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Nove meses após a Semana de 22, morria aos 41 anos no Rio de Janeiro, então a capital do Brasil, o escritor e jornalista negro Lima Barreto, que apesar do distanciamento formal daquela turma de artistas é considerado por alguns pesquisadores o virtual pioneiro do movimento em terras brasileiras. Uma discussão que ganhou novo capítulo com o livro Modernismo Negro, do professor e escritor baiano Jorge Augusto, , que acaba de conquistar o Prêmio Jabuti Acadêmico, na categoria Letras, Linguística e Estudos Literários. Nesta entrevista, Jorge Augusto explica a dimensão do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, livro publicado originalmente com recursos do próprio escritor, que aborda a dificuldade histórica que autores negros têm de publicar e conversa sobre a experiência da editora baiana Segundo Selo, sediada na Liberdade e focada em escritores afro-brasileiros e que publicou o seu premiado livro. Exemplares podem ser adquiridos através do site: editorasegundoselo.com.brProfessor, primeiramente, parabéns pelo livro e pelo prêmio. Lima Barreto sempre foi considerado um pré-modernista, uma ponte entre Machado de Assis e o modernismo. A sua hipótese no doutorado é que ele era, sim, um modernista negro. Como foi esse processo? A tradição literária brasileira o coloca como um pré-modernista, o que não era nem um movimento, mas como um momento de transição. Em 1962, um pesquisador norte-americano, Gregory Rabassa, esteve aqui e escreveu um livro sobre o negro na literatura brasileira e que disse textualmente: o único autor que levou a cabo os objetivos modernistas foi Lima Barreto. E a gente fica falando de Lima Barreto não ser pré-modernista como uma coisa nova. Essa discussão voltou nos últimos anos porque a gente estava perto do centenário da Semana de 22 e do Bicentenário da Independência. E nos livros dos pesquisadores de Lima Barreto ele é situado como modernista e não como pré-modernista. Quando eu comecei o meu trabalho, eu desconfiei logo disso. Como ele era modernista, se justamente ele foi tirado da historiografia modernista porque não cabia nela? De repente, ele cabe? O que se estava tentando fazer era pegar uma pessoa disruptiva, com uma obra que de certa forma é muito contrária ao que os modernistas fizeram, e tentar encaixá-la no modernismo, porque assim você estanca o poder disruptivo dessa obra, você a bota em uma caixa que já está pronta. Você vai coordenar as interpretações que vão ser feitas sobre a obra. Lima Barreto é modernista. Pronto. Você determina o que vai ser interpretado sobre ele dentro daquela caixinha de modernista. Aí eu falei: isso não faz o menor sentido com ele ou com os textos dele. Quando os modernistas tentam contato com Lima Barreto, ele dá risada da Klaxon, que era a principal revista dos modernistas. A galera respondeu muito mal a ele, e ele já estava doente e veio a falecer meses depois.
Quando eu digo que Lima Barreto não pode ser visto como um modernista, é principalmente porque ele discorda absolutamente da ideia de mestiçagem. Ele tem parecenças formais com o que o modernismo fez, como apresentar uma língua mais próxima da oralidade, por exemplo. Isso seria como uma antecipação do modernismo. Mas não pode ser tomado como antecipação, porque implicaria reconhecimento. E Lima Barreto não está em nenhum texto desse contexto, não é nem citado por nenhum historiador modernista. Isso de ele ser modernista é dito pelos pesquisadores de Lima Barreto, não pelos pesquisadores do modernismo, que não citam Lima Barreto.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano
Qual o conceito de modernismo negro?
O que eu chamo de modernismo negro não é um autor negro que estava escrevendo durante o período em que o modernismo aconteceu. O que eu chamo de modernismo negro é uma crítica à modernidade, a partir da experiência negra e periférica do povo brasileiro. É uma coisa bem diferente e, a rigor, bem contraditória em alguns aspectos ao modernismo de 22.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano
Por exemplo, a preocupação central é a dependência cultural e a produção de uma identidade nacional. Esses eram os dois desafios principais da inteligência brasileira na passagem do século 19 para o 20, quando a gente estava se tornando uma república. Lima Barreto não tinha essas duas preocupações. Tinha a preocupação de produzir uma ontologia do homem negro, da pessoa negra, e em pensar uma sociedade democrática e liberal que passaria por considerar essa pessoa negra como um ser humano. Não tinha democracia, como não tem até hoje.
