Roubaram meu jornal. Estão roubando uma nação. E a gente segue fingindo que não vê

Cogitei cancelar meu A TARDE dominical por causa da chateação de encontrá-lo todo esparramado sobre a mesa do saguão na entrada do prédio. Anunciei várias vezes no grupo do zap que a assinatura não é comunitária, mas não tem jeito. As câmeras não cobrem o local e o/a folgado/a segue abusando da vizinha que não mexe em nada de ninguém e, tal qual G. Bündchen, só quer poder viver em paz.Era de se esperar alguma civilidade num edifício com apenas 20 apartamentos, habitados por pessoas escolarizadas, vivendo dignamente e até curtindo eventuais viagens ao exterior.Já tive de reclamar sobre a expropriação contínua de vasos de plantas que mantenho no pátio, pois era só ficar um vazio, aguardando nova muda, para alguém passar a mão. Me dava pena sacrificar a plantinha, comprava outro vaso, substrato, etc e amargava o prejuízo. Nesse caso, tomaram tenência.O mesmo não ocorreu com o jornal; parece que é irresistível se deleitar às minhas custas, ainda que o celular assegure notícias bem mais atualizadas.

A maioria de nós é muito ciosa de seus pertences e alguns se sentem à vontade para também desfrutar da propriedade alheia sem consentimento. Falta de respeito tão básica que só me ocorreram duas alternativas: deixar de assinar o jornal ou colocar uma câmera no saguão. Sendo, porém, a câmera particular, perigava ser condenada por danos morais e talvez a pagar indenização + uma assinatura para a vítima, que então não mais se veria obrigada a meter a pata em meu exemplar

Mixarias, mas que estressam e revoltam. Agora, imagine habitar um território ancestral, de onde um antigo vizinho o expulsa desde o início do século XX, através da aquisição de pedaços de suas terras e a prática de violências, causando conflitos de menor ou maior intensidade.No dia 07/10/2023, alguém se reta e manda o fogo mais recente. O vizinho retalia dando início ao aniquilamento de civis de maneira espetacular, ao alcance dos olhos do planeta inteiro. Um vizinho que muito sofreu durante sua história e goza da compaixão de todos por ter sido cruelmente perseguido durante o nazismo.Recente pesquisa aponta que 82% dos judeus israelenses apoiam a retirada dos moradores de Gaza à força e 47% aprovam a matança. Assustador, mas nem toda a gente judaica está de acordo: há opositores dentro e fora do país, horrorizados com o massacre a que assistimos, impotentes, pouco nos cabendo além de protestar.

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Falar do povo judeu é sempre espinhoso; se você não estiver 10 mil% do lado dele, será prontamente acusado de antissemita pelos sionistas. Eu não tenho absolutamente nada contra os descendentes de Sem – até possuo pequena parcela de sangue igual, segundo meu teste genético.Aprecio sua culinária e fiz de tudo para convencer alguns a abrir em Salvador uma padaria que oferecesse bagels, bialys e outras delícias. Já participei com muito gosto da celebração do Chanucá, quando cada noite se acende uma vela no candelabro de nove braços, acompanhei as preces, ajudei a fritar e devorar os saborosos latkes, que têm a batata e a cebola como ingredientes principais. Contudo, não vou defender o que fazem de errado.O extermínio dos palestinos ora em curso não comporta a indiferença. Creio que a voz oponente há de se tornar mais e mais pujante, por meio das armas das quais dispomos: palavra, redes sociais, manifestações.

Quem sabe o clamor obrigue a comunidade internacional a aplicar a Israel sanções semelhantes às que forçaram a África do Sul a pôr fim ao Apartheid. Só que o processo teria de ser mais breve ou não sobrarão crianças na Faixa de Gaza, “braço armado da revolta futura” e justificativa para sua eliminação.

Ora, vizinhos! Só haverá revolta futura se as agressões continuarem! Durante séculos os dois povos coabitaram de boa, talvez indo um até o outro para pedir uma xícara de açúcar. Os bravos palestinos não terão sua nação roubada sem resistir. E, até onde eu saiba, não são sequer responsáveis pelas diásporas judaicas que se deram.Desconheço se com eles partilho DNA, mas também escolhi lutar por aqui: começarei uma campanha para a instalação de uma câmera flagradora de apreciadores de periódicos alheios, em vez de abrir mão do meu direito de receber um jornal intacto. Grandes ou pequenas que sejam as contendas, o poeta disse que é pra encarar.*ró-Ã é autora do livro Dor de facão & brevidades

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