Famílias baianas recusam doação de órgãos e médico alerta para colapso na fila

Na Bahia, cerca de 60% das famílias se recusam a autorizar a doação de órgãos de parentes mortos. O índice é um dos mais altos do país, acima da média nacional de 45%, de acordo com a Central de Transplantes da Bahia. O número alarmante, segundo o coordenador do Sistema Estadual de Transplantes, o médico Eraldo Moura, aponta o desconhecimento como principal obstáculo. “Muitas famílias não sabem se o parente queria doar”, explica. Mais de quatro mil pessoas aguardam na fila por um transplante no estado. “Quando a sociedade doa, ela também é beneficiada. Se não houver doação, toda a sociedade perde”, destaca o médico. Nesta entrevista, Eraldo fala ainda sobre o investimento na interiorização do programa e na capacitação de profissionais de saúde.Como o senhor avalia a estrutura e a atuação da Coordenação do Sistema Estadual de Transplantes da Bahia no enfrentamento da crescente demanda por transplantes?A Bahia é um dos estados que mais têm investido no processo de doação e realização de transplantes nos últimos anos. Contamos com um modelo de gestão em parceria com a Secretaria da Saúde do Estado, cujo principal objetivo é fomentar essa atividade não apenas na capital, mas também no interior. Essa iniciativa envolve desde a identificação dos pacientes que necessitam do procedimento – para que sejam encaminhados a um serviço especializado e credenciado – até a captação de potenciais doadores, ou seja, pessoas que faleceram e podem doar órgãos e tecidos. É importante lembrar que, em alguns casos, a doação pode ser feita por pessoas vivas, como nos casos de rim, fígado e medula óssea. Já os casos com doadores falecidos ocorrem após o diagnóstico de morte encefálica, desde que haja autorização da família. Nessas situações, é possível a doação de múltiplos órgãos e tecidos. Também há a possibilidade de doação das córneas por pessoas que faleceram por causas que não contraindiquem o ato, contribuindo assim com quem aguarda na fila por esse tipo específico de procedimento.

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Quais são os principais desafios operacionais na Bahia?Hoje, a gente enfrenta uma situação que envolve a necessidade de esclarecimento e formação dos profissionais de saúde. Muitas escolas que capacitam esses profissionais, como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, ainda não abordam adequadamente o tema da doação de órgãos e tecidos durante a graduação. Essa lacuna no ensino tem sido uma barreira importante, pois o desconhecimento sobre o processo de doação ainda é comum entre os profissionais da área, embora esse cenário venha melhorando nos últimos anos. Por isso, temos trabalhado em parceria com essas escolas com o objetivo de incluir o conteúdo na formação acadêmica. Diante dessa carência, temos promovido diversos cursos voltados à capacitação, tanto para o diagnóstico de morte encefálica quanto para os cuidados com potenciais doadores – pessoas falecidas que, se receberem o cuidado adequado, aumentam as chances de aproveitamento dos órgãos.Outro ponto fundamental é a conscientização da sociedade…

Sim. E ainda há um desconhecimento significativo da população sobre o processo de doação. A recusa das famílias em autorizar o transplante, embora tenha diminuído, ainda é alta. Já tivemos índices de até 80% de negativa; atualmente, essa taxa está entre 55% e 60%, o que ainda é superior à média nacional. No Brasil, a taxa gira em torno de 45%, e estados como o Paraná apresentam índices bem menores, entre 25% e 28%. Portanto, é essencial continuar investindo em ações de esclarecimento voltadas à população, para ampliar o conhecimento e reduzir as recusas familiares.

Qual é a raiz da resistência das famílias baianas ao procedimento?A doação de órgãos não está relacionada à classe social, condição econômica, religião ou nível cultural. O que realmente influencia é o nível de informação da sociedade sobre o tema. É importante entender que todas as pessoas que aguardam um procedimento desse tipo só podem ser beneficiadas se uma família autorizar a doação. Esse é um ponto fundamental para nós: levar essa informação adiante. A religiosidade, hoje, não representa um fator de impedimento. Nenhuma religião tem, de forma explícita, uma posição contrária à doação. Pelo contrário, a maioria das crenças apoia e reconhece o ato como um gesto de solidariedade.

