“O moço do lixo me salvou”: o que a cidade joga fora do que somos

Toda profissão tem seus riscos. A insalubridade, talvez, não seja o maior deles. Testemunhar a sorte de outros viventes pode ser a sina periculosa que recobre como uma névoa de arsênico, os oráculos silenciosos. Foi assim que entendi (epifanicamente) que quem conhece mais da nossa vida, passa longe de ser o analista. Aquele que recolhe nossos restos, conhece muito mais das nossas alquimias. Foi assim que decidi deixar tudo às claras, servindo-me de gemas (semipreciosas), favoritadas no catálogo da minha lúgubre rotina de leilões da madrugada.Passeio de triciclo, aceno para os vizinhos, aqui e ali. Transito pelo caminho do Bom Dia que, ultimamente, mantém a grama desamparada, coberta de confetes e estrume de cavalo. Concretamente, não se pode adubar o cimento. O que brota desse chão insosso é quase ácido sulfúrico. O calor tempera tudo com salitre, fadiga e poeira.Cumprimento todos os consortes e os azarados no amor, igualmente. Não há quem note minha ausência, quase sempre indolente. Se me perguntam, a culpa é da artrose que insiste em enrijecer os movimentos. E na linha de frente, indo ainda mais fundo, rumo ao sacrilégio. Perdão aos oftalmologistas, mas toda dor é de saltar os olhos. Uma pena que o colírio não dilata as papilas gustativas. Longe dos cotovelos, longe do coração.

O moço que cuida da coleta sempre pontua o tempo reticente no qual desapareço da cena costumeira. É ele a encarnação do oratório e do cálice bento, juntamente. O som ritmado dos pedais, combinado com a acústica da ferrugem salitrosa, esmaecem no asfalto quente. O laranja dos seus trajes seria adequado ao pedal noturno. O olhar que lança sobre a calçada é profundo, como aquele que cataloga e conhece as dores de todo mundo. Pelos rastros do caminho, somos decifrados. Não quero romantizar as dificuldades do trabalho invisível. Longe de mim passar ao largo de tamanha ocultação. Translúcido, revela um saber que prescinde de tradução. É como os saberes das rezadeiras, das parteiras, das anciãs.

Penso em todas as dificuldades que envolvem a responsabilidade pela limpeza urbana, pela limpeza das casas, pelo banho de folhas. As ruas estão fartas de frutos de aroeira que respingam das árvores, como se o asfalto pudesse ter com o sarampo…pequenos pontos rosados pululam aqui e ali. Os discursos andam tão inflamados que talvez ralar o joelho naquele monte de semente pudesse ser curativo. Pimenta rosa na boca do outro.

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É tanta coisa que vai na lixeira, não é mesmo? Um tanto de poeira e de memória, frascos de perfumes que embalaram sonhos, refis de batom que perderam a validade. Em certo sentido não jogamos nada fora. Tá tudo dentro. Encontrei uma prescrição de antibióticos de um amor perdido. Óleos essenciais já vencidos e volatizados. Quando dei por mim abraçava cada morfema de penicilina. Uma lástima. A paixão também prescreve. Dispensar cuidados exclusivos é para a enfermagem. Um papel e uma data são bilhetes alfandegários que nos conduzem ao túnel do tempo. Fiquei presa nessa estação por todo inverno.O moço do lixo me salvou. O desapego é uma necessidade. Suscita avalanches e avatares. Para cada novo fim de semana firmei um compromisso em cartório. Renovei o contrato tácito de união com os vegetais desidratados e bota fora de penduricalhos. Não são os objetos que representam a nossa história. O que sustenta nossa memória é, precisamente, o que não está fora. No lugar do vazio, aguardo num banco-verniz, quase frio. Espaço corcunda que, Quasimodo, desvia o olhar. Alarga-se, pendurado em sino e, quase menino, tropeça e desmancha no ar. As rimas são uma devoção às dunas e a restinga que minguam de tanto esperar. Itapoan desfolha a cada luar.
*Psicanalista

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