Bem-vinda à Holanda

Jullie e Solly - Foto Arquivo Pessoal

A metáfora que compara a maternidade atípica a uma viagem inesperada para a Holanda, quando se planejou a vida inteira para ir à Itália, é de uma sensibilidade imensa. No meu caso, foi uma aterrissagem de emergência, sem aviso. Entrei no hospital para ter um bebê 100% saudável e saí de lá 30 dias depois com um bebê que quase não se mexia, usando sonda, em home care, sem diagnóstico definido e com muitas incertezas.

As expectativas de uma vida idealizada se transformaram em uma avalanche de emoções: dúvidas, desespero, tristeza e uma frustração avassaladora por perder o controle sobre o futuro. Em meio a esse turbilhão, a pergunta “por que isso aconteceu comigo?” logo deu lugar a “como posso fazer o melhor a partir de agora?”.

Essa busca me levou a me tornar quase uma especialista em Prader-Willi. Fui atrás dos melhores médicos, consultei associações internacionais, viajei para a Inglaterra e para os Estados Unidos, porque no Brasil a síndrome é rara e desconhecida — menos de 400 casos são efetivamente diagnosticados no país. Exatamente por ser tão rara, o grau de “imprecisão” em qualquer informação era enorme e angustiante.

Usei toda a minha força e iniciativa para organizar uma rede de apoio com fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e diversos outros tratamentos. Sessões diárias planejadas para garantir o máximo de desenvolvimento. Olhando para trás, me arrependo um pouco de ter focado tanto no lado prático e demorado para me conectar de coração para coração com o meu filho. Hoje, mais do que nunca, acredito que o amor e o acolhimento incondicional fazem uma diferença enorme.

Os primeiros anos foram difíceis. Me separei do pai dele, que, graças a Deus, continua sendo um excelente pai. Eu queria — e, ao mesmo tempo, não queria — estar com as minhas amigas, que estavam todas na mesma fase que eu, mas com experiências tão distantes. Nossos problemas eram completamente diferentes, e isso me causava uma angústia enorme.

Elas reclamavam do cansaço de acordar de madrugada, enquanto meu filho não tinha nem força para mamar e usava sonda. Elas se preocupavam com o atraso das primeiras palavras, enquanto o Solly só foi falar aos três anos — e com muita dificuldade. Eu sentia que havia um abismo entre nós.

O Solly estudou em escola regular até os 11 anos, enfrentando desafios acadêmicos por conta do atraso cognitivo e desajustes comportamentais que tornavam a vida diária um verdadeiro teste de resistência — em casa, na escola, em qualquer lugar.

Jullie e Solly - Foto Arquivo Pessoal

Colocá-lo em uma escola especial foi uma decisão extremamente difícil. É como se fosse um atestado de que ele não tem — e talvez nunca tenha — a “capacidade” de ser realmente incluído em uma rotina considerada “relativamente normal”.

Depois de muitas viagens mal-sucedidas, em que ele teve crises intensas pela falta de rotina, excesso de barulho, estímulos e, principalmente, pela sensação de ser “diferente e excluído” em meio a outras crianças, decidi restringir ao máximo esses momentos. Protegê-lo de situações fora do controle se tornou uma forma de preservá-lo emocionalmente e de aumentar sua autoestima.

Hoje, priorizo funcionários que criem vínculo emocional com o Solly, que gostem genuinamente dele e tenham paciência de verdade. Nada disso é uma conta exata; mesmo em condições extremamente favoráveis, ele pode ficar estressado e desequilibrado. Mas, depois de tantos anos de acertos e erros, faço o possível para garantir estabilidade, apoio e acolhimento.

Existe muita desinformação sobre a maternidade atípica. Muitas vezes, ela é incompreendida, e as pessoas raramente se colocam no lugar do outro. Acreditam que nossos filhos se comportam como qualquer criança e que deveríamos agir “dessa ou daquela forma”.

Uma mãe atípica valoriza profundamente o “caminho das pedras” que outra mãe, na mesma situação, percorreu. Ela não quer conselhos de quem não vive essa realidade — ela quer empatia e acolhimento.

Eu quis muito ter outro filho e viver a experiência de uma maternidade “normal”. No entanto, tive que fazer o que foi a escolha mais difícil da minha vida: optar entre o desejo de viver um grande amor ou essa maternidade, já que meu segundo marido não topou com essa ideia desde o início. Foi uma decisão consciente, mas não minimizou a dor — uma cicatriz profunda.

Ainda assim, sou profundamente grata a ele. Ele me ajudou a lidar cada vez melhor com a minha realidade, a entender, aceitar e acolher minha maternidade de uma maneira corajosa, honesta e sincera. Esse processo me incentivou a me conectar de forma ainda mais profunda com o Solly, inteira e com todo o meu amor.

Venho de uma família disfuncional. Meus pais se separaram quando eu tinha seis anos. Minha mãe teve síndrome do pânico e depressão não tratada, e foi completamente ausente. Meu pai se casou novamente rapidamente e formou uma nova família, sem muito espaço para mim. Não tenho mágoa, pois sei que meus pais deram o que puderam dentro das limitações deles, mas desde muito pequena tive que me virar, ativando um senso de sobrevivência para conseguir crescer de forma mais estruturada e realizada — e tentar não repetir os padrões e modelos que recebi na minha infância e adolescência. Eu precisei desenvolver e inventar novos modelos para mim e para o Solly.

Hoje, meus sonhos com ele são sobre o aqui e o agora. São as pequenas conquistas diárias, os avanços que, para o mundo, podem parecer mínimos, mas para nós são imensos. São as “sacadas engraçadas” que ele tem e que me fazem morrer de rir. São os abraços apertados, as músicas que cantamos juntos e a relação de vínculo e afeto que existe entre a gente.

Ele sabe — e eu me esforço para que sinta — que, não importa como ele esteja ou como se sinta, eu estarei sempre ao lado dele. Não importa quantas vezes ele se estresse, pergunte mil vezes a mesma coisa ou se entristeça com suas próprias limitações, eu terei paciência, respirarei fundo e darei colo.

A vida é isso: oportunidades de crescimento emocional, espiritual e relacional contínuo. Alguns têm mais sorte, outros mais empenho, alguns possuem ambos. Mas, independentemente das condições pré-existentes, a vida que queremos ter é uma escolha diária. Eu escolhi trabalhar minhas vulnerabilidades com resiliência, coragem e energia para criar e potencializar a minha capacidade de realização, mobilização e conexão.

Porque, além de mãe atípica, sou mulher, amiga, empresária, presidente de ONG, esportista e superativa em muitas frentes — e tenho certeza de que ainda tenho muitos sonhos e projetos a serem concretizados.

Acima de tudo, eu escolhi — e continuo escolhendo, todos os dias — ser feliz, porque acredito demais em quatro frases que tenho como lema de vida:

  • 10% é o que acontece com você, e 90% é como você reage.
  • Nada é em vão; o que não é bênção, é lição.
  • Nós somos os responsáveis por moldar a nossa realidade.
  • A vida que a gente quer depende “do que e de como” a gente faz.

Não importa quantos limões a vida me dê, eu sempre vou trabalhar para que eles se transformem em uma limonada doce e saborosa!

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