“As pessoas estão casadas com o celular, não com o outro”, diz Fabrício Carpinejar

A gentileza e a afeição são meios para superar traumas pessoais e estreitar laços. É o que afirma o gaúcho Fabrício Carpinejar, um dos mais reconhecidos escritores contemporâneos do Brasil. Em turnê com a palestra Cura pelo Afeto – que já passou por São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba – ele desembarca em Salvador no próximo dia 24 deste mês para a apresentação. O evento vai ocorrer na Casa Salvatore (Cabula), às 19h, com ingressos a R$ 108 (meia) e R$ 216 (inteira) e podem ser comprados pela plataforma Sympla. De acordo com o poeta, a reação “apavorantemente boa” do público promete ser ainda mais intensa na capital baiana. A famosa hospitalidade do soteropolitano é um dos motivos. “Eu me sinto com a alma despida quando estou aí”, diz o escritor que possui mais de 1 milhão de exemplares vendidos e mais de 20 prêmios literários, incluindo dois Prêmios Jabuti. Apesar de levantar a bandeira do afeto, Carpinejar admite que há obstáculos para tornar o Brasil um país mais empático. Uma das razões é a desigualdade social. “Nosso país só será curado quando tratarmos de forma séria que não somos uma sociedade justa”, afirma. Para a TARDE, Carpinejar ainda fala ainda sobre o papel das redes sociais na construção de um país angustiado e dá dicas sobre como viver o presente sem muita pressa.Como tem sido a recepção do público à sua palestra?Muito forte. Cura pelo Afeto é meio palestra e meio teatro. Não tem as fronteiras tão definidas. Eu incorporo a palavra no sentido de expressar emocionalmente o que estou falando. São reflexões a partir de histórias de vida em que eu busco potencializar a nossa atenção como sociedade. É a atenção que gera o capricho. Sinto que nós estamos habitualmente distraídos e desligados, obcecados pela tela. E a pressa vem desmoronando relacionamentos. As pessoas estão casadas com o celular, não com o outro. Ninguém sente mais falta. E se você não tem memória, não sente saudade.O afeto é uma ferramenta de cura?Sim. Serve para curar tudo. Eu parto do princípio de que a presença é curativa. É uma palestra que funciona como um abraço que cicatriza e salva. Nós, como sociedade, estamos extremamente carentes de ternura, de contato físico, de proximidade. Veja como é muito possível passar uma semana inteira com pouquíssimos abraços. E, mesmo que eles aconteçam, esses encontros costumam ser quase como um empurrão. O abraço só funciona se passar de cinco segundos, coração com coração, não pode ser de qualquer jeito. Se o nosso corpo vive nesta precariedade de contato, imagina o que sobra para o psicólogo! Afinal, não há como se sentir amado e admirado neste contexto. Estamos carentes de um colo, de um cuidado, de alguém que diga que tudo o que sofremos não é bobagem. A pressa nos leva à indiferença. O que sinto é que estamos orbitando em torno do passado e planejando o que queremos fazer no futuro. Poucas são as pessoas que estão vivendo a frequência do presente.É possível viver o presente em sua inteireza estando nas redes sociais?As pessoas não conseguem fazer mais nada sem estar online. Para ir ao banheiro é preciso levar o celular. Temos que parar com isso. Toda a minha presença na palestra é uma desconstrução desses condicionamentos. Nós somos incentivados à simultaneidade, ou seja, a fazer duas tarefas ao mesmo tempo e o celular entra neste pacote. A felicidade é monotemática, você só se sente realmente alegre fazendo uma tarefa de cada vez. Somos incentivados a ter angústia porque não estamos em lugar nenhum, toda a nossa energia é dispersiva. A saudade é um sentimento em extinção porque sentimos cada vez menos. Sentimos falta, no entanto. A melancolia é um sentimento necessário, saudável, e é dela que vem a saudade.A angústia gerada pelas redes sociais é uma responsabilidade individual ou das grandes empresas que estão por trás delas?Mesmo que este sentimento de tristeza seja o resultado do contexto que vivemos, como você está falando, cada um precisa ter horas fora do celular. A felicidade só aparece quando estamos off-line. E, quando se consegue ter esse momento de concentração, quando se é feliz ao realizar uma tarefa de cada vez, é possível passar a preservar esses momentos de alegria e plenitude. Me choca notar que as pessoas fazem muito esforço para conseguir lembrar o que fizeram na manhã do dia anterior. A saudade é justamente quando se registra aquilo que se vive, quando colocamos dentro do momento presente todos os sentidos, todas as lembranças. Ser forte não é elogio, é exploração. Somos incentivados a aguentar o que não merecemos. Note que só somos chamados de fortes quando há um desvio de função. Somos incentivados à simultaneidade e a não pedir ajuda. É interessante quando alguém fala que outra pessoa é o seu braço direito. Parece um elogio, mas, incrivelmente, a pessoa está te reduzindo a um membro.

