
Palmas, gritos, assovios e uma multidão em êxtase deram o tom do recorde de público no novo Mineirão em 2024. Nem Cruzeiro, nem Atlético. A massa gritava em uníssono no estádio: Amém! O recorde de público virou notícia: mais de 68 mil pessoas ocuparam a arquibancada e o gramado do Gigante da Pampulha para participar da ‘Visita do Profeta’, culto do bispo Bruno Leonardo.
Antes disso, 210 mil pessoas já tinham quebrado o recorde no antigo Mineirão, em 2001, para ver a gravação do álbum ‘Preciso de Ti’, do grupo musical gospel Diante do Trono. Os dados são da Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (Ademg), divulgados à época.
O crescimento do número de evangélicos no país é significativo. Novos dados do Censo Demográfico 2022, que acabaram de ser divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que de 2010 para 2022, houve um aumento de 21,6% para 26,9% — mais de um quarto da população. Os católicos, por sua vez, passaram de 65,1% para 56,7% no mesmo período.
Projeções de estudiosos em demografia, feitas com base nos dados do Censo de 2010, preveem que, neste ritmo, até 2030 o grupo evangélico seja majoritário no país, atingindo aproximadamente 40% da população.
No dia em que o IBGE divulga novos resultados demográficos, o BHAZ traz hoje um panorama dos negócios liderados e voltados aos evangélicos na capital mineira. Spoiler: características únicas tornam este nicho um grande mercado em potencial. Afinal, dinheiro não é visto como tabu. “Eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância”, já dizia o Evangelho de João, onde Jesus declara que seus fiéis devem buscar a prosperidade.
Teologia da prosperidade é justamente o nome de uma doutrina, adotada principalmente pela ala neopentecostal protestante, que prega a abundância material como bênção divina, como explica Carlos Caldas, doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e professor do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Na Igreja Católica a doutrina da Teologia da Prosperidade é rejeitada. Para os católicos ela é a interpretação literal de certos trechos da Bíblia, distorcendo a verdadeira mensagem do Evangelho.
A Igreja Católica rejeita a Teologia da Prosperidade por várias razões, e a principal delas é que, segundo a religião, ela distorce a verdadeira mensagem do Evangelho. O Papa Francisco, reiteradas vezes, alertou os fiéis ao que ele chamava de uma “visão enganosa do cristianismo”. Ele alertava para o perigo de se ‘reduzir a igreja à estrutura de uma ONG’. “O que vale é o resultado palpável e as estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de Igreja. Constitui uma espécie de ‘teologia da prosperidade” no aspecto organizativo da pastoral”, criticou em seu discurso ao Conselho Episcopal Latino-Americano em 2013.
Uma pesquisa de novembro de 2024 da Data-Makers, associado ao HSR Specialist Researchers, que se apresenta como o maior grupo independente de pesquisa da América Latina, também revelou que evangélicos são mais engajados na religião e tendem a comprar da própria comunidade. De acordo com o levantamento, 58% dos evangélicos afirmaram considerar algum aspecto religioso na hora de contratar algum serviço ou comprar produtos.
BÍBLIA BOLSA, UM MIMO DE DEUS

Na região do Barreiro, em Belo Horizonte, próximo à divisa com Ibirité, está localizado o bairro Lindeia. Ele é formado majoritariamente por casas. Muitas delas, simples, e com terrenos grandes. A um quarteirão da avenida principal está a rua Mimo de Deus.
A placa que estampa o logradouro é praticamente do mesmo tamanho da instalada em frente a uma casa discreta no meio da rua, com os dizeres “Mundial Bíblias”, nome de uma fábrica de livros sagrados que funciona no local. Apesar da conexão religiosa entre os nomes, um não tem relação com o outro.
“A rua já se chamava Mimo de Deus desde antes de eu nascer”, comenta Silas do Carmo Santos, de 37 anos, dono da fábrica.
A entrada ao comércio é pelo pequeno portão verde, que dá acesso a um longo corredor lateral à casa da família. De lá saem, todos os meses, cerca de 2 mil Bíblias destinadas a diferentes cidades do Brasil. “Mais de 90% das nossas vendas são para fora de Minas Gerais e o nosso maior mercado está no Nordeste”, revela Santos.
