Era 1971 quando oito jovens desceram as montanhas de Minas Gerais rumo ao mar fluminense. Em um casarão isolado na praia de Mar Azul, em Niterói (RJ), o grupo, movido pela música e pela amizade, deu início ao projeto que revolucionaria o universo fonográfico brasileiro e entraria para a história como um dos maiores discos de todos os tempos: o ‘Clube da Esquina’. Dali em diante, a conjugação de sons, palavras e ares revolucionários da obra expandiu ‘antenas e raízes’ e, anos mais tarde, alcançou musicalmente o jovem que despertaria como cantautor e seria reconhecido, quase três décadas depois, pelo The New York Times, como o ‘prince of pop’ brasileiro: Lenine.
O artista pernambucano desembarca em Belo Horizonte nesta quinta-feira (26) para um show gratuito, parte da programação da 2ª edição do Projeto Mesa Brasil. A apresentação, que já está com os ingressos esgotados, ocorre às 20h30 no Sesc Palladium, no Centro da capital mineira.
Em entrevista ao BHAZ, Lenine, que versa disco e palco como equações distintas, afirmou que o espetáculo, de natureza mais intimista, é somente uma das diversas formações de suas apresentações. No repertório, o músico percorre amplamente a sua discografia, incluindo faixas como ‘Simples Assim’, ‘Envergo, mas não quero’, ‘Jack Soul Brasileiro’, ‘Hoje eu quero sair só’, ‘O último pôr do sol’, entre outras. “Tenho esse desejo de burlar a percepção e repetição, e uma das maneiras de fazer isso é vestir as canções de maneira diferente. Ao longo dos anos, percebi a disponibilidade e aptidão que parte do meu repertório tinha de ser transformado com outros arranjos e, mesmo assim, permanecer atraente”, disse.
No “silêncio das estrelas” do céu belo-horizontino, o cantautor se apresentará ao lado do grupo que o acompanha em todos os espetáculos, formado pelo baterista Pantico Rocha, pelo guitarrista Gabriel Ventura e pelo músico Bruno Giorgi, um dos filhos do compositor. Segundo Lenine – que, nos filhos, se viu menino –, a parceria com Bruno, já consolidada há 15 anos, é também uma forma de compartilhar com os seus aquilo que mais ama.
“É mais do que isso, porque estar com ele tem sido a minha sanidade. Bruno não só divide o palco comigo, como também é meu produtor. Sua companhia ameniza o peso de estar sempre viajando, longe de casa. Passei a vida inteira sofrendo um pouco com essa distância”, comentou.
Escola evolutiva do violão brasileiro
Lenine retorna à capital mineira em menos de um ano após a última passagem por BH, quando foi uma das atrações da Virada Cultural, em agosto do ano passado. Na ocasião, o artista se apresentou ao lado do percussionista Marcos Suzano, com quem revisitou a emblemática parceria: ‘Olho de Peixe’, lançado em 1993. Considerado um dos álbuns mais significativos da música brasileira, o trabalho projetou os músicos tanto no Brasil quanto no exterior. Além disso, marcou o fim de um longo ‘hiato’ na carreira do artista pernambucano, que passou dez anos sem gravar.
O disco de estreia de Lenine, ‘Baque Solto’ (1983), fruto da parceria com Lula Queiroga, nasceu a partir de uma temporada no Teatro de Ipanema. O cantor, que havia abandonado o curso de Engenharia Química na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no fim da década de 1970, mudou-se para o Rio de Janeiro para se dedicar à música e começou a trajetória artística se apresentando ao vivo. Em um show realizado à meia-noite, chamou a atenção não somente do público, mas também de Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Polygram. No dia seguinte, já estava em estúdio para gravar o LP, que trazia o mesmo repertório do espetáculo e buscava recriar o ambiente teatral. Apesar disso, o álbum teve pouca repercussão. Até o surgimento de ‘Olho de Peixe’, Lenine se dedicou à criação de jingles publicitários, composições e até mesmo a trabalhos esporádicos como roteirista.
