Feito o pregão. Dona Maria, idade bem avançada. Minha “função” era determinar se ela seria capaz de exercer autonomamente os atos da vida civil. Adianto: ela não era.Achava que os filhos, já idosos, eram crianças. Não sabia em que ano estávamos. Imaginava que sua mãe, falecida há décadas, ainda estava viva.Ao publicar minha decisão, meus olhos se voltaram para a frase protocolar: “não demonstrou apresentar lucidez suficiente para os atos da vida civil”. E então me perguntei: o que é exatamente “lucidez”?Eu havia presenciado ali algo tão verdadeiro, tão presente, tão mais vivo do que muita conversa dita lúcida por aí.Chegou aparentemente frágil, com um vestido de cores desbotadas. Disse que queria outro mais bonito, mas precisou ser ligeira para chegar devidamente no horário e só havia encontrado aquele. Vi que se preocupava com a aparência e tinha senso de compromisso.A tensão era visível. Quando percebi seu nervosismo, estendi minha mão. Ela segurou de forma delicada e firme ao mesmo tempo. Criamos um vínculo silencioso. Acalmou-se. Demonstrou capacidade de criar conexão.Disse que queria “andar muito, andar pro alto, tomar sol”. Com orgulho, contou que fazia tudo em casa, que era formada, que já tinha ensinado muita gente. Manifestava desejos, rotina, afeto, autonomia e orgulho de si.Perguntei-lhe de onde vinha e, com precisão, respondeu: “Eu vim de dentro da minha casa.” Eu ali, avaliando orientação espacial, e ela me entregando uma verdade que transcendia qualquer confusão geográfica.Ofereci-lhe um café. Os olhos se iluminaram! “É que o café esquenta a gente. Gosto de café com açúcar, pouco, só pra matar saudade.” Havia poesia em suas palavras, mesmo quando desconexas da realidade. E eu, naquele instante simples, também me senti aquecida. Matei saudades que nem sabia que tinha.Quantas pequenas alegrias do cotidiano vão silenciosamente desaparecendo? Mesmo com todas as confusões, me olhou com ternura. Perguntei se voltaria outro dia para um café. “Volto, porque amei o seu rosto!”Eu sabia que ela nunca mais retornaria. E genuinamente senti a doçura da saudade de tomar um café segurando a mão da Dona Maria.E aí vem uma reflexão: não se trata de negar a necessidade de apoio. Trata-se de reconhecer que, mesmo com essas necessidades, Dona Maria continua sendo alguém por inteiro. Sua desconexão com a realidade objetiva é clara. Mas há outra realidade — feita de afeto, de memória sensorial, de vínculos que não precisam ser nomeados para serem sentidos. E essa realidade é tão humana quanto qualquer lucidez formal.Nesse contexto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) provocou uma verdadeira revolução no tratamento jurídico da capacidade civil. Hoje, mesmo quem não pode praticar atos patrimoniais sozinho, mantém capacidade plena para os direitos existenciais.Dona Maria pode não compreender contratos, mas sua vontade importa. Ela é uma pessoa inteira e viva, mesmo que precise de representação.Algumas coisas não são escritas nos autos. Porém, ficam escritas dentro da gente. Ainda não sei dizer, clinicamente, o que é lucidez. Mas a minha, nesse dia, foi aprender que, embora eu tome café sem açúcar, meu café amargo, a partir de agora, será doce de saudade.*Nomes e características foram alterados para preservar dados sensíveis
Ensaio sobre a lucidez
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