Reontologizar essa pessoa negra, mostrar a humanidade que havia na periferia, na memória negra, na oralidade do povo negro, a cultura que circulava ali, foi o que a obra dele fez. Mostrar que esse povo tem saber, tem cultura, tem uma tradição e essa tradição está na memória desse povo, na oralidade desse povo e no território desse povo. Por isso que o subúrbio é muito importante na minha obra. É no subúrbio que a memória negra e a língua da população mais pobre e preta do Brasil circula mais livremente.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano
O pai de Lima Barreto era monarquista. O escritor tinha simpatia pela monarquia?Não, eu discordo completamente disso. Isso é uma besteira, sinceramente. O povo fica falando que Lima Barreto tinha saudade da monarquia, ele nunca teve. O que Lima Barreto fazia era denunciar que as estruturas escravocratas tinham migrado inteiramente para a República. Tem uma cena dele em Os Bruzundangas que narra que os deputados que estavam fundando a República dos Bruzundangas eram os mesmos homens escravocratas. Isso não é saudosismo da monarquia, é outra coisa. Ele está denunciando que essa pessoa negra continua sendo representada como sub-humana e o racismo continua mediando o núcleo das relações sociais. Tem essa frase famosa dele, de que o Brasil não tem povo, tem público. Continua atual? É a ideia de que o público assiste, o povo participa. Ele estava falando dessa nossa democracia representativa e, na verdade, antecipando em décadas essa crise da representação que a gente tem hoje. A gente vota em uma pessoa para nos representar e ela não nos representa, representa os seus próprios interesses privados. Um exemplo absurdo disso são as bancadas na Câmara (bancadas temáticas, como evangélica, do agronegócio, etc).
A Câmara não é para ter bancada, é para defender um projeto de nação. E não projetos de grupos, seja lá quais grupos forem. Então, quando ele fala de povo e público, ele está falando de uma democracia inconclusa, que nunca se solidificou. E não se solidificou porque o povo preto nunca participou dela. Esse é o núcleo estruturante para mim. Não há democracia porque o povo negro, que é metade desse país, nunca foi incluído nesse processo democrático.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano
Seu livro dialoga, de alguma forma, com as biografias de Lima Barreto escritas por Francisco de Assis Barbosa e Lilia Schwarcz?Não. Meu trabalho é uma crítica a um funcionamento da crítica literária brasileira, que destina aos autores negros uma crítica biográfica e documental. Eu só trabalho com romances. É como se a maior contribuição que o escritor negro pudesse dar para a literatura brasileira fosse documentando o tempo e a sua vida de superação ou sendo o biógrafo do país, que é o lugar em que você coloca os quatro maiores autores negros da história: Maria Firmina, Luiz Gama, Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus. O que eles são, no fundo, para a crítica literária? Biógrafos do Brasil. Contam a história do país. Mas não é isso que a literatura negra faz. Aliás, toda a literatura. Kafka, Proust, Lima Barreto, Machado de Assis. A literatura em algum momento está contando algum tipo de história sobre o seu tempo.
Não que seja na forma do texto, mas sobretudo o que a literatura negra tem feito é nos dar a possibilidade de imaginar possíveis futuros, diferentes dessa lógica neoliberal e predatória que a gente vive. Por exemplo, é na literatura negra, quilombola e indígena que você vai ver um outro tipo de relação com a natureza, que não é destruindo o planeta. É na literatura negra que você vai ver uma ética comunitária, capitaneada sobretudo pelas mulheres negras. O que a literatura negra traz é mostrar que podemos viver um outro mundo, e não documentar esse mundo. Documentar esse mundo é muito pouco.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano
Apesar da vida curta, Lima Barreto teve uma presença importante no jornalismo. E uma curiosidade é que Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado originalmente com recursos próprios. O que mudou desde então para o escritor negro?O primeiro livro dele, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, saiu em Portugal. Outros livros foram financiados por ele próprio. Isso é algo muito comum na literatura negra. O maior sucesso editorial do Brasil hoje se chama Cadernos Negros, publicação que chegou à 50ª edição. Uma iniciativa que tem mais de 40 anos e é uma autopublicação.
A autopublicação foi o meio pelo qual os autores negros puderam publicar ao longo da vida. Não foi algo de Lima Barreto. E isso é óbvio. Autores que viviam outro país e contavam outra história, obviamente não conseguiriam viabilidade editorial. Aliás, eu venci um prêmio nacional de literatura, que é muito badalado, há nove dias [esta entrevista no dia 11 de agosto] e até agora eu não fui procurado por nenhum jornal do Sudeste. O Estado de Minas fez uma ótima resenha do livro, mas que já estava programada antes da premiação.
Jorge Augusto – Professor e escritor baiano