6 filmes clássicos brasileiros que seriam cancelados hoje

Você já reassistiu a um clássico brasileiro e ficou desconfortável com alguma cena? Se sim, você não está sozinho. O cinema nacional, assim como outras expressões artísticas, reflete o tempo em que foi produzido — e isso nem sempre é positivo. Filmes que antes emocionaram e divertiram plateias inteiras hoje são alvo de críticas por representações consideradas racistas, machistas, homofóbicas ou simplesmente ultrapassadas.

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Filmes brasileiros consagrados provavelmente enfrentariam duras críticas e seriam “cancelados” se fossem lançados nos dias de hoje. Em meio a debates cada vez mais presentes sobre representatividade, ética e responsabilidade, essas obras passaram a ser vistas sob um novo olhar. A intenção é entender como a evolução das discussões sociais transformou a forma como o público e a crítica enxergam o cinema nacional — e por que certas narrativas, antes aplaudidas, hoje causam incômodo.Como a sociedade passou a enxergar o audiovisual com outros olhos?Nas últimas décadas, temas como racismo, machismo, homofobia, transfobia, gordofobia e capacitismo deixaram de ser marginalizados para ocupar o centro dos debates culturais. Impulsionadas por movimentos sociais organizados e pela força das redes sociais, essas discussões ultrapassaram os limites acadêmicos e passaram a influenciar diretamente o modo como consumimos, interpretamos e produzimos arte, especialmente no cinema. É nesse contexto que surgem os filmes que seriam cancelados hoje.As redes sociais, em especial, se tornaram ferramentas poderosas para expor problemáticas em obras audiovisuais, compartilhar vivências marginalizadas e ampliar o alcance de vozes que antes não tinham espaço no debate público. O olhar do público sobre o audiovisual tornou-se mais crítico, atento a estereótipos, apagamentos, violências simbólicas e narrativas excludentes que, por muito tempo, foram tratados com naturalidade ou até exaltados como entretenimento.É nesse ambiente que surge o conceito de “cancelamento” — uma reação coletiva, muitas vezes viral, que busca responsabilizar figuras públicas, empresas ou produtos culturais por discursos ou atitudes considerados ofensivos, discriminatórios ou antiéticos. Embora polêmico e nem sempre justo, o cancelamento provocou uma revisão intensa da produção cultural, fazendo com que o setor audiovisual repensasse não só o conteúdo atual, mas também o legado de obras do passado.6 filmes clássicos brasileiros que seriam cancelados atualmenteDona Flor e Seus Dois Maridos (1976)

Filme é baseado em um dos livros de Jorge Amado

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Direção: Bruno BarretoSinopse: Ambientado na Salvador dos anos 1940, o filme acompanha a trajetória de Flor, uma professora de culinária que, após a morte do marido Vadinho — boêmio, sedutor e irresponsável —, se casa com o farmacêutico Teodoro, um homem conservador e moralista. Tudo muda quando Vadinho retorna do além como espírito, passando a dividir o afeto (e a cama) de Flor com o novo esposo.Embora tenha sido um enorme sucesso e seja considerado um clássico do cinema nacional, o longa trata com naturalidade e até humor situações que hoje seriam reconhecidas como assédio e estupro.Em uma das sequências mais conhecidas do filme, Vadinho, invisível, mantém relações sexuais com Flor enquanto ela dorme. A cena é conduzida como uma fantasia erótica, mas à luz das discussões atuais, poderia ser interpretada como um caso de estupro de vulnerável, já que a personagem está inconsciente.A Dama do Lotação (1978)

