Othon Bastos completa 92 anos e traz monólogo ‘Não me entro, não!’ a Belo Horizonte

A arte desenha caminhos que ora nos arrebata da realidade — “para não morrermos da verdade” —, ora nos obriga a encarar a vida tal como ela é. Entre a previsibilidade de máximas como “para sonhar basta dormir” e a inquietude de versos como “viver é melhor que sonhar”, o ator baiano Othon Bastos não hesita: aos 92 anos, completos nesta sexta-feira (23), ele diz ser feliz porque vive. Oferece a mão à vida e deixa a vida o levar — parafraseando outro cantor brasileiro, o grande Zeca Pagodinho. É neste espírito que nasce o espetáculo ‘Não me entrego, não’, primeiro monólogo do artista em 72 anos de carreira. A peça chega ao Teatro do Minas Tênis Clube, no bairro Lourdes, em Belo Horizonte, nos dias 6, 7 e 8 de junho. Os ingressos já estão esgotados.

Clique e participe da comunidade do Rolê BHAZ no WhatsApp

O espetáculo, que estreou no ano passado, mas ainda estava em fase de ensaio aberto, promoveu o reencontro do ator com Fernanda Montenegro, que não conteve as lágrimas ao abraçar o colega com quem contracenou em ‘Central do Brasil’ (1999), de Walter Salles. Décadas antes, Elis Regina viveu um momento semelhante: ela revelou ter tido uma crise de choro ao encontrar Othon, beijando-lhe o rosto com profunda comoção. Não por acaso: estava diante não apenas do homem que imortalizou o cangaceiro Corisco em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964), de Glauber Rocha, mas também de um dos principais nomes da cultura brasileira.

Com mais de 40 mil espectadores e mais de cem apresentações, a peça ‘Não me entrego, não’, de Flávio Marinho, foi sucesso de crítica, tornou-se livro — editado pela Cobogó — e rendeu a Othon o troféu de melhor ator na 35ª edição do Prêmio Shell de Teatro, realizada em março deste ano. O espetáculo peça recorda, com serenidade e bom-humor, os principais momentos da existência dele. “Quero mostrar às pessoas aquilo por que passei, como vivi, como sofri e enfrentei obstáculos — sempre com entusiasmo, luta e sem jamais me entregar”, disse Othon em entrevista ao BHAZ

Pela longa travessia — ora nos palcos, ora nas produções de TV e cinema — o artista recebeu, nessa última segunda-feira (19), a Medalha Arlindo Fragoso, concedida pela Academia de Letras da Bahia (ALB). Embora se sinta realizado com o reconhecimento, recusa-se à vaidade: “Como diria o pensador, o atleta não deve gabar-se jamais das medalhas que traz no peito, mas sim dos obstáculos que conseguiu superar”, afirmou.

Encontro de Fernanda Montenegro com Othon Bastos. (Reprodução/Redes Sociais)

‘Eu não tenho paredes, eu só tenho horizontes’

Segundo o ator, a peça surgiu como um novo desafio, já que ele estava longe dos palcos desde 2007, quando atuou em ‘O Manifesto’, ao lado de Eva Wilma. O afastamento da ribalta não se deu somente pelos trabalhos na televisão e no cinema, mas, sobretudo, pelas dificuldades em se fazer teatro. “Percebi que estava cada vez mais difícil. Era preciso sair com a malinha debaixo do braço e quase implorar para que alguém produzisse ou patrocinasse. Isso me fez deixar os palcos um pouco de lado e sobreviver fazendo outras coisas. Mas sempre tive em mente: ‘Não me abandone, você é filho do teatro. O teatro é a sua base, ele é você’”, revelou Othon — que iniciou a trajetória artística no teatro estudantil, na Bahia.

Foi justamente na ribalta que o ator sentiu que era a hora de retornar. A decisão veio após assistir ao espetáculo ‘Judy: O Arco-Íris é Aqui’, estrelado por Luciana Braga e também dirigido por Marinho. A peça entrelaça a trajetória pessoal da artista brasileira com a vida da cantora e atriz norte-americana Judy Garland. “Tomei coragem e procurei o Flávio, pedindo que ele criasse algo semelhante — algo que abordasse minha carreira, minha vida, mas sem ser uma narrativa puramente autobiográfica. São situações que vivi e como reagi a cada uma delas. Queria mostrar o que enfrentamos, o que sofremos, os ‘nãos’ que recebemos. A vida como ela é, e não como a sonhamos”, refletiu. 

Othon Bastos em ‘Não me Entrego, Não!’ (Beti Niemeyer/Divulgação)

A partir daí, Flávio — amigo de longa data do ator — assumiu o desafio de transformar tantas memórias e histórias em um espetáculo de pouco mais de 90 minutos. Para guiá-lo nesse processo, Othon entregou mais de 600 páginas de reflexões escritas ao longo dos anos, repletas de pensamentos, autores que admirava e anotações pessoais sobre tudo aquilo que o tocava. Com isso, ‘Não me entrego, não!’ se tornou um mural de vida dividido em blocos temáticos — trabalho, amor, teatro, cinema e política. A única condição era deixar de fora as ‘amargas’. Afinal, o objetivo era construir um espetáculo sem paredes — mas com horizontes —, parafraseando Mário Quintana.