Um dos principais motivos para a recusa familiar nos últimos anos é o desconhecimento sobre o desejo do parente falecido: se ele gostaria ou não de ser doador. Cerca de 16% das negativas ocorrem justamente por essa incerteza. Por isso, é fundamental que as pessoas manifestem em vida o desejo de doar os órgãos. Esse é um compromisso coletivo: quando a sociedade doa, ela também é beneficiada. Se não houver doação, toda a sociedade perde. Outro ponto frequentemente levantado pelas famílias é o desejo de manter o corpo íntegro. Vale esclarecer que a doação é realizada por meio de um procedimento cirúrgico que respeita a integridade do corpo, sem causar deformações aparentes. Há ainda casos em que a família afirma que o parente era contra a doação em vida, e, mesmo mais comuns, existem situações de falta de consenso: parte dos familiares quer autorizar, enquanto outra parte não concorda. Nesses casos, infelizmente, a doação não é efetivada, e o benefício social também se perde

|  Foto: Uendel Galter | Ag. A TARDE

Mesmo com o crescimento nas captações, a lista de espera subiu de 2.930 para 3.436 pessoas em apenas um ano. A que o senhor atribui esse aumento tão significativo?Esse é um dado positivo por um lado, pois mostra que a sociedade começa a ter mais acesso ao transplante. Quando observamos o crescimento da lista de espera, significa que a população que necessita desse tipo de tratamento conseguiu chegar até uma equipe especializada, credenciada pelo Ministério da Saúde, e ser incluída na fila para o procedimento. Atualmente, temos cerca de 4 mil pacientes aguardando. Esse número, apesar de preocupante, também reflete um avanço no acesso ao sistema, o que é um aspecto positivo. Por outro lado, ainda é necessário um maior envolvimento de todos os hospitais e das equipes que atuam no processo de doação para que esses pacientes possam ser beneficiados. Cada pessoa na fila vive uma espera extremamente angustiante, pois a única possibilidade de sair dessa condição é por meio do transplante. Cabe a nós, enquanto instituição, trabalhar para garantir que essa população não apenas tenha acesso à fila, mas também que aumentemos o número de doadores no estado. Trata-se de uma atividade que depende diretamente da participação da sociedade.Os hospitais da Bahia que realizam transplantes estão dando conta da demanda atual?Atualmente, temos atuado junto a alguns hospitais, com foco especialmente na implantação de serviços em unidades públicas e na interiorização do programa de transplantes. Entre os hospitais públicos, destacamos o Hospital Ana Nery, responsável pela maioria dos transplantes renais realizados no estado. Também temos o Hospital Geral Roberto Santos, que realiza esse tipo de procedimento e está em fase de implantação do programa de medula óssea. Nosso trabalho tem sido intenso no fortalecimento dessas ações dentro da rede pública de saúde. A interiorização do programa também tem avançado. O transplante renal já funciona em Feira de Santana, por exemplo. Em Vitória da Conquista, estamos reativando o serviço renal, que já está credenciado, e implantando o primeiro programa de transplante de fígado do interior do estado. Nossa meta é que, até o final deste ano, possamos reativar o programa renal em Itabuna e implantar o transplante de rins e de medula óssea em Juazeiro. Esse é um desafio importante: ampliar o acesso ao transplante não apenas em Salvador, mas também no interior da Bahia, garantindo à população um atendimento mais ágil e eficiente.O que a população pode fazer, de forma prática, para contribuir com o aumento das doações no estado?

Essa é a nossa proposta: que as famílias conversem sobre a possibilidade da doação. Que possamos dialogar com nossos entes queridos sobre o desejo de ajudar outras pessoas após a nossa morte. Para atender às pessoas que necessitam de transplantes, temos trabalhado intensamente em parceria com a Sociedade de Terapia Intensiva do Estado, com o objetivo de capacitar os médicos intensivistas a identificar pacientes internados em suas UTIs. Não apenas para realizar o diagnóstico de morte encefálica em casos de trauma ou de lesões neurológicas graves, mas também para reconhecer aqueles que têm doenças que podem ser tratadas por meio desse tipo de procedimento.

Isso inclui pacientes com cirrose, insuficiência cardíaca ou respiratória, entre outras condições que podem ser tratadas com transplante. O objetivo é que esses profissionais possam encaminhá-los para serem listados e, ao mesmo tempo, estejam aptos a identificar aqueles que evoluíram para morte encefálica. Assim, podemos oferecer às famílias a oportunidade de realizar a doação e, com isso, ajudar outras pessoas que aguardam esse tratamento tão necessário.

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