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Crônica, conto e memóriaSe, por definição, a crônica é o gênero da observação cotidiana, da reflexão breve, muitas vezes publicada em jornais, os textos do imortal da ALB Viagens & Travessias ampliam esse olhar para experiências vividas em outras geografias e temporalidades. São histórias que, embora nasçam de situações reais, passam por um processo de reinterpretação literária e estilística. Nesse sentido, se aproximam do conto, ao introduzir conflitos internos e externos, desenvolvimento de personagens. O imortal admite a influência dessa mescla de gêneros, “Muitas vezes meus contos são lidos como crônicas, e minhas crônicas, como contos. Acho que isso é natural quando você escreve a partir de lembranças e emoções profundas”.Atravessar fronteiras é também uma metáfora que perpassa todo o livro. Não apenas as fronteiras físicas entre países e cidades, mas as subjetivas entre tempo e memória. “A ideia de travessia não é só uma jornada no espaço, é também uma jornada mental, emocional. Cada viagem é, de alguma forma, uma revisitação de mim mesmo”, relata Torres. Para ele, cada crônica é também um espelho fragmentado, no qual o autor reflete suas inquietações, redescobre antigas emoções ou reinterpreta experiências que viveu ao longo da sua trajetória.O primeiro texto do livro, Lembranças Alemãs, narra uma viagem feita no ano 2000 à Alemanha, quando o autor foi bolsista do Instituto Goethe. A crônica ganha contornos de conto ao apresentar não apenas descrições geográficas, mas também conflitos e tensões sociais, como o episódio em que o autor e seus colegas acabam envolvidos, involuntariamente, num protesto entre grupos nazistas e antinazistas em Berlim.“A cidade tem um monumento à memória das vítimas do nazismo. E, ao mesmo tempo, você vê grupos defendendo aquilo tudo novamente. É um paradoxo histórico que me marcou muito”, relembra Décio.Outra crônica é ambientada numa que o escritor fez pelo Nordeste brasileiro, com início em Salvador, onde mora atualmente. Acompanhado de amigos, o escritor acreditava que faria um tour pelas praias da região, mas se depara com um roteiro não planejado, com escalas em pequenas cidades do interior. Em Olinda, Pernambuco, uma senhora acolhe o grupo em sua casa, num gesto de hospitalidade cada vez mais raro. O reencontro com um amigo tempos depois revela uma tragédia que transforma toda a narrativa.Já Uma Aventura Húngara narra o que poderia ser um simples equívoco de viagem — pegar um ônibus errado, e transforma o episódio numa fábula moderna sobre desencontro cultural, desespero linguístico e, por fim, superação. “Era uma cidade onde ninguém falava inglês, francês, espanhol… Nem alemão. E eu me vi completamente perdido. Foi angustiante na hora, mas hoje dou risada”, conta Décio. É nessa tensão entre o trágico e o cômico que o autor constrói uma prosa fluida, acessível e reflexiva no novo livro.Vida de livros e travessiasO imortal é uma prova de que os livros que lemos e os lugares que visitamos moldam nossa personalidade e o modo como pensamos. Nas demais crônicas, Décio também entrelaça memórias pessoais e registros culturais das cidades por onde passou, compondo imagens que oscilam entre a contemplação poética e o olhar antropológico.“A escrita é também um exercício de autoanálise. Ao revisitar esses lugares, revisito também quem fui”, afirma o autor.Décio Torres não é um novato no campo da escrita, muito pelo contrário. Embora Viagens & Travessias seja seu segundo livro de crônicas solo, ele já publicou outros livros, Entre eles destacam-se A poesia da matemática (Caravana, 2024), traduzido para o espanhol como La poesía de la matemática (Caburé/Caravana, 2024); Histórias roubadas (Penalux, 2022); Paisagens interiores (Patuá, 2021), que também ganhou edição italiana sob o título Paesaggi interiori (WE, 2022); The Cinematic Novel and Postmodern Pop Fiction (John Benjamins, 2019); Literatura (pós-colonial) caribenha de língua inglesa (Edufba, 2016); Postmodern Metanarratives: Blade Runner and Literature in the Age of Image (Palgrave Macmillan, 2014); e O pop: literatura, mídia & outras artes (Quarteto/Uneb, 2003; 2013).Essa bagagem acadêmica aparece na estrutura sofisticada de suas narrativas, mas sem comprometer a leveza da linguagem. Ao contrário: o escritor aposta numa escrita clara, bem-humorada e sensível. Segundo ele, seu interesse pelos gêneros híbridos também vem do contato com autores como Salman Rushdie, Junot Díaz e José Saramago, que transitam entre o realismo e a fabulação, entre a análise crítica e a experimentação estilística.Nascido em Sátiro Dias, no interior da Bahia, Décio viveu em Alagoinhas, no Rio de Janeiro, em São Paulo, Salvador, nos Estados Unidos e em Londres, onde fez seu pós-doutorado. Essa trajetória geográfica, pessoal e intelectual permeia seus textos e mostra a formação de um sujeito em constante movimento, um professor que nunca se desvincula da ideia de travessia como forma de existência.Com todo esse percurso, o imortal diz que encontrou na escrita um meio de transformar memórias em matéria literária. Para ele, escrever é mais do que registrar histórias: é um modo de partilhar o que foi vivido e sentido. Como ele mesmo define: “A gente quando escreve, sente esse bichinho que vai nos pegando e fazendo com que a gente queira sentar e escrever sobre a nossa experiência para, de uma certa forma, compartilhar com os outros o que a gente viveu”.Lançamento do livro ‘Viagens & Travessias’, de Décio Torres Cruz / Sexta-feira (30), 17h / Academia de Letras da Bahia (Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré) / Aberto ao público*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.