O filme é considerado um clássico da pornochanchada

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Direção: Neville D’AlmeidaSinopse: No enredo, Solange (Sônia Braga) é violentada pelo próprio marido na noite de núpcias. Abalada e traumatizada, ela se recusa a manter relações com ele e passa a buscar prazer com desconhecidos dentro de ônibus lotados pela cidade do Rio de Janeiro, mergulhando em uma vida sexual marcada por encontros anônimos e frequentes.O filme — que alguns debatem que se propõe a explorar o erotismo e a repressão sexual feminina — acaba transformando o estupro em ponto de partida para o “despertar” sexual da protagonista, o que hoje é visto como extremamente problemático. Ao narrar a violência com estética sensual e tratar a dor da vítima como uma espécie de libertação, a obra fetichiza o trauma e reforça a ideia nociva de que o abuso pode gerar prazer. Além disso, a sequência do abuso sexual é mostrada com trilha sensual e foco no prazer da vítima.Considerado um clássico da pornochanchada, se lançado atualmente, o filme seria cancelado por fetichizar a violência sexual e explorar o corpo feminino de forma irresponsável.O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão (1977)

Longa possui muitas piadas consideradas racistas

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Direção: J.B. TankoSinopse: Os amigos Pilo e Duka ganham a vida em brigas simuladas nas praças públicas, enquanto Fumaça recolhe apostas. Pensando que são homens corajosos, a jovem Glória contrata os três para uma expedição às minas do Rei Salomão, onde o pai dela, o arqueólogo Aristóbulo, é prisioneiro e oferece como prêmio um fabuloso tesouro desconhecido do qual ela tem a única pista existente.Embora seja lembrado com nostalgia por muitos, o longa reproduz uma série de estereótipos racistas — tanto na ambientação quanto nos personagens. A representação de africanos como “selvagens” ou figuras exóticas e primitivas reforça uma visão colonialista e desumanizante do continente africano. Além disso, Mussum, o único integrante negro do grupo, é constantemente alvo de piadas raciais, associadas à sua cor, origem e forma de falar. Em diversos momentos do filme, Mussum é ridicularizado por sua aparência ou “confundido” com os nativos locais, sugerindo que ele é “menos civilizado” que os companheiros brancos. Se Eu Fosse Você (2006)

O filme pode ser criticado por perpetuar estereotipos de gênero

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Direção: Daniel FilhoSinopse: Cláudio e Helena são um casal em crise que, após uma briga, acorda misteriosamente com os corpos trocados. A partir daí, eles precisam viver a rotina um do outro e aprender a lidar com os desafios e pressões do universo oposto. A comédia foi um enorme sucesso de bilheteria e deu origem a uma sequência em 2009.Embora parta de uma premissa cômica e aparentemente inofensiva, o filme baseia-se fortemente em estereótipos ultrapassados de gênero, reforçando visões binárias e caricaturais sobre o que é “ser homem” e “ser mulher”. O humor gira em torno de comportamentos exagerados: o homem que não sabe lidar com sentimentos no corpo da esposa, a mulher que se espanta com o mundo corporativo ao assumir o papel do marido. Não há espaço para uma discussão mais complexa sobre identidade de gênero, construção social ou empatia real.Durante o filme, ao habitar o corpo da esposa, Cláudio passa boa parte do filme olhando para os próprios seios no espelho, fazendo piadas sexuais e explorando o corpo feminino com um olhar objetificador. Já Helena, no corpo do marido, reproduz trejeitos forçados para parecer “masculina”, numa construção que hoje seria considerada redutora e ofensiva. Se lançado hoje, o longa seria criticado por tratar questões de gênero com superficialidade e por perpetuar visões cisnormativas e heteronormativas.  Amor Estranho Amor (1982)

Obra expõe uma criança a situações sexuais

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Direção: Walter Hugo KhouriSinopse: Hugo, de 11 anos, foi passar um tempo com sua mãe em São Paulo, mas o que ele não sabia é que a casa onde ela morava era, na verdade, um bordel.A obra, que expõe uma criança a situações sexuais, hoje seria considerada exploração e abuso infantil. O drama, que retrata temas como prostituição infantil e incesto a partir da história de Hugo, ficou famoso por uma cena que mostra a apresentadora Xuxa seminua com o garoto de 12 anos. Em outra cena famosa do longa, enquanto é preparada para “ser dada de presente” para o menino, a personagem diz ao garoto: “logo você vai virar um gurizão, mas desde já você é um sabonetinho”.Se o filme fosse lançado nos dias atuais seria duramente criticado por glamorizar o abuso infantil e por ter uma cena onde um ator mirim simula uma relação sexual com a apresentadora, que na época tinha 18 anos.Crô – O Filme (2013)

