e fornece materiais de escritório periodicamente.
No caso do Conselho de Guaianases, o local possui linhas móveis de telefone ativas para atendimento emergencial e casos pontuais de manutenção estão sendo acompanhados pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A Pasta também investe em requalificação para os 260 conselheiros tutelares e, em relação ao Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA), ele já é adotado por mais da metade das unidades. Cabe ressaltar que a criação de novos Conselhos Tutelares obedece à legislação municipal e às diretrizes do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente), que consideram não apenas a proporção populacional, mas também a vulnerabilidade dos territórios e as especificidades locais.”