Mas até chegar a este patamar, foram 20 anos de empenho. Santos fundou a marca quando tinha 17 anos. A história do negócio é um encontro de fé e do desejo de ascensão social. Ainda na adolescência, o hoje empresário trabalhou em uma loja que encadernava Bíblias. Com o dinheiro, ele ajudava no pagamento das contas de casa. O jovem, no entanto, tinha o sonho de ter um negócio próprio para conseguir uma renda melhor. Então, resolveu aproveitar o conhecimento que havia adquirido trabalhando como CLT. “Eu comecei sozinho, só com um item principal, que era a máquina de costura”, relembra.

Silas começou seu negócio fazendo encadernações. Além da parte técnica, ele tinha conhecimento sobre a cultura do público-alvo do negócio: fiéis evangélicos. O contato veio de berço, já que herdou dos pais a crença na religião. E a observação atenta o levou a apostar no produto que foi um dos primeiros a gerar grandes volumes de venda: as Bíblias com zíper. A maior parte delas eram encadernadas com materiais impermeáveis que simulavam couro. “A Bíblia da capa preta”, como muitos a conheciam.
Desde o início, Santos focou em vender no atacado, para livrarias e grandes lojas. Com a alta demanda e o preço competitivo, precisou de ajuda. Primeiro levou a família e, depois, empregados de fora. Assim, chegou a ter mais de 10 funcionários. Mas, com o passar dos anos, viu as vendas caírem drasticamente e precisou se reinventar.
Depois de muito estudar, por conta própria, Santos chegou a duas constatações: a margem de lucro com a encadernação estava baixa e o produto já não mais atendia as expectativas do público.
“A gente viu que o público foi mudando. Hoje em dia as pessoas não compram tanto mais a Bíblia da capa preta. Agora, as pessoas estão procurando mais assim”, comenta Natália Maria Campos Diniz, esposa e, hoje, sócia de Santos.
Ao dizer “assim”, Natália pega o produto que tem conquistado muitos clientes nos últimos meses: a Bíblia bolsa. Quem vê pensa se tratar de uma bolsa de festa, com direito a muito brilho e alça metálica. Ao abri-la, a surpresa: o livro sagrado completo.
Com a aposta no novo modelo, também veio a mudança no fluxo de produção. A empresa deixou de só encadernar para apostar no mercado de Bíblias customizadas. Todo trabalho é feito à mão. Os sócios reconhecem que o volume é menor do que o que alcançaram antes, mas solucionaram uma dor da margem de lucro. “Como produzimos menos, reduzimos a equipe. Hoje são só quatro pessoas. Mas o lucro com a Bsíblia personalizada é maior do que a gente teria vendendo 10 mil Bíblias da capa preta”, revela Natália.
Hoje, uma Bíblia personalizada da marca custa entre R$ 140 e R$ 280 no varejo. Para o atacado, tem desconto.
A ABBEY ROAD DE JESUS

Discípulos de Jesus atravessando a famosa Abbey Road do Beatles, estampas com a estética das lendárias camisas de banda de rock e frases de impacto em inglês fazem parte do catálogo da Som do Céu Brand, uma linha streetwear, criada em 2021, em Nova Lima, na Região Metropolitana de BH. A marca, que une fé e estilo urbano, foi criada pela empreendedora Gabriella Sampaio, de 33 anos, inspirada pelo desejo de renovar o conceito de “roupa de congresso”.
Gabi Sampaio, como é mais conhecida, especialmente no meio musical, onde faz sucesso como cantora, afirma que a marca busca conciliar identidade cristã com linguagem contemporânea. “A juventude da igreja também quer se vestir bem, se expressar, e por muito tempo a moda cristã ficou limitada ao formal e ao óbvio”, diz. Com cortes modernos, cores neutras e estampas que equilibram espiritualidade e apelo visual, ela destaca que “não é só roupa para culto, é pra vida”.
Muitas das ideias surgem dos próprios cadernos de Gabi, outras têm a mão dos designers que integram o time. Entre as criações mais marcantes, está uma camiseta com pegada de rock, inspirada na imagem de Deus em seu trono. “A Bíblia fala que o rosto dele brilha como o sol, e eu queria muito trazer essa visão para uma arte com identidade rock — que é um estilo que eu amo”, conta. Para ela, fé e estética não precisam estar em lados opostos: “Cabe o rock também. Claro que cabe. E ficou linda, eu amo essa peça.”
As camisetas custam a partir de R$ 169,90, mas há canecas, cadernetas e adesivos com preços mais em conta, a partir de R$ 44,90. Segundo a empreendedora, durante as noites de adoração, as peças se esgotam rapidamente nos estandes. “Quero que as pessoas carreguem a verdade delas com estilo”, afirma.