“Eu gostaria que as pessoas tivessem conhecimento da alegria, da importância de viver e de trabalhar a vida. É como diz Fernando Pessoa: ‘trabalhar é trabalhar-se’. E, cada vez que faço essa peça, estou me trabalhando. Às vezes até rio de mim mesmo, é como quase um deboche em cada cena que recordo o que se passou comigo. É lembrar com alegria, e não com rancor ou tristeza”, disse. 

Entretanto, Othon reconhece que revisitar tantas vivências não é uma tarefa simples — e não poderia ser diferente, considerando que, ao longo de tantos anos de carreira, acumulou mais de 90 filmes, 80 produções para a televisão (entre novelas, séries e minisséries) e 60 peças teatrais. Para acompanhá-lo nessa travessia, foi criada a personagem “Memória”, interpretada pela atriz e diretora assistente Juliana Medella. “Confesso que fazer a peça é bastante cansativo. Felizmente, contei com esse apoio da Juliana. Quando me esqueço de algo, chamo a ‘Memória’ para me socorrer. Não escondo do público que estou pedindo socorro — logo no início, já a apresento a todos. Afinal, eu não tenho mais 40 anos, né? (risos). A memória também precisa de memória”, brinca.

Juliana Medella e Othon Bastos (Beti Niemeyer/Divulgação)

Uma vida de escolhas e acasos

O ator, ao longo da carreira, integrou o Teatro Duse, fundado por Paschoal Carlos Magno; dirigiu a Escola de Teatro da Universidade da Bahia; fundou a Companhia Teatro dos Novos, que colaborou na construção do Teatro Vila Velha; e criou a Othon Bastos Produções Artísticas, grupo que, nos anos 1970, atuou em defesa da liberdade de expressão. Participou de montagens de obras de William Shakespeare, Ariano Suassuna e Bertolt Brecht, Chekhov, além de ter sido dirigido por nomes como Gianni Ratto, José Celso Martinez Corrêa e Bibi Ferreira.

Na televisão, Othon participou de novelas marcantes como ‘Roque Santeiro’, ‘Cabocla’, ‘Paraíso Tropical’ e ‘Império’. No cinema, atuou em produções como ‘O Que É Isso, Companheiro?’ (1997), ‘São Bernardo’ (1972), ‘O Pagador de Promessas’ (1962), ‘O Paciente – O Caso Tancredo Neves’ (2018) e, notoriamente, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, um dos marcos do Cinema Novo. Inclusive, o nome do espetáculo é inspirado em um verso da canção ‘Perseguição’, de Sérgio Ricardo, que integra a trilha sonora do filme dirigido por Glauber Rocha. Na canção, ao ser incitado a se render, Corisco responde com firmeza: “Não me entrego, não!”.

O personagem, que completou 60 anos no ano passado, de fato, impactou a carreira de Othon de diferentes formas: além de se tornar um marco em sua trajetória, acabou fazendo com que ele ficasse quatro anos sem filmar. “Depois do filme, se pudessem, me chamariam apenas para interpretar cangaceiros — e eu escolhi não fazer mais. É preciso saber o que se quer. A vida é feita de escolhas. Como diz Jung: você é suas escolhas. Você não é responsável por tudo o que acontece com você, mas é responsável pelas escolhas que faz. Preferi ficar sem filmar a voltar a interpretar cangaceiros, bandidos, assassinos ou estupradores”, relatou o ator.

O artista retornou aos sets de filmagem apenas em 1968, interpretando Bentinho no filme ‘Capitu’, de Paulo César Saraceni — uma adaptação do clássico ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis. Apesar da extensa galeria de personagens ao longo da carreira, Othon não hesita ao destacar o mais marcante: Paulo Honório, em ‘São Bernardo’, dirigido por Leon Hirszman. “Ele é baseado em um primor de romance, né? Eu já tinha analisado esse texto durante as aulas de português do colegial. Por isso, o livro ficou por muitos anos na minha cabeça”, explicou.

Othon ainda revela que, na época escolar, nem cogitava seguir a carreira artística — e chegou a ser aconselhado a escolher qualquer outra profissão. Caso tivesse seguido esse palpite, o Brasil teria ganhado “mais um dentista”, e não um ator. “A minha vida tem muito do acaso também. Uma professora me disse que eu nunca deveria ser artista, porque não daria certo nisso. Mas eu sempre gostei de teatro. Ia assistir às peças: ‘Hamlet’, ‘Romeu e Julieta’, ‘Arlequim, Servidor de Dois Patrões’… Só que, até então, não tinha pensado em atuar”, relembra.

