
Ophioblennius ainda não descrito encontrado na ilha de Ascensão
Sergio Floeter
No meio do Oceano Atlântico, a milhares de quilômetros de qualquer continente, três ilhas remotas escondem segredos que intrigam a ciência. São Pedro e São Paulo (Brasil), Ascensão e Santa Helena (territórios britânicos) parecem distantes demais para estarem conectadas.
Mas uma pesquisa recém-publicada na revista Proceedings of the Royal Society B revela o contrário: essas ilhas formam uma única unidade biogeográfica, com espécies de peixes únicas e histórias evolutivas dignas de filme.
“Foi surpreendente perceber que o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, que por décadas foi considerado parte da Província Biogeográfica Brasileira, na verdade pertence à Província do Atlântico Central, junto com Ascensão e Santa Helena”, explica Sergio Floeter, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor sênior do estudo. As ilhas compartilham 88 espécies de peixes, incluindo 46 que só existem ali.
Ilhas de Ascensão formam uma unidade biogeográfica única e guardam linhagens de peixes mais antigas que o próprio solo onde vivem
Sergio Floeter
Algumas espécies analisadas geneticamente ainda não têm nome científico. Uma delas é um pequeno peixe do gênero Ophioblennius, identificado como uma nova espécie que aguarda descrição formal. Veja abaixo algumas características da fauna estudada.
Peixes que conseguem chegar às ilhas (não endêmicos):
Têm corpo maior, o que ajuda a nadar longas distâncias e sobreviver por mais tempo em mar aberto.
Vivem em profundidades mais amplas, ocupando desde águas rasas até regiões mais fundas dos recifes.
São em sua maioria desovadores pelágicos, ou seja, liberam ovos na coluna d’água, favorecendo a dispersão.
Muitos têm capacidade de “rafting”, conseguindo viajar agarrados a objetos flutuantes como troncos e algas — o que aumenta suas chances de colonizar ilhas remotas.
Peixes endêmicos (exclusivos das ilhas):
São geralmente menores e com alcance geográfico muito limitado — muitas vezes restritos a uma única ilha;
Desovam de forma demersal, ou seja, depositam ovos no fundo, o que reduz a chance de dispersão;
Têm menor capacidade de rafting e menor plasticidade ecológica;
Apresentam combinações únicas de traços funcionais, o que os torna insubstituíveis dentro do ecossistema;
São funcionalmente vulneráveis: se uma dessas espécies desaparecer, não há outra com as mesmas funções ecológicas para ocupar seu lugar.
Linhagens mais antigas que as ilhas
Duas espécies endêmicas de Ascensão, o Thalassoma ascensionis e o Scartella nuchiphilis, são ainda mais curiosas. De acordo com as análises genéticas, elas surgiram antes mesmo da ilha existir.
O Labrídeo (Thalassoma sanctaehelenae) é uma marcante espécie endêmica das ilhas de Ascensão e Santa Helena, localizadas ao longo da Dorsal Mesoatlântica
Luiz Rocha
“Linhagens antigas podem ter colonizado inicialmente montes submarinos, agora submersos, que antigamente forneciam habitats rasos adequados. Além disso, os montes submarinos provavelmente atuaram como impulsionadores da diversificação”, diz.
Dentre eles, os montes submarinos Grattan, Cardno e Bonaparte, situados entre Ascensão e Santa Helena, podem ter sustentado a diversificação de linhagens, contribuindo significativamente para a alta sobreposição de espécies e para uma identidade coesa da Dorsal Mesoatlântica.
Viagens à deriva
Além dos registros antigos, há também aventuras mais “modernas”. Espécies de ampla distribuição, como o popular sargentinho (Abudefduf saxatilis), chegam às ilhas graças à sua incrível capacidade de viajar longas distâncias – principalmente durante a fase larval, quando flutuam no plâncton por semanas.
Sargentinho (Abudefduf saxatilis)
JP Krajewski
Muitas pegam carona em materiais como troncos e algas flutuantes, como o sargaço, o que facilita ainda mais a travessia de oceano aberto.
Já outras espécies têm uma rota mais improvável: vieram do Oceano Índico, contornando o extremo sul da África pela corrente de Agulhas. É o caso do peixe-borboleta de Santa Helena (Chaetodon sanctaehelenae), um dos destaques do estudo.
“É curioso pensar que seus ancestrais fizeram esse percurso e vieram parar no meio do Atlântico”, comenta o pesquisador.
Ameaças e descobertas
O estudo também aponta um alerta: os peixes endêmicos dessas ilhas têm distribuição geográfica muito restrita e populações pequenas. Isso os torna altamente vulneráveis a mudanças climáticas e impactos humanos. Segundo Floeter, um único evento de grande escala pode colocar essas espécies em risco de extinção.
A pesquisa reforça a importância de olhar com mais atenção para os recantos isolados do planeta. “Essas ilhas nos ajudam a entender como a vida marinha evolui, persiste e se adapta — mesmo em ambientes extremos e solitários”, conclui Floeter.
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