Mais do que lucro, Gabi fala sobre propósito. O impacto de suas iniciativas move cada passo. “A gente empreende porque acredita que tem algo relevante para entregar”, explica. Para ela, o verdadeiro resultado está na conexão criada.
Múltipla
Antes de empreender no segmento da moda, Gabi Sampaio fez nome na música. Ela cresceu envolta na musicalidade dos cultos conduzidos por seu pai e tios pastores em uma igreja no Barreiro. Seu talento para o louvor se moldou nos ensaios de coral na infância, mas foi aos 20 anos, durante seu período de estudos na International House of Prayer (Ihop), nos Estados Unidos, em 2013, que ela encontrou o impulso definitivo para transformar sua vocação em carreira.
Ao retornar ao Brasil, começou a ministrar em pequenas igrejas e gravar versões de canções norte-americanas, que rapidamente viralizaram. Logo, suas músicas autorais ganharam espaço, e ela passou a viajar pelo país.
Com a pandemia, foi preciso pensar um novo caminho e Gabi resolveu empreender. Criou a formação de ministros de louvor. O que começou como uma mentoria informal pelo Telegram, com aulas de R$ 30, cresceu para se tornar, em 2020, a Escola de Ministros. A plataforma online, que hoje tem mais de 7 mil alunos espalhados pelo Brasil e Japão, oferece cursos que combinam técnica vocal, liderança e psicologia aplicada ao ministério, impactando igrejas inteiras.
Hoje, os projetos de Gabi — a carreira musical, a Escola de Ministros e a marca de roupas — levaram à contratação de 15 pessoas, entre compositores, designers, videomakers e uma banda. Mas ainda que os números evidenciem o vigor econômico do mercado evangélico, a empreendedora reforça que o projeto é apenas um meio, não um fim. Para ela, o objetivo é ampliar o alcance da mensagem e criar ferramentas para a próxima geração. “Empreender é ser desbravador”, define. “A gente encontra força, encontra recurso e faz. Depois colhe o retorno — financeiro, sim, mas sobretudo espiritual — de ver gente usando, cantando e vivendo o que a gente acredita.”
BH, O EPICENTRO DA MÚSICA CRISTÃ

Minas Gerais é referência nacional no mercado fonográfico gospel. Fora do eixo Rio-São Paulo, a cidade de Nova Lima, na Grande BH, abriga uma das maiores gravadoras do segmento do país: a Onimusic.
Na cartela de artistas do selo estão nomes como Gabriela Rocha. Com hits como ‘Ninguém Explica Deus’ e o marco de 6 bilhões de visualizações em seu canal no YouTube, além de 5 milhões de ouvintes mensais no Spotify, a artista paulistana é um dos grandes nomes da nova geração. Mas a Onimusic tem história de longa data. Diante do Trono, fundado na Igreja Lagoinha, de BH, no início dos anos 2000, traz a solidez de décadas de estrada.
A empresa foi fundada em 2004 a partir do que o CEO Nelson Tristão, de 61 anos, considera ter sido um chamado divino. Na época, ele tinha 40 anos e atuava no negócio da família voltado para o mercado de couro. Apesar de sempre ter tido uma relação com a música, o ‘quase’ engenheiro civil, que sonhava em ser matemático, conheceu a fonografia por meio de um casal de missionários norte-americanos, que se mudaram para BH no fim da década de 1990. Eles se tornaram mentores dos músicos que transformaram a cidade no epicentro evangélico.
“Eu e minha esposa nos aproximamos deles e acabei trabalhando voluntariamente com eles. Quando chegou em 2001, eu sentava [para trabalhar] na minha empresa e já sentia que aquele não era mais o meu lugar. Eu não tinha a mínima noção do que seria isso”, relembra Nelson.
Segundo o empresário, naquela época, Sony, Warner, Universal e outras grandes gravadoras não tinham ainda um segmento de música cristã evangélica dentro dos seus negócios.
Captação boca a boca
No início da Onimusic, Tristão e a esposa eram responsáveis por todo processo e captação de artistas. No “boca a boca”, a lista de parceiros tomou forma até chegar aos mais de 100 nomes atendidos hoje. Todos focados em músicas cristãs, mas com estilos e ritmos diversos.
“É lógico que as gerações vão mudando o jeito de ser. A gente não vai mudar a mensagem, mas a gente pode embalar essa mensagem de forma mais digerível para todas as gerações. A gente entende que é necessário atender essa parte da sociedade, como a geração Z e, agora, a Alpha que está chegando. O que importa é a pessoa e a mensagem que ela quer entregar. “, conta o empresário.