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O artista revelou que tanto ele quanto Marcos sabiam que aquele disco seria especial, pois carregava uma essência de organicidade e artesanato. A partir dali, a onda que quebrava na praia se tornaria também um divisor de águas para todos os envolvidos na produção. “Eu sabia que esse trabalho duplo era uma fotografia muito importante. Era um novo caminho que se abria de uma música contemporânea brasileira e que já dialogava, de outra maneira, com os sons, as notas e as palavras. Mas, ao mesmo tempo, não sabia até onde ia”, explicou.
Foi com ‘Olho de Peixe’ que o público passou a ouvir com nitidez a voz e a sonoridade acústica – tão singular e característica – do violão de Lenine. A partir dali, o compositor passou a integrar o que seria a ‘linha evolutiva do violão brasileiro’, ao lado de marcos como ‘Chega de Saudade’ (1959), de João Gilberto, e ‘Samba Esquema Novo’ (1963), de Jorge Ben Jor. “Descobri, mesmo sem querer, um sotaque na maneira de tocar. A minha relação com o instrumento não foi acadêmica e, por isso, percorri um caminho diferente. Enquanto a maioria dos violonistas que conhecia trabalhavam com a repetição até fazer uma execução perfeita, eu, por outro lado, estava procurando justamente os ruídos que poderia tirar do instrumento. Isso me levou também a pesquisar outras maneiras de sonoridade”, disse.
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Ao longo da carreira, o músico acumulou mais de 500 composições – entre obras solo e parcerias –, além de conquistar sete prêmios Grammy Latino, 12 Prêmios da Música Brasileira e dois troféus da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). “Outro fator que, acredito, contribuiu para o sucesso do disco foi a busca do [Marcos] Suzano por criar uma harmonia com a percussão. Tudo foi afinado conforme a tonalidade de cada canção no momento da gravação. Houve um processo de descoberta, tanto para mim quanto para ele. Nós não estudamos para produzir e, ainda assim, conseguimos fazer acontecer”, comenta.
Além da ‘raiz’ e da ‘antena’
Assim como ‘Olho de Peixe’, a liberdade criativa também foi a essência e o espírito do álbum ‘Clube da Esquina’. Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e Ronaldo Bastos não seguiram estratégias nem fórmulas, mas criaram a partir do que sentiam, de forma espontânea e intuitiva, revezando-se entre diferentes instrumentos, mesmo que a maioria deles não tivesse formação musical. Ao ouvir o disco pela primeira vez, Lenine percebeu que aquela música não ficava atrás de nada que viesse de fora.
“O Milton deixou em evidência diversos grandes criadores. Pude acompanhar a trajetória dele desde novinho. Cada disco que ele lançava era sempre uma coisa impactante e emocionante. A descoberta daqueles discos, das harmonias, das vozes de Milton…”, contou.
Conforme o músico, Milton inaugurou uma sigla na música brasileira – a MCB (Música Contemporânea Brasileira) –, da qual se considera parte. Além disso, Bituca desprendeu-se de “antenas e raízes” para irradiar no divino. “Sempre achei que a música não deveria ter nenhum adjetivo depois da palavra ‘música’. Para mim, sempre foi música…, com reticências, para mostrar que ela está em movimento. Milton, e tudo o que o envolve, inaugura um momento: o lugar do divino e da contemplação, onde a música toca a alma de um jeito que ‘raiz e antena’ já não importam tanto”, reitera.
Ao mesmo tempo em que a crônica lunar, barroca e interiorana de Bituca atravessou o compositor pernambucano, a cadência paraibana de Jackson do Pandeiro – o “Rei do Ritmo” –, homenageado por Lenine em ‘Jack Soul Brasileiro’, lhe deu tom e compasso. “Ele me mostrou as infinitas possibilidades do swing, do coco, das divisões rítmicas, das cacofonias e dos trocadilhos. Além disso, todo o jogo da poesia e das palavras. Tudo isso o Jackson me ensinou”, disse.
