Quando o autista vira adulto: por que o Brasil ainda falha em acolher essa população?

Enquanto a bancária Patrícia Teodolina conversa com a reportagem, a voz altiva também guia o banho do filho Rodrigo, de 19 anos. “Me viro em mil”, diz a baiana, mãe de um autista não verbal. A rotina dos dois exige atenção constante e uma disciplina que Patrícia aprendeu a cultivar no silêncio do cuidado diário. O que ela enfrenta, no entanto, está longe de ser um caso isolado. Baianos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) chegam à idade adulta sem suporte suficiente para uma vida com autonomia, dignidade ou participação social plena.Rodrigo recebeu o diagnóstico ainda criança e chegou à fase adulta tendo que enfrentar obstáculos. “As pessoas acham que o autismo acaba na infância”, comenta Patrícia. “Mas, quando nossos filhos crescem, tudo fica ainda mais difícil”.O Brasil tem 2,4 milhões de pessoas com TEA, o que corresponde a 1,2% da população no país, segundo o Censo Demográfico 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A faixa etária de seis a 14 anos tem maior prevalência. Cerca de 70% dos meninos e 55% das meninas com TEA estão nesse grupo de idade.A ausência de representações adultas de pessoas autistas na mídia e nas discussões em torno do tema chamou a atenção de Patrícia logo que recebeu o diagnóstico de Rodrigo. “Eu ia a simpósios e congressos para entender o que meu filho tinha e não via um adulto com autismo”, lembra.Ela chegou a pensar que a expectativa de vida de uma pessoa com TEA é menor, o que não procede. 

Achava que o meu filho, por ser autista, ia morrer cedo

O questionamento se transformou em uma busca. Patrícia passou a procurar por adultos com TEA para sanar as dúvidas sobre a qualidade do futuro do filho.Em Salvador, encontrou dois jovens de 20 anos. “Eles tinham uma rotina muito ruim: iam da sala para a cozinha, da cozinha para o banheiro, não faziam nada da vida”, conta Patrícia, que também testemunhou que ambos haviam sido expulsos da escola por não terem comportamentos socialmente adequados.Atenção específica para adultos com autismoPsicólogo e supervisor técnico do Centro de Referência Estadual para Pessoas com TEA (CRE-TEA), Vinícius Neiva destaca que políticas públicas e espaços com adaptações são fundamentais para este suporte. “É um grupo que precisa de atenção específica”, explica.O CRE-TEA tenta preencher parte desse vazio, ao capacitar equipes de saúde no estado para lidar com autistas. O objetivo da instituição é construir redes de cuidado com escolas, serviços de saúde e empresas que alcancem todas as regiões do estado, ainda muito carente de informações sobre o TEA.O psicólogo chama a atenção para os desafios da comunicação e da socialização, um entrave para a colocação das pessoas autistas no mercado de trabalho. 

Iniciar ou terminar uma conversa pode ser extremamente difícil para pessoas com TEA. Isso é visto como indiferença ou falta de educação, quando na verdade é uma questão neurológica

Vinícius Neiva – psicólogo

Oportunidades para adultos autistas

|  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Fundado por Patrícia em 2014, o Projeto Fama (Formação e Apoio ao Mundo do Autista) nasceu da urgência em criar oportunidades reais para jovens e adultos com TEA. Em vez de focar apenas no mercado tradicional, o Fama abarca não apenas vínculos empregatícios formais, mas também caminhos como o empreendedorismo e atividades independentes.A ideia do projeto, explica Patrícia, é trabalhar as habilidades socioemocionais do indivíduo, além da cognição e a adaptabilidade dentro do mundo do trabalho. Desde a fundação, em 2014, o projeto já capacitou mais de 150 jovens. As idades variam dos 15 aos 50 anos e possui longas filas de espera para cadastro.Nem todos os jovens guiados pelo projeto seguem para o mercado formal. Parte significativa é voltada para o desenvolvimento de alternativas empreendedoras. “Percebemos que nem todo jovem precisa ser admitido por uma empresa. Então, criamos oficinas para transformar interesses em trabalho, renda e inclusão profissional”, diz Patrícia, que coordena uma equipe formada por 20 pessoas que se mantêm com a ajuda de doações, editais e repasses públicos.No campo da educação profissional, algumas instituições tentam abrir caminhos. É o caso do Senai Bahia, que por meio do Programa Senai de Ações Inclusivas (Pisai), desenvolve estratégias personalizadas para alunos com autismo.Psicopedagoga da instituição, Emiliana Maia, explica que o trabalho começa com o reconhecimento da individualidade. “Precisamos dialogar com o aluno, entender o perfil, as potencialidades e dificuldades”, detalha. “A partir daí, criamos planos educacionais individualizados”.