Dentro da filosofia da gravadora de fortalecer a individualidade do artista e deixar de lado o processo massificado de produção, a adaptação aos ritmos mais palatáveis para as novas gerações de cristãos aconteceu de forma natural. O selo trabalha com artistas de pagode até de música pop. Há nomes como o duo Sarau do Reino, de irmãos acordeonistas, que celebram a cultura nordestina em um baião animado. Outra banda é a Pagode Restaura, que tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, arrasta multidões e tem sua própria ‘Tardezinha gospel’.
No entanto, do lado da gestão do negócio, o CEO precisou se adequar nestas duas décadas. A empresa que começou quando CDs eram a base do mercado musical brasileiro expandiu os horizontes rumo à digitalização. A agilidade na virada e o uso de processos modernos mantiveram a competitividade do selo, hoje, no streaming.
“É um trabalho em conjunto. Além de termos os conceitos cristãos, a gente precisa ser muito bom profissionalmente. Precisamos entender muito bem como as plataformas funcionam, como o algoritmo responde, como o seguidor do artista responde para que possamos ajudar a música do artista a ter audiência maior e ser promovida na plataforma”, destaca Tristão.
Assim, uma pequena empresa iniciada com um casal, hoje conta com 60 colaboradores e uma sede em um imponente prédio comercial em Nova Lima.
Com a demanda do mercado, outros negócios surgiram dentro do grupo. A Editora Adorando foi pensada para cuidar dos direitos autorais de autores e compositores nacionais e internacionais. Hoje, são mais de 250 mil obras administradas. A aposta mais recente foi em Inteligência Artificial para desenvolver soluções que serão aplicadas dentro do próprio grupo.
ADORAÇÃO COM BEATS


Israel Lopes, o DJ Ágaph, quer lançar a primeira festa eletrônica gospel em 2026 (Lavínia Fernandes/BHAZ)
De remix com fita cassete em Caratinga, na região Leste de Minas Gerais, à produção da primeira festa eletrônica gospel de Belo Horizonte. A trajetória de Israel Lopes, de 38 anos, conhecido como DJ Ágaph (leia-se Ágape), reflete um movimento crescente entre evangélicos, que estão inovando e ocupando nichos antes impensáveis. Para o DJ, que também atua como técnico em manutenção, adorar a Deus com beats e luzes não é contradição, é conexão.
Ágaph se apresenta em encontros de igrejas, casamentos e festas promovidas por prefeituras. O cachê do DJ gira em torno de R$ 800 e ele faz, em média, cerca de três apresentações no mês. E se engana quem imagina que o ritmo que dita os eventos é mais “tranquilo”. Sucessos virais como ‘Dá-lhe bicuda na cara do cão’, da Bispa Luciana Alves, e outras adaptações de hits do momento como ‘Subir com JC’, além de funks com refrões como “O diabo é vacilão, Jesus é bom”, levam a pista ao delírio. De verdade. Veja:
Israel representa uma geração que vem ressignificando o que é ser evangélico no Brasil. Segundo ele, a modernidade e a tecnologia não são inimigas da fé, e, sim, ferramentas. “A gente atribui uma carga negativa a muitas coisas. Mas, hoje, as igrejas têm parede preta, bateria, guitarra. Estamos tendo a oportunidade de resgatar esse espaço, usufruir dele e louvar a palavra de outras formas”, destaca.
A presença dessa estética moderna em um universo antes marcado pela tradição revela um setor que tem se diversificado para atender a um público que quer consumir cultura, lazer e informação sem abrir mão da fé. “Nós estamos aqui para divertir, para curtir, para viver e sermos, de fato, absolutos na presença de Deus. Deus quer que vivamos de forma plena e abundante. E essas inovações nos ajudam nisso”.
Inicialmente autointitulado como “empreendedor solo”, agora, Ágaph celebra a força do coletivo. Há cerca de dez meses, ele montou uma equipe com mais três pessoas, formada apenas por evangélicos, com o objetivo de criar um ecossistema criativo voltado para o público cristão — e, ao mesmo tempo, dialogar com quem está fora desse circuito. “Muitas pessoas não vão à igreja, mas quando você tira as coisas de dentro da igreja e coloca na sociedade, de um jeito acessível, você aproxima essas pessoas de Deus”, afirma.