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Para o ‘Leão do Norte’, nas múltiplas expressões do sertão mineiro e da cultura nordestina, os caminhos se cruzam e, nesse encontro, revelam-se semelhanças profundas. “Eu já tinha tido todas as certezas de que o povo nordestino e o mineiro tem muitas coisas em comum, principalmente ao ler Guimarães Rosa pela primeira vez (risos). Acho que há uma divisão entre a música solar, litorânea, e a música lunar, interiorana. E a música lunar nordestina é muito similar a música mineira, porque são expressões do interior de cada um. Por isso, digo com propriedade que me sinto um pouco mineiro”.
Trilha, experimentação e novos rumos
A ligação com Minas se estreitou ainda mais quando Lenine compôs para dois espetáculos do Grupo Corpo – Breu (2007) e Triz (2013). Embora já tivesse criado músicas para outras linguagens, como o cinema e o teatro, o convite foi inesperado e transformou maneira dele compor. Na época, as únicas coordenadas do coreógrafo Rodrigo Paneiras foram que o balé só começaria a ser montado após a trilha estar finalizada e que eram necessários mais de 40 minutos de música.
“O que mais me surpreendeu foi quando ele disse: ‘só me mostre quando achar que está pronto’. Não houve briefing. Era só fazer e me divertir. Descobri ali outra forma de entrar no estúdio, sem saber o que viria. O único estímulo era acalentar aqueles corpos e estimulá-los para se exprimir. A partir dali, passei a entrar no estúdio assim também para gravar meus discos”.
Criar um álbum para o cantautor sempre foi um terreno de experimentação, que o levava a explorar novos caminhos. Neste ano, o artista voltou ao “laboratório” para gravar Eita!, seu 14º disco de estúdio, com lançamento previsto para outubro nas plataformas digitais. “Sempre me entrego no processo de fazer e sempre entendi cada projeto que fiz como o maior, mais incrível e presente. É assim que trabalhamos, queremos melhorar o tempo inteiro. É natural fazer analogia dos projetos como se fossem filhos, e o mais novo sempre requer um pouquinho mais de atenção (risos), disse.
Quem não conseguir assistir ao show em Belo Horizonte nesta quinta-feira (26) vai precisar de “um pouco mais de paciência” e aguardar o retorno de Lenine a Minas Gerais, previsto para o dia 11 de julho, durante o 51º Festival de Inverno de Itabira. A apresentação, assim como no Sesc Palladium, será gratuita. Participante ativo de projetos culturais acessíveis, o artista já encenou um espetáculo sobre a Ponte Maurício de Nassau, em Recife – e fez uma multidão balançar o marco simbólico da cidade e “caminhar sobre as águas”. O alvoroço foi tanto que acabou motivando a criação de uma lei municipal proibindo eventos em pontes.
Para Lenine, ocupar espaços públicos e contribuir com música tem uma função histórica e educativa. “A cultura é a nossa grande expressão de reconhecimento, de nascimento e formação. Qualquer ser humano tinha que estar disponível para ela. Sempre fiz achando que estava fazendo para o mundo, pois estou dando a minha visão sobre as coisas e, por meio das canções que faço, eu abordo esses temas. Me agrada muito fazer parte disso, porque cultura é bem essencial”, finaliza.
Anota aí!
Show de Lenine no Projeto Mesa Brasil Musical 2025
Data: 27 de junho, quinta-feira
Horário: 20h30
Local: Sesc Palladium | Rua Rio de Janeiro, 1.046 – Centro, BH
Ingressos esgotados
Lenine no 51º Festival de Inverno de Itabira
Data: 11 de julho, sexta-feira
Horário: 10h30
Local: Concha Acústica | Pico do amor, S/N – Campestre, Itabira
Mais informações em @fccda
O post Lenine faz show intimista em BH, revela relação com Minas e anuncia novo disco apareceu primeiro em BHAZ.