O ator conta que faz questão de retomar a história da professora Eliete em ‘Não me entrego, não!’, assim como relembra e cita diversos personagens marcantes de sua trajetória. Ele ressalta, no entanto, que a única homenagem explícita na peça é dedicada à esposa, com quem é casado há quase 60 anos. Othon e Martha se conheceram na Escola de Artes Dramáticas da Bahia e, juntos, tiveram um filho, Pedro Overbeck Bastos. “Trabalhamos juntos a vida inteira. Para mim, isso representa companheirismo, todas as lutas que enfrentamos lado a lado. Tudo isso fez valer a pena esses muitos anos de casamento. Há também muito amor, prazer e amizade envolvidos”, explica. No monólogo, Othon interpreta trechos da peça ‘Um Grito Parado no Ar’, fruto da parceria artística com Martha Overbeck.

‘Deus, não deixe a velhice entrar’

Segundo o ator, levar o monólogo a Minas Gerais é como voltar de braços abertos a um lugar que ama profundamente. Othon tem um carinho especial pelo estado, onde viveu por quase um ano, em Ouro Preto, na região Central, dedicando-se à criação de espetáculos no tradicional “Teatrinho” da cidade — como é carinhosamente conhecido o Teatro Municipal Casa da Ópera. “Gostava de andar pelas madrugadas, pelas ruas silenciosas de Ouro Preto. Sempre tive a sensação de que havia alguém me acompanhando. Vivi momentos lindos ali, porque era uma satisfação acordar às sete da manhã, tomar um café com leite e ver a Praça Tiradentes sendo iluminada pelo sol, mesmo sob o céu nublado.

“Se meus braços não conseguem abraçar Minas, minhas orações sempre vão”.

Othon Bastos

Ao ser questionado sobre novos projetos, Othon explica que pretende seguir “empurrando para frente”, como ele mesmo diz, com a intenção de continuar em cartaz com o monólogo. No ano passado, além da estreia do espetáculo, o ator integrou o elenco dos filmes Nosso Lar 2: Os Mensageiros, de Wagner Assis, e O Voo do Anjo, de Alberto Araújo. “Enquanto tiver forças, enquanto puder, farei o monólogo. Para mim, é um espetáculo de entrega. Adoro quando as pessoas vêm me abraçar no final, porque ali você doa o tempo inteiro. Deixa eu dar esse talento para as outras pessoas. Se Deus me deu essa possibilidade, por que eu iria guardar só pra mim?”, declarou.

Para o artista, a dinâmica do teatro auxilia no processo e escancara o momento de doação, pois coloca o ator em contato direto com o público. Como costuma dizer: “o cinema é resultado do diretor; a TV, da edição; e o teatro, dos atores” — aqueles que, como ele, amam profundamente o ofício de atuar. “Teatro é visceral. Nele, você está entregue — não dá para esconder nada. É tudo aberto, é livre. Você vê a pessoa respirar, transpirar. É pura emoção”, afirma.

Othon relata que se sente muito feliz e realizado por seguir atuando aos 92 anos. Ele se inspira, inclusive, em colegas como Fernanda Montenegro e Nathália Timberg — ambas com 95 anos — que continuam brilhando nos palcos. “Vai chegar um momento em que não terei mais força ou voz. Aí pensarei no que vai acontecer comigo”, diz, com serenidade. Ele lembra, entre risos, uma anedota sobre Galileu Galilei: “Perguntaram a ele: ‘Quantos anos você tem?’ E ele respondeu: ‘Tenho seis ou sete anos’. As pessoas ficam confusas, porque ele já tinha barba branca e cabelos grisalhos. Mas logo explicou: ‘Não, eu tenho mais seis ou sete anos de vida’.”

Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveria e Othon Bastos em ‘Central do Brasil’. (Reprodução/Redes Sociais)

Para o ator, o segredo de uma vida longa não está apenas em encarar a vida com bom humor, mas, acima de tudo, em vivê-la plenamente: ter prazer em estar com os amigos, não cultivar ciúmes nem inveja. Apesar de muitos o considerarem sério e sisudo, Othon garante que é mais alegre do que imaginam.

“Trago alegria de viver. Nasço contente todas as manhãs”.

Othon Bastos

Ele relembra, com entusiasmo, uma frase de Clint Eastwood, dita quando perguntaram como ele mantinha tanta energia mesmo após tantos anos de carreira. “Ele respondeu que, após acordar e fazer suas orações, sempre dizia: ‘Deus, não deixe a velhice entrar’. É isso que eu digo também. Peço a Deus que me dê tempo de fazer ainda mais. A única recompensa que quero da vida é viver”, finaliza.

Anota aí!

‘Não me entrego, não!’, de Othon Bastos

Data: de 6 a 8 de junho
Horário: sexta-feira e sábado, às 20h, domingo, às 18h
Local: Teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas | R. da Bahia, 2244 – Lourdes, BH
Ingressos esgotados

O post Othon Bastos completa 92 anos e traz monólogo ‘Não me entro, não!’ a Belo Horizonte apareceu primeiro em BHAZ.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.