Para 2026, o coletivo deve realizar a BH Eletro Gospel, a primeira festa do gênero na capital. “A ideia é criar um espaço onde o público cristão possa se reunir, tomar um refrigerante, um drink sem álcool, comer uma porção e curtir uma boa música”, detalha.
UM MERCADO EM EXPANSÃO
As histórias promissoras de negócios de Silas, Gabriella, Nelson e Israel acompanham o crescimento do “mercado evangélico” nacional, seguindo a curva demográfica que se desenha desde 1940.
Segundo o doutor em economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Jonas da Silva Henrique, o peso desse mercado consumidor é crescente. “Ele sai de 4%, 5% do meio do século passado e tem previsão de chegar, em 2030, a aproximadamente 40% da população brasileira, superando até a população católica, que era hegemônica”, analisa.
A reconfiguração do cenário brasileiro ganhou, entre os especialistas, um nome para si: transição religiosa. Em artigo publicado em 2022 na plataforma de informação sobre temas socioambientais EcoDebate, o doutor em demografia pela UFMG, José Eustáquio Diniz Alves, explica o processo social e histórico em dois movimentos predominantes: “declínio absoluto e relativo das filiações católicas e aumento acelerado das filiações evangélicas”.
Em outras palavras, o que se vê no Brasil, nas últimas décadas, é a redução não só do percentual de católicos (88,9% em 1980 para 83% em 1991, 73,6% em 2000, 64,6% em 2010 e 56,7% em 2022), mas também do número absoluto (que, segundo o IBGE, atingiu seu valor máximo em 2000, antes de cair de 124,9 milhões para 100,2 milhões no último levantamento).
Concomitantemente, os evangélicos passaram a crescer 0,7% ao ano entre 1991 e 2010, resultando num aumento percentual (6% da população brasileira em 1980, 9% em 1991, 15,4% em 2000, 22,2% em 2010 e 26,9% em 2022) e, consequentemente, também absoluto (13,8 para 47,4 milhões no mesmo período), visto o crescimento da população brasileira como um todo.
Ainda segundo o artigo de Diniz Alves, a falta temporária de dados atualizados sobre o perfil religioso do Brasil por parte do IBGE, devido à pandemia, abriu espaço para os de outras pesquisas, como do Latinobarômetro, da Pew Research Center e do Datafolha. Embasado nas evidências disponíveis entre 2010 e 2022, o demógrafo projeta a “continuidade da queda das filiações católicas no ritmo de 1,2% ao ano” e o “aumento anual de 0,8% dos evangélicos” pela próxima década. O resultado da análise aponta, então, uma data para a ultrapassagem premeditada há mais de meio século: caso se concretize, católicos serão, em 2032, 38,6% da população, enquanto os evangélicos serão 39,8%.
FAMÍLIA DA FÉ

A projeção de ampliação dos evangélicos ganha ainda mais força quando se considera o que o economista Jonas Henrique chama de economia identitária — isto é, a predisposição de integrantes de grupos religiosos a consumirem produtos e serviços de indivíduos pertencentes à mesma comunidade. “Por exemplo: se eu precisar de um encanador, vou contratar um irmão da minha igreja. Vou dar prioridade a ele. Se não houver essa pessoa, vou procurar alguma característica que identifique o prestador do serviço como evangélico, seja ele de qualquer outra denominação, desde que haja um mesmo normativo ético e moral que o meu”, explica.
De acordo com o economista, a preferência não é restrita à prestação de serviços. Aliás, segundo ele, não é incomum encontrar versículos bíblicos ou termos religiosos estampados em rótulos de produtos como estratégia para angariar compradores que se identificam com o evangelho. “É uma forma de dizer: ‘olha, compre comigo porque eu defendo os mesmos valores cristãos que você’”, revela.
Jonas explica que a tática se ancora em princípios presentes na própria Bíblia. “Se a gente for em Gálatas 6:10, há: ‘Portanto, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos da família da fé’. Esse cenário favorece o empreendedorismo gospel, especialmente em contextos periféricos, que se utilizam dessas redes de identidade. Nesses casos, a confiança religiosa é tratada como um ativo simbólico econômico”, aponta.
“Os valores religiosos não apenas regulam o consumo, mas estruturam uma economia alternativa marcada pela confiança mútua e pelo desejo de ascensão coletiva baseada na fé”.