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Essas estratégias incluem desde adaptações de atividades até o fortalecimento da autoestima. “Muitos alunos chegam aqui sem saber pegar uma condução ou participar de uma conversa. Aos poucos, com apoio, eles conseguem organizar a rotina, melhorar a linguagem oral e desenvolver relações interpessoais”, diz ela.Emiliana ressalta que o capacitismo, o preconceito contra pessoas com deficiência, e a falta de rotinas estruturadas são barreiras comuns no mercado de trabalho.O psicólogo Vinícius Neiva concorda com Emiliana. Pesquisador sobre a regulação emocional de autistas no mundo do trabalho, o profissional explica que pessoas com autismo costumam ter uma necessidade maior de rotina, devido à rigidez cognitiva característica do transtorno.No entanto, o ambiente de trabalho nem sempre oferece previsibilidade. “Muita coisa surge de última hora, e isso pode desorganizar o autista. Mas, se houver antecipação e planejamento, ele consegue se adaptar”, diz Vinícius.Com 32 anos, o psicólogo Alexandre Rosa só recebeu o diagnóstico de TEA em 2020. Ele assistia a séries com personagens autistas, se identificou com as características apresentadas na televisão e buscou uma consulta com um psiquiatra.A conclusão clínica o aproximou de uma procura por uma inserção específica no mercado de trabalho. Foi, então, que conheceu o Projeto Fama. A partir da iniciativa, Alexandre conseguiu uma vaga como auxiliar de biblioteca no Instituto de Ensino da Saúde e Gestão (Iesg), unidade da Liga Álvaro Bahia Contra a Mortalidade Infantil, entidade mantenedora do Hospital Martagão Gesteira. “É o primeiro emprego da minha vida”, comenta Alexandre, que também faz um curso de fotografia.O psicólogo conta que a chefe dele pesquisou sobre o TEA para ajustar a interação e melhorar a comunicação. “Eu sempre agradeço por estar nesta equipe porque são pessoas que realmente me entendem”, conta.A mãe de Alexandre, a funcionária pública aposentada Olga Dantas, diz que há uma carência de assistência para adolescentes e adultos autistas na Bahia. “Sinto que a sociedade não está preparada para abraçar este grupo”, desabafa.Iniciativa baiana virou exemplo nacional de inclusãoA ausência de acolhimento e oportunidades para adultos com TEA, sentida por tantas famílias, foi justamente o ponto de partida para uma iniciativa inédita. A Defensoria Pública do estado criou o Projeto Estágio Especial, em 2018, voltado para jovens autistas.A iniciativa é uma parceria com o Projeto Fama e que nasceu de uma conexão pessoal: uma servidora da instituição, mãe de uma criança autista, conheceu o trabalho conduzido por Patrícia e viu ali uma oportunidade de transformação.O projeto foi apresentado à gestão da Defensoria, e o diálogo se aprofundou entre defensores das áreas da infância, coordenações estratégicas e a equipe do Fama.A iniciativa deu tão certo que, em dezembro de 2019, a Defensoria recebeu uma menção honrosa no Prêmio Innovare, destacando o Estágio Especial como prática inovadora de inclusão profissional para pessoas com autismo.À frente da Escola Superior da Defensoria Pública à época, uma das idealizadoras do projeto, Firmiane Venâncio conta que o desafio inicial foi promover uma mudança de cultura dentro do órgão. “Tínhamos uma visão muito limitada e cheia de preconceitos sobre o autismo”, admite.A instituição passou por um processo interno de formação, envolvendo defensores e servidores em rodas de conversa e capacitações, para entender o espectro autista, suas particularidades, comorbidades e potenciais. O impacto foi imediato e profundo, segundo Firmiane. Jovens que mal se comunicavam passaram a interagir em equipe e realizar tarefas com autonomia.Mais do que acolher, o projeto fez com que a instituição também aprendesse. “Não se trata de um gesto de benevolência”, esclarece a ex-chefe da Defensoria. “É uma troca rica, que transforma os estagiários, suas famílias e as organizações que se abrem ao novo”.O psicólogo Vinícius Neiva vê o futuro com otimismo para a pauta. Ele ratifica que políticas públicas ainda precisam ser criadas para atender a essas demandas de acolhimento das pessoas com TEA, mas percebe avanços.

A conversa está sendo feita, noto que alguns locais estão sendo adaptados para atender às questões sensoriais. É um processo que pode avançar ainda mais e é por isso que a participação da sociedade é fundamental

Vinícius Neiva – psicólogo

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