Para editar o livro A Fraternidade (P55 Edição), que será lançado nesta terça-feira (2), às 18h, na Casa Rosa (Rio Vermelho), o compositor, cantor e escritor Manno Góes dispensou o uso de Inteligência Artificial (IA). Apesar de considerar a utilidade das ferramentas, a ficção que mistura acontecimentos reais e fatos históricos se inspira em experiências humanas e pessoais. Para o compositor de hits como Milla e Praieiro, a IA não pode substituir a criatividade e a personalidade dos autores. “Não pode ser fio condutor”, diz. Manno é também diretor da União Brasileira de Compositores (UBC) e voz atuante na defesa dos direitos autorais. Nesta entrevista, ele fala ainda sobre os desafios do mercado digital e a luta pela valorização e remuneração dos criadores no Brasil. “Sem música não existe festa, e sem autor não existe música”.Você já havia lançado um livro em 2014, mas agora estreia como romancista. O que mudou no processo criativo entre uma publicação e a outra?Meu primeiro livro, Acarajé Bour Mercier, de 2014, foi um conto longo, de 90 páginas. Naquele momento, eu escrevia muito “com o fígado”. Já A Fraternidade tem 15 anos de processo. Escrevi outras coisas nesse período, mas não publiquei. No ano passado, retomei a ideia e fiz um trabalho criterioso de depuração e edição. É uma obra com muitos personagens e histórias, que precisei lapidar ouvindo a opinião de outras pessoas. Escrever e publicar são processos diferentes. Ao longo desses 15 anos, amadureci como pessoa e escritor, mas o livro também preserva muito das minhas interações com a literatura. Acho honesto lançar agora esse projeto. Ele traz muito de mim e, ao mesmo tempo, nada: os personagens são autônomos, mas carregam parte da minha vivência. As narrações seguem uma lógica ligada à minha vida, ainda que os personagens não tenham minha essência. Este romance nasce desse processo iniciado há anos e chega agora com ajustes que me agradam dentro da intenção original.Muitos autores têm recorrido à Inteligência Artificial para auxiliar o processo criativo. Você fez uso dessas ferramentas quando revisitou o texto?O livro passou recentemente por uma revisitação, mas em nenhum momento esse processo envolveu o uso de Inteligência Artificial. Até porque ele já estava escrito, completamente pronto. O que fiz nessa edição foi trabalhar cortes, ajustes de estrutura estética, contar com um revisor e dar um acabamento final. Isso, porém, não significa que eu seja contrário ao uso da Inteligência Artificial. Considero essas ferramentas muito úteis. A IA não pode substituir a criatividade e a personalidade do autor. Dou um exemplo: quando escrevi esse livro há 15 anos, precisei pesquisar sobre armas, o funcionamento, a manutenção e a limpeza delas. Eram situações que eu não conhecia. Naquele tempo, usei o Google, sites de empresas do setor e textos especializados. Hoje, com a Inteligência Artificial, seria possível acessar esse tipo de informação de forma muito mais rápida, o que é extremamente prático. O que não é saudável é quando ocorre a despersonalização da capacidade criativa, quando se deixa de ser sujeito e se passa a ser um intermediário para que a tecnologia produza no lugar. Tem grande valor, mas não pode ser fio condutor. Seja na música, na literatura, nas artes em geral. A IA deve ser usada como instrumento de apoio, nunca como substituto da criação humana.Quais são os riscos que esse fenômeno traz para a criação artística e para os direitos autorais?É preciso haver regulação, porque a IA não cria do nada. Ela utiliza insumos, reproduz o que tem acesso, “ouve” discos e recolhe referências para gerar algo considerado original. Essa suposta originalidade não elimina a obrigação de pagar direitos autorais. A ideia de que obras geradas por IA não exigem remuneração é um equívoco, e há debates globais sobre isso. É uma tecnologia que pode ser usada de forma positiva como ferramenta de trabalho. Muitos recursos que já utilizávamos, como loops, timbragens e sons de programas de computador, antecedem essa tecnologia, mas hoje novas plataformas oferecem produtos prontos. A qualidade das músicas criadas apenas por IA ainda é limitada, mas tende a evoluir. Por isso, é fundamental a regulação, para que não substitua a capacidade inventiva humana. Como artista, uso a IA para acelerar processos, como testar rapidamente arranjos e ritmos sem gravar múltiplas versões em estúdio. São facilidades bem-vindas que agilizam o trabalho.Como diretor da UBC, como você avalia a situação dos compositores diante da remuneração que os streamings oferecem?Essa necessidade de um reajuste