Jonas da Silva Henrique, economista da UFMG
O que o economista Jonas chama de “economia identitária”, a nutricionista Elizangela Delfino Guerra, de 34 anos, chama de “comunidade” e “sentimento de pertencimento”. “A gente cultua esse hábito de consumir e dar preferência para qualquer tipo de produto de algum irmão. Por exemplo, se eu quero comprar um bolo para uma festa de aniversário e eu sei que tem algum irmão da igreja que faz o bolo, eu vou dar preferência a ele, para ajudar ele”.
Para Elizangela, essa rede de apoio se assemelha a uma “grande família” e, quanto mais você consome, mais você fortalece os vínculos e movimenta o negócio do outro. “A gente acaba fidelizando mesmo, indicando para mais pessoas, criando uma corrente de apoio, porque a gente confia no trabalho, valoriza e quer ver o negócio do irmão prosperar. É igual carrapato, onde o irmão vai, nós vamos também”, brinca ela.
E essa irmandade não se limita apenas a produtos, também se estende a serviços — como uma “manicure indicada pela comunidade” ou, até mesmo nos atendimentos da nutricionista. “A gente tem a mesma linguagem, o que facilita criar um relacionamento de família mesmo, inclusive no trabalho. Tem coisa que temos mais intimidade de fazer ou conversar com um irmão do que com alguém que acabamos de conhecer. É uma identificação”, destaca.
Elizangela é da Oitava Igreja Presbiteriana de BH, localizada no Palmares, região Nordeste de BH. A igreja se apresenta como contemporânea e conta com um grupo de trabalho chamado GCRIE- Gestão de Carreiras, Recolocação profissional, Inovação e Empreendedorismo. A proposta é promover eventos como palestras, workshops e cursos para apoiar membros e não membros da igreja na área de carreiras.
“Este movimento não apenas fortalece essa rede de empreendedores e empresários, mas também busca promover o crescimento e a qualidade dos produtos. Sempre convidam pessoas influentes — não necessariamente cristãs, mas, se forem, melhor ainda — para dar palestras sobre vendas, posicionamento, qualidade, avanços tecnológicos e até sobre como aproveitar as evoluções da inteligência artificial”, afirma a nutricionista.
JANELA DE OPORTUNIDADES

Mais do que a expansão do número de consumidores evangélicos e a economia identitária, empreendedores como Silas, Gabriella, Nelson e Israel se beneficiam de outro conceito econômico: o nicho de mercado. No jargão do marketing, nicho de mercado se refere a um segmento específico, dentro de um mercado maior, composto por um grupo de consumidores com características, necessidades ou interesses semelhantes que ainda não estão sendo plenamente atendidos pelas ofertas existentes.
A nutricionista Elizangela Guerra conta, por exemplo, que, além de dar preferência para compras com a comunidade cristã, tem aproveitado de novos produtos e serviços personalizados para este público. “Por exemplo, no Spotify, eu tenho a minha playlist de treino cristã. Ah, quer relaxar? Tem também a playlist cristã para relaxar. Então é tudo assim: se vamos numa festa, um casamento, a pessoa procura lá um DJ evangélico e escolhe as músicas mais atuais, que o pessoal vai gostar”.
Para a gerente da unidade de Indústria, Comércio e Serviços do Sebrae Minas, Márcia Valéria Cota Machado, “produtos religiosos” se encaixam perfeitamente na definição. Aliás, segundo ela, os “produtos evangélicos” podem ser considerados um subnicho — isto é, uma subdivisão ainda mais específica do nicho religioso. “O subnicho é composto por consumidores que compartilham crenças, práticas e valores espirituais, o que cria um ambiente propício para produtos, serviços, moda, gastronomia, eventos e entretenimento ainda mais especializados”, afirma.
Desafios
Embora atraente, a aposta em vendas nichadas deve considerar uma série de desafios. Segundo Márcia, é preciso “compreender as necessidades do público e manter o foco; falar a linguagem dos consumidores em função da especialização; superar a ‘barreira de entrada’, que exige especialização e conhecimento para permanecer no negócio; e entender a escalada limitada e a saturação de mercado”.
Para ela, o caminho que leva ao retorno financeiro pode passar, por exemplo, por cursos de gestão e estratégia empresarial ofertados por entidades de apoio às empresas, como o próprio Sebrae.
Ao migrar o foco de sua produção de Bíblias com zíper para livros sagrados personalizados, o empreendedor Silas Santos, por exemplo, compreendeu exatamente a demanda de seus clientes, adaptando-se ao novo desejo de mercado.