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Como você enxerga o papel do escritor em meio ao barulho das redes sociais e da polarização política?Eu sou um caso absolutamente atípico. Porque eu não mudo o meu discurso para agradar ninguém. Eu publiquei livros sobre luto quando existia um preconceito enorme em abordar esse tema no meio editorial. Nas redes sociais, eu sou um poeta. Na verdade, sou um poeta em qualquer coisa que eu faça. Seja em uma publicação, na rádio, na televisão ou nas colunas que escrevo. Então, na internet, eu acredito que existem alternativas de frescor. Nas redes sociais não se encontra o mesmo sempre, você pode achar alternativas que te agradem. No TikTok, por exemplo, não tem só dancinha, existem vídeos com reflexões a respeito de tudo. Eu sou um dos maiores entusiastas da terapia, porque é com ela que você cria o seu manual de instruções. O processo terapêutico facilita o didatismo com quem você ama. Dizer não e não se sentir menos amado por isso. Perceba como a gente tem uma grande dificuldade de dizer não na intimidade, no romance, nas atividades sozinho. Se há um fim de semana com o nosso parceiro, queremos fazer tudo juntos. Algo meio simbiótico. É importante refletir: de que forma posso ser independente? Como posso preservar meu espaço, preservar quem eu sou? A sensação é a de que sempre temos que estar fazendo provas de amor quando estamos em um relacionamento, quase como se vivêssemos em uma gincana. O amor nunca tem paz, nunca é tranquilo. Parece que o amor com paz é tédioA palestra já passou por três cidades e agora chega a Salvador. Teve alguma reação do público que lhe tocou particularmente?A reação é apavorantemente boa. Da mesma forma que eu me entrego, o público se entrega. A cumplicidade não tem como ser fingida. O espetáculo altera riso e lágrimas.A Bahia é conhecida por ter uma cultura afetiva e comunitária. Você acredita que Salvador pode receber a mensagem da sua palestra de uma maneira diferente em comparação com outras regiões ou acha que a questão da carência social é algo geral?Eu tenho certeza que a minha palestra em Salvador será extremamente visceral, intensa, justamente porque o baiano é um público que gosta da companhia, que gosta da família. Eu me sinto com a alma despida quando estou aí. A Bahia está sobrecarregada de culpa porque quer dar seu melhor e acaba não fazendo aquilo que é possível.Como assim?Quanto melhor é a pessoa, maior a culpa que ela sente. Narcisista não tem culpa, megalomaníaco também não. A culpa só vem com pessoas boníssimas. Porque é alguém que quer dar mais sempre. A culpa costuma ser uma miragem: você já deu o suficiente, mas pensa que pode dar mais. E, dependendo de quem recebe, essa pessoa pode te usar, explorar. Então, é preciso se livrar dessa culpa. Você pode ter a leveza de perdoar as suas versões anteriores. Porque senão, a gente fica sempre tentando retornar ao lugar da frustração e essa tristeza acaba se tornando um santuário. Se aconteceu algo errado, você acha que sempre vai acontecer novamente.O que falta para a sociedade brasileira se tornar mais afetiva e menos indiferente? É uma questão cultural, estrutural ou pessoal?O Brasil tem necessidades sociais profundas. Eu viajo muito pelo país, testemunho cidades sem saneamento básico, vejo quantas famílias vivem de [programas de transferência direta de renda do governo federal brasileiro] Bolsa Família e Bolsa Escola. Nosso país só será curado quando tratarmos de forma séria que não somos uma sociedade justa. Precisamos reconhecer os abismos sociais enormes que existem no Brasil como o racismo, o machismo e a homofobia. A desigualdade social é o maior obstáculo que o Brasil enfrenta para se tornar um país mais afetuoso.

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