Vamos falar das Leis Raciais de 1938? A cidadania italiana está voltando ao passado?

Quando o governo da Itália promulgou, em março de 2025, um decreto que restringe severamente o direito à cidadania por descendência (jus sanguinis), a justificativa oficial parecia técnica: conter o “excesso de pedidos”. Mas essa explicação é superficial. A medida não é sobre eficiência. É sobre ideologia. É sobre identidade. E, sobretudo, é sobre exclusão.

O que está em curso na Itália de Antonio Tajani, Giorgia Meloni e Matteo Salvini não é apenas uma política migratória. É um projeto político que ecoa — em tom, forma e espírito — o nacionalismo autoritário que tomou conta da Europa nos anos 1930. E que, na Itália, ganhou nome: fascismo.

Essa reforma ecoa o velho desejo de purificar a italianidade.

O decreto Tajani: genealogia de uma exclusão

O Decreto-lei n° 36/2025, de autoria do ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani (Forza Italia), limitou o reconhecimento da cidadania italiana automática a até netos de cidadãos italianos. A partir da quarta geração, os descendentes só terão direito se o genitor tiver residido legalmente por pelo menos dois anos na Itália antes do nascimento — além de não possuir outra nacionalidade no momento.

Edição do Corriere della Sera de 14 de novembro de 1938 anuncia a aprovação das Leis Raciais pelo governo fascista italiano. O título destaca: 'Leis para a defesa da raça aprovadas pelo Conselho de Ministros'
Edição do Corriere della Sera de 14 de novembro de 1938 anuncia a aprovação das Leis Raciais pelo governo fascista italiano. O título destaca: ‘Leis para a defesa da raça aprovadas pelo Conselho de Ministros’

Essa mudança parece razoável até se considerar o contexto. O Brasil, que abriga a maior comunidade ítalo-descendente do mundo (mais de 30 milhões de pessoas), é o principal afetado. Milhares de processos em andamento serão descartados. Famílias serão partidas entre cidadãos e não cidadãos. E tudo isso sob um argumento de que “a cidadania deve ser um compromisso real com a Itália”.

Mas quem decide o que é “real”?

O elogio a Mussolini e a recusa do antifascismo

Em 2019, Tajani declarou que Benito Mussolini “também fez coisas boas” — uma tentativa de resgatar a imagem do ditador como modernizador do país. A fala repercutiu mal em toda a Europa e foi condenada pelo Parlamento Europeu. Mas Tajani não se retratou com firmeza: apenas disse ter sido mal interpretado.

Já a primeira-ministra Giorgia Meloni, líder do Fratelli d’Italia, começou sua carreira política em grupos herdeiros do Movimento Social Italiano — fundado por ex-fascistas após a guerra. Em 1996, aos 19 anos, afirmou que “Mussolini foi um bom político”. Embora hoje negue vínculo com o fascismo, Meloni recusa-se até hoje a se declarar “antifascista”, termo que a Constituição Italiana abraça explicitamente.

Essa recusa é mais do que simbólica. É estrutural.

Matteo Salvini: o separatista que virou nacionalista

O terceiro vértice da coalizão governista é Matteo Salvini, da Lega (antiga Lega Nord). Durante anos, Salvini defendeu o separatismo do norte da Itália, chamando o sul de “peso morto” e defendendo um “Padânia livre”. Hoje, reconvertido em nacionalista, é obcecado por fronteiras, identidade e soberania.

Salvini é famoso por frases como:

“Não podemos aceitar que qualquer um vire italiano só por querer”

Ele já citou Mussolini como “um líder que teve sua época” e criticou duramente o uso da palavra “fascista” como insulto. Em 2019, seu partido aprovou homenagens a soldados da RSI — a República Social Italiana, último bastião do regime de Mussolini sob ocupação nazista.

A sombra das Leis Raciais de 1938

O paralelo mais incômodo talvez seja esse. Em julho de 1938, o regime fascista publicou o Manifesto da Raça, que deu base às Leis Raciais Italianas. Essas leis baniram judeus de escolas, universidades e cargos públicos, proibiram casamentos “mistos” e revogaram cidadanias concedidas a não-europeus e minorias.

O princípio era claro: proteger a “raça italiana”.

Hoje, o decreto de 2025 protege o quê? A “italianidade autêntica”?

Quando se exige que descendentes abandonem suas nacionalidades, morem anos na Itália ou provem “vínculo real” com o país, está se dizendo que a identidade italiana não é uma herança cultural, mas um privilégio restrito. Isso é perigoso — e ecoa as piores páginas da história italiana.

A cidadania como instrumento de pureza nacional

A Itália é, por definição, um país de emigrantes. Entre 1861 e 1985, mais de 26 milhões de italianos deixaram o país. Eles partiram pobres e fugindo da fome e da guerra. Seus netos e bisnetos, que mantiveram sobrenomes, hábitos e vínculos afetivos com a “terra dos nonni”, não podem agora ser descartados como oportunistas.

Negar-lhes a cidadania é negar a própria história da Itália.

Esse novo modelo de cidadania cria um “italiano ideal”, domesticado, territorial, homogêneo. O mesmo ideal que Mussolini perseguia quando dizia que “o sangue define a pátria”. O mesmo ideal que perseguiu judeus, mestiços, migrantes, meridionais. O mesmo ideal que a Constituição de 1948 tentou enterrar.

A hora de dizer: não de novo

Os ítalo-descendentes devem reagir. As associações ítalo-brasileiras devem reagir. O Parlamento Europeu deve reagir. Porque este não é um debate sobre burocracia — é sobre valores democráticos. A exclusão não é técnica: é política, simbólica e histórica.

Se a cidadania se tornar um teste de pureza, a Itália terá deixado de ser uma república para voltar a ser um projeto de exclusão.

E nós sabemos onde isso termina. Já vimos antes. Em 1938.

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