De origem humilde, ele não conseguiu cursar uma faculdade e entrar no discreto grupo de 13,7% dos pequenos empreendedores antigos que, segundo pesquisa de 2024 do Sebrae, têm ensino superior no país. A busca por modernização sempre veio de estudos próprios do empresário, mas nos últimos cinco anos ele e a esposa perceberam a necessidade de buscar mais conhecimento para superar desafios do negócio.
“A gente procura se atualizar no mercado e fazer alguns cursos, principalmente do Sebrae para se atualizar sobre finanças e gestão da empresa. Já fizemos muitos cursos”, comenta Natália. “Deu uma diferença grande [na gestão]. Às vezes, a gente tem uma ideia, mas lá abrimos a mente a outras opções”, pontua sobre os avanços com as formações.
Hoje, 20 anos depois do início do empreendimento, os desafios são outros e esbarram no encontro da digitalização e da fé. “Muitos clientes fazem questão de comprar na nossa loja por saberem a nossa origem, que viemos de família evangélica, mas acontece de pessoas se passarem por nós na internet para vender produtos. Além de mentirem a identidade, atrasam a entrega e fazem produtos de qualidade ruim. Já aconteceu de cliente nos ligar pedindo reembolso de produtos que não eram vendidos por nós”, conta Santos sobre os gargalos atuais.
POTENCIAL CONSUMIDOR
“A gente precisa olhar com atenção para a força dessa comunidade como consumidores”.
Fudissaku
“Os evangélicos vão guiar o crescimento do consumo no Brasil em 2026”. A afirmação é de Fabrício Fudissaku, publicitário com pós-graduação em administração e CEO da Data-Makers, associado ao HSR Specialist Researchers.
Em novembro de 2024, o Data-Makers divulgou uma pesquisa que aponta o potencial consumidor dessa comunidade, como o nível de influência da religião nas compras e o índice do sentimento de representatividade por marcas já existentes no mercado.
Dentre as quase duas mil pessoas entrevistadas, 58% dos evangélicos afirmaram considerar algum aspecto religioso na hora de contratar algum serviço ou comprar produtos. Desse total, 21% relataram considerar pouco, 23% disseram considerar significativamente e 14%, muito.
O percentual, segundo o estudo, é 16% superior ao observado entre os não evangélicos, dos quais 42% relataram algum tipo de influência religiosa nas decisões de consumo.
O CONSUMIDOR EVANGÉLICO
Confira os gráficos com os resultados da pesquisa da Data-Makers:
Desassistidos pelo mercado
São muitos os pontos em comum entre a pesquisa da Data-Makers e o sucesso nos negócios de empreendedores evangélicos. Entre eles, porém, um se destaca: a ala que mede a representatividade de mercado. De acordo com o estudo, quase 4 entre 10 evangélicos acreditam que o mercado não os atende. O trabalho também aponta que a comunidade é duas vezes mais propensa a deixar de comprar por motivos religiosos que os “não evangélicos”. Reunidos, os números indicam uma oportunidade que, nas mãos de empreendedores tornou-se uma forma de fazer dinheiro.
Novamente, o economista Jonas da Silva Henrique aponta na Bíblia o pretexto utilizado pelos evangélicos para sustentar a mercantilização da fé. “Essa lógica vem baseada em João 10:10, um versículo da Bíblia em que Jesus diz: ‘Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância’”, resgata. “Nesse contexto, o fiel não é só um consumidor da religião; ele é um investidor espiritual que aplica os recursos terrenos, pecuniários e não pecuniários, em busca de recompensas que podem vir nessa vida ou na eternidade”, analisa.
Invista, compre, gaste, ganhe, receba
O perfil consumidor dos evangélicos e, de certa forma, o apetite evidenciado pela pesquisa da Data-Makers não se configuram por acaso. São, na verdade, resultado de uma doutrina que prega a abundância material como expressão do desejo divino, seguida por grande parte da população evangélica brasileira. No universo religioso, essa doutrina é conhecida como Teologia da Prosperidade.
“O próprio nome sugere do que se trata: ela enfatiza a prosperidade material, financeira. Se consolida nos Estados Unidos, na década de 1970, e chega ao Brasil nos anos 80”, explica Carlos Caldas, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e professor do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. “Quando promete para as pessoas ‘Deus vai te fazer prosperar’, dá muito certo por aqui. Quem não quer isso?”, questiona.