na forma de pagamento dos streamings é uma discussão mundial. O Spotify, principalmente, não chega a monopolizar, mas é o grande protagonista do modo como se ouve música hoje, especialmente no Brasil. A música digital representa mais de 80% do consumo global, talvez até mais no Brasil. O problema é que a forma de pagamento do streaming ainda é muito injusta com os autores e, mais ainda, com os músicos. As plataformas digitais não pagam mais os chamados direitos conexos [direitos dos indivíduos e entidades que contribuem para que a obra chegue ao público], que antes eram garantidos aos músicos. O Brasil era um dos poucos países que assegurava esse pagamento, mas deixou de fazê-lo ao adotar legislações alinhadas ao modelo americano, que não prevê esses direitos. Voltando aos compositores, o Brasil tem uma das leis de direito autoral mais sólidas do mundo. O Ecad [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição] é uma estrutura muito robusta, de defesa dos autores, de recebimento e de distribuição. Ainda assim, as plataformas de streaming remuneram muito menos do que seria justo. Há uma luta contínua para corrigir essa distorção.De quanto é essa remuneração em média?O valor pago pelo streaming é muito variado, não existe uma quantia fixa. Por exemplo: um assinante do Spotify paga um valor de direito autoral maior do que alguém que ouve pela plataforma gratuitamente. Além disso, cada plataforma paga de forma diferente: algumas remuneram mais, outras menos. Diante dessas variações, é difícil estabelecer um valor exato. O que posso dizer é que, para ter uma boa remuneração, o artista precisa ter um catálogo robusto, vasto, com muitas músicas e muitas execuções. Esse é um ponto crucial. E aí entra um grande problema para artistas independentes. Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso, já que hoje qualquer artista pode disponibilizar sua música, por outro, a concorrência aumentou muito. Existe um filtro muito maior e uma dificuldade enorme em conseguir alcance. Por dia, sobem mais de 220 mil músicas só no Spotify. Enquanto estamos conversando aqui, neste exato minuto, cerca de 10 mil músicas estão sendo colocadas na plataforma. Então, como fazer com que uma música alcance o público em meio a esse volume gigantesco? É muito difícil. Para os artistas novos, que não têm um catálogo grande ou que não construíram carreira antes da era do streaming, os desafios são ainda maiores. Ao mesmo tempo em que o espaço foi democratizado para disponibilizar conteúdo, a competição ficou quase intransponível.Como você imagina o futuro da composição no Brasil, considerando esses desafios?O compositor brasileiro sempre teve papel central na música do país. Nas décadas de 1960 e 1970, durante a ditadura militar, surgiu a ideia de unificar o recolhimento de direitos autorais, criando o Ecad, modelo hoje copiado por países como Inglaterra, Suécia e Suíça. Fico triste quando vejo autores falarem mal do Ecad por ignorância, por desconhecimento de como a instituição funciona. Sou diretor da UBC e conheço o sistema de perto. O Brasil possui leis autorais fortes, sólidas, que defendem os compositores, apesar dos ataques constantes de quem não quer pagar direitos. Quem são esses que ainda resistem? Muitas vezes, prefeituras que querem promover festas sem pagar pelos direitos. Querem palco, microfone, artistas… Tudo pago. Mas o autor, que é a base de tudo, fica de fora. Isso é uma grande injustiça, porque sem música não existe festa, e sem autor não existe música. Outro exemplo são as rádios: cerca de 40% estão inadimplentes, e 100% dessas pertencem a políticos. É uma luta contra o descaso e até contra o ódio. Em outros países, como Inglaterra, Estados Unidos ou Suíça, essa discussão não existe. Lá, está claro no consciente coletivo: se há execução musical, há um autor por trás que precisa ser remunerado. No Brasil, infelizmente, ainda travamos essa batalha. Recentemente, em Santa Catarina, houve uma decisão judicial importante: um parque temático estava utilizando apenas músicas geradas por Inteligência Artificial e alegou que, por isso, não precisaria pagar ao Ecad. O juiz rejeitou o argumento, reconhecendo que a IA se baseia em bancos de dados, discos e elementos protegidos por direitos autorais. Portanto, o pagamento é devido. Essa decisão foi muito significativa. Mostra que utilizar a IA para tentar burlar a lei é, na prática, apropriação indevida. Não é modernidade, é exploração de um trabalho protegido.
“A IA não pode substituir a criatividade e a personalidade do autor”
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