A ideia do continente Pau-Brasil (na animação, nome dado a um dos novos territórios) é uma provocação, justamente por que o filme pergunta: e se o Brasil tivesse seguido outro caminho? E se os povos que sempre resistiram à colonização tivessem, afinal, vencido? Qual o sentimento que em ti, espectador, provoca essa possibilidade? Por fim, a ficção nos permitiu ensaiar essas perguntas sem pedir permissão à história oficial
Distópico e utópico
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Ao lado dos diretores de animação Esaú Pereira e Telmo Carvalho, a diretora e roteirista baiana tem na escolha do gênero cinematográfico animado uma eficiente ferramenta para ilustrar essa realidade futurista, mas calcada em um passado histórico e real.“A animação me permitiu expandir os limites para criar uma gramática visual própria para esse futuro distópico, ou até utópico (dependendo do teu ponto de vista) ainda que ancorado em fatos históricos, como a Revolução Praieira ou a Cabanagem” conta.“A linguagem da animação funciona, no Glória, como uma fabulação histórica: ela nos dá liberdade para tensionar o tempo, construir possibilidades e misturar temporalidades, tornando visível o que muitas vezes foi apagado ou deformado pelas narrativas oficiais”, alerta Letícia, cuja produtora Poema Tropical, ao lado da Moçambique Audiovisual, do produtor Maurício Macedo, e da produtora de animação Zonzo Estúdio, criaram em parceria o filme.
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Sobre a sintonia no trabalho com Esaú e Telma, Simões destaca que “Foi um processo bem colaborativo. Desde o início, buscamos uma escuta mútua entre nossas referências visuais, políticas e afetivas. Eu, vinda do documentário e da escrita, provoquei o uso do arquivo e da materialidade da imagem”, explica a diretora.“Estávamos sempre nos perguntando: como desenhar uma distopia que ainda reverbera no presente? Como povoar esse mundo com rostos, sons e texturas reconhecíveis e, ao mesmo tempo, inventados?”, explica.Futuro reconfigurado
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Em relação a tais aspectos visuais da animação, Gloria & Liberdade possui elementos que caracterizam bem cada região daquele que costumava ser o Brasil, mas que passou a ser o citado continente Pau-Brasil. Recife como uma cidade futurista, mas que ainda traz elementos atuais.O Pará mantém com mais evidência seus tradicionais costumes, tanto em relação à música quanto em seus aspectos geográficos e fluviais, e Salvador aparece quase como uma Gotham City, um local cuja perseguição política, a insegurança social, juntamente às características culturais locais, refletem as escolhas de paletas de cores e estilo na representação da cidade.Letícia explicou como se deu a escolha dos elementos característicos de cada local para compor o que vemos na tela.
Queríamos que cada território mantivesse sua singularidade cultural, mesmo num futuro reconfigurado. Recife, a capital do Reino Unido de Pernambuco, foi desenhada como uma cidade tecnologicamente avançada, mas ainda marcada pelas desigualdades sociais, trazidas desde o tráfico escravagista ilegal do fim século XIX, assim como pela insurreição. Taua Sikusaua Kato, a grande nação com mais de 130 etnias indígenas, guarda a memória dos rios, dos barcos, das diferentes cosmogonias, com tudo isso resistindo à padronização neoliberal (e pagando o preço por isso)
“Já Salvador aparece como uma metrópole noturna, densa e vigiada, onde a cultura pulsa, apesar da repressão. Usamos paletas cromáticas e trilhas específicas para refletir esses contrastes e preservar as atmosferas locais”, afirma a diretora.Letícia, que traz experiências na escrita de séries como Cangaço Novo e Maria e o Cangaço, trabalhos que abordam fatos históricos e que, com o primeiro citado acima, possui uma roupagem moderna, falou, também, sobre como tais experiências a ajudaram a moldar a escrita para Glória e Liberdade.”Trabalhar com a pesquisa histórica sobre a criação simbólica do Nordeste, bem como a história das rebeliões populares brasileiras me ensinou muito. A escrita de Glória e Liberdade parte do princípio de que o futuro não apaga o passado, ele o dobra.A resistência social se dá também pela permanência da linguagem, do corpo e destas formas de viver”, define a diretora destacando, também, o fato do filme precisar atrair seu público a partir de uma lógica de entretenimento.“Ao mesmo tempo, esse é um longa-metragem de animação, não é uma tese de doutorado; ou seja, era preciso trabalhar de uma forma sedutora a narrativa própria do filme. O trabalho nestas dramaturgias citadas me deu ferramentas para criar personagens enraizados, mesmo nesse contexto de tamanha pesquisa”, finaliza a cineasta.*O jornalista viajou para Curitiba a convite do ‘Festival Olhar de Cinema’