O filme foi derivado do personagem de sucesso da novela Fina Estampa

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Direção: Bruno BarretoSinopse: Derivado do personagem de sucesso da novela Fina Estampa, o filme acompanha Crô, um ex-mordomo que enriquece após a morte de sua patroa e passa a viver cercado de luxo. Em busca de um novo propósito, ele decide encontrar uma nova “deusa” para servir, embarcando em uma competição inusitada que o coloca em contato com a ambiciosa e perigosa Vanusa, empresária envolvida em trabalho escravo.Mesmo tendo sido escrito por um autor assumidamente gay, o longa reforça estereótipos homofóbicos e apresenta um personagem LGBTQIAPN+ como objeto de chacota, preso a gestos caricatos, trejeitos exagerados e narrativas que reduzem sua identidade à comicidade. O filme não discute diversidade, nem inclusão, e falha em oferecer qualquer profundidade sobre a vivência homossexual.Ao longo do filme, existem diversas sequências em que Crô é ridicularizado por sua orientação sexual, com piadas baseadas em estereótipos — o que transforma o personagem em uma caricatura nociva, mesmo sendo o protagonista. Se lançado hoje, o filme seria amplamente criticado por promover a chamada “homofobia recreativa”, em que a sexualidade do personagem é usada apenas como recurso humorístico.O que fazer com obras que envelheceram mal?Obras antigas, por mais controversas que sejam sob a ótica atual, carregam pistas importantes sobre o pensamento, os valores e as contradições da época em que foram produzidas. A solução, portanto, não está na censura, mas na contextualização crítica.Plataformas de streaming como a Netflix, Disney+ e a HBO Max, por exemplo, já adotaram práticas como cartelas de aviso sobre conteúdo sensível, informando ao espectador que determinados trechos refletem visões ultrapassadas e que hoje são consideradas ofensivas. Essas mensagens não alteram o conteúdo, mas oferecem um olhar mediador, que reconhece a obra sem normalizar suas falhas.Além disso, cinematecas, cineclubes e festivais têm promovido sessões seguidas de debates, convidando especialistas para discutir o contexto social, político e estético das produções. Esse tipo de abordagem transforma o filme em ponto de partida para conversas mais profundas, enriquecendo a experiência do público e ampliando a compreensão das dinâmicas culturais envolvidas. O papel da crítica de cinema na mediação do debate de pautas sociaisA crítica de cinema, hoje, vai muito além da análise técnica ou estética. Ela se consolidou como uma ferramenta essencial para revisitar obras sob uma perspectiva mais ampla e contextualizada, considerando não apenas o que está na tela, mas também o que ela representa cultural, histórica e socialmente.Críticos e pesquisadoras têm desempenhado um papel fundamental nesse processo, ajudando o público a interpretar os filmes a partir das transformações sociais que moldam o nosso presente. Essa mediação não é um ato de censura — e muito menos de “lacração” —, mas sim um convite à reflexão crítica e ao enriquecimento do repertório coletivo.O desafio de falar sobre arte e sociedadeFalar sobre cinema é, inevitavelmente, falar sobre quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. Mais do que entretenimento, a arte carrega identidade, memória, conflito e ideologia. Revisitar filmes clássicos à luz das discussões atuais não significa negá-los, mas sim entender os limites do seu tempo e reconhecer o quanto a sociedade evoluiu — ou ainda precisa evoluir.Se você já se pegou desconfortável assistindo a um filme antigo que um dia amou, não se culpe. Esse desconforto é sintoma de mudança. É sinal de que nossa consciência coletiva está em movimento. E o cinema, como sempre, permanece sendo um meio para observar não só o passado, mas também os impasses e possibilidades do futuro.*Sob supervisão de Bianca Carneiro

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