Adotada principalmente pela ala neopentecostal da comunidade protestante no Brasil, a Teologia da Prosperidade inseriu nos ambientes religiosos uma série de palavras antes evitadas: invista, compre, gaste, ganhe, receba. O dinheiro deixou de ser um antigo tabu para ser encarado como pavimento de uma vida mais confortável e, segundo a doutrina, próxima de Deus. Concomitantemente, o mercado ganhou consumidores mais ativos e investidores interessados em lucrar a partir da crença.
Mercantilização da fé
Apesar do discurso motivacional presente na doutrina, o professor Carlos Caldas não vê na Teologia da Prosperidade um quadro de melhorias financeiras na vida da população. “Faz 40 anos que a Teologia da Prosperidade atua no Brasil, e o país tem uma das distribuições de renda mais injustas do mundo. Ele ficou menos injusto com a doutrina? Não. Mas, para os grandes líderes, deu muito certo”, compara.
O professor explica que a doutrina não deve ser associada à população evangélica como um todo, afinal, o protestantismo não é nada homogêneo. A ênfase na prosperidade material seria uma característica específica do neopentecostalismo, um segmento da comunidade que se desdobra entre metodistas, adventistas, calvinistas, entre muitos outros. “Não podemos julgar todo mundo na vara comum”, brinca Caldas.
Se de um lado a cautela do professor faz-se válida, do outro, os números apontam a proeminência do neopentecostalismo na demografia brasileira. De acordo com um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2023, entre os 124.529 estabelecimentos religiosos existentes no país em 2021, 52% eram evangélicos pentecostais ou neopentecostais. “O Brasil já é o país mais pentecostal do mundo. Passou os Estados Unidos”, afirma Carlos.
O neopentecostalismo corre junto na liderança pela base de fiéis brasileiros, mas enfrenta subnotificação por questões ligadas à própria leitura bíblica. Segundo o professor, para os neopentecostais, fazer a contagem de associados seria um exemplo de falta de crença em Deus. Apesar disso, nem mesmo a escassez de dados mais completos esconde o fato de que a vertente angaria milhões de pessoas pelo Brasil. Suas maiores representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo evangélico, televangelista e empresário Edir Macedo, e a Igreja Internacional da Graça de Deus, do pastor, advogado e também empresário Romildo Ribeiro Soares, mais conhecido como R. R. Soares.
Como estudioso e protestante, Caldas critica o discurso empregado pelos grandes líderes neopentecostais e o manejo da Teologia da Prosperidade como forma de mercantilizar a fé. “É a deturpação da oração de São Francisco, que diz que é dando que se recebe. A lógica de dar para Deus e receber algo em troca não funciona assim. Deus dá para a gente sem merecimento da nossa parte. Não existe compra ou troca da graça divina, Deus dá, é dádiva”, diz o professor em oposição à doutrina materialista.
Líderes masculinos, mulheres na massa
Dado o potencial consumidor da população evangélica brasileira, é preciso entender, também, o perfil dessa comunidade — principalmente os interessados em ingressar no mercado da fé. Segundo Abraão Tavares, mestre em economia e doutorando em demografia, o Brasil evangélico tem rosto de uma mulher negra com idade entre 20 e 50 anos.
“A participação na comunidade é algo muito importante para os evangélicos, e esse trabalho tem muito a ver com o cuidado. Então, por mais que a gente veja uma proeminência das lideranças masculinas, o corpo é mais formado por mulheres. Os dados disponíveis nos ajudam a entender como é feminina essa religião”, analisa.
De acordo com os dados do Censo 2022, divulgado nesta sexta-feira (6), a população evangélica no Brasil é composta por 55,4% de mulheres e 44,6% por homens.
De acordo com Abraão, as discussões sobre esse perfil já acontecem dentro das igrejas. “Ele alimenta algumas questões que têm começado a surgir e movimentos que tentam atrair homens. Homens e pessoas de outras faixas etárias. Como exemplo, temos os Legendários, um movimento de masculinização que vem como resposta evangélica dentro da religião que, em sua maioria, ainda é feminina”, afirma.
Para Abraão, a transição religiosa em curso no Brasil evidencia uma mudança ideacional, paralela à Constituição de 1988, que garante a liberdade de culto no país.
“Para um país que, por séculos, enquanto colônia, foi construído a partir de uma ideia religiosa — já que a colonização também tinha esse cunho religioso —, é o sinal de uma certa coesão social, que transborda para uma grande mudança”, diz.
Créditos
Reportagem: Amanda Serrano, Lavínia Fernandes, Pablo Nascimento e Thiago Cândido
Design gráfico: Gabriela Fagundes
Edição: Shirley Pacelli
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