Clube do Samba
| Foto: Divulgação
Um caso emblemático é o Cravinho do Carlinhos, barraca de bebidas e tira-gostos fincada no imaginário local e que atravessa décadas. E, no campo da tradição e organização, a Sociedade Protetora dos Desvalidos permanece como símbolo do impulso negro para criação de renda própria, reunindo desde o século XIX ações educativas, comerciais e de solidariedade econômica.Nos últimos três anos, esse cenário vem se ampliando com mais apoio institucional. A Feira Pretxs, por exemplo, articula dezenas de microempreendedores em eventos periódicos que unem gastronomia, moda, cosméticos e artesanato. A loja coletiva Negros Solidários oferece vitrine fixa para marcas negras com rotatividade solidária. Realizado em 2024, o Festival Movaê reuniu oficinas, painéis e capacitações com foco em economia criativa afrocentrada. A ação contou com apoio de órgãos como Sepromi, Setur e Sebrae, sinalizando uma política pública voltada para o fortalecimento dessa economia.Apesar dos desafios como a informalidade, o acesso limitado ao crédito e a necessidade de políticas continuadas, os sinais de avanço são visíveis e animadores. Redes solidárias ganham força, os serviços vêm se qualificando e o orgulho pela identidade negra impulsiona a criação de novos empreendimentos. Com criatividade, persistência e alianças estratégicas, uma nova economia negra se consolida no coração do Centro Antigo — mais conectada com seu território e cada vez mais preparada para ocupar espaços de protagonismo e inovação.BidaCom trajetória marcada pela arte, educação e autogestão, o artista plástico e compositor baiano construiu sua carreira a partir do Centro Histórico de Salvador, onde desenvolveu técnica, identidade e visão empreendedora. Formado em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFBA, ele diz: “Voltei a estudar, consegui entrar na Universidade Federal… Sou bacharel em artes visuais”. No Pelourinho, aprendeu com mestres como João Abelha e deu os primeiros passos para abrir seu próprio ateliê, galeria e estúdio. A partir dali, sua arte visual e musical ganhou o mundo: são mais de 80 exposições em 14 países, incluindo um painel permanente no sul da Alemanha e passagens pelo Parlamento Europeu. “O Pelourinho me levou para o mundo”, resume. Ele também compôs para blocos como Ilê Aiyê, Malê Debalê, Muzenza e Cortejo Afro. Sua história de vida se confunde com a história viva do território — que foi escola, vitrine e plataforma internacional para sua obra.Herlon Miguel – Negrito LabCom trajetória forjada entre o ativismo negro, a gastronomia e a comunicação, Miguel Herlon é fundador da Negrito Lab e idealizador de um restaurante que uniu comida e cultura no coração do Pelourinho. Nascido no bairro da Liberdade, cresceu frequentando o Centro Histórico como espaço de lazer acessível e, mais tarde, realizou o sonho de empreender ali. “O Pelô sempre foi o lugar da busca pelo entretenimento gratuito ou barato pra vocês jovens com qualquer condição de acessar a cultura.” Formado em Administração e atualmente mestrando em Educação Antirracista, defende que políticas públicas articuladas entre cultura, turismo e gastronomia são essenciais. “A gente precisava pensar uma política pública onde turismo, cultura e gastronomia funcionassem sincronizados.” Sua atuação atual mira o fortalecimento do afroempreendedorismo e da comunicação negra, com propostas como a criação de selos de qualidade para restaurantes e circuitos culturais integrados ao calendário turístico de Salvador.Paulo Rogério – Vale do DendêAtuando no campo do empreendedorismo criativo e da valorização da cultura negra, Paulo Rogério Nunes é um dos nomes à frente do Hub Vale do Dendê, instalado em um casarão histórico no Pelourinho desde 2023. Cofundador do Instituto Mídia Étnica, tem uma longa relação com o Centro Histórico. “Desde criança eu frequento o centro histórico com meus pais. Minha tia trabalhava lá, e depois, já adulto, tive meu primeiro escritório no Pelourinho.” A partir dessa vivência afetiva e profissional, passou a pensar o centro como território estratégico para o futuro das cidades brasileiras — e não apenas como espaço de memória. Ele propõe o reconhecimento do Pelourinho como distrito criativo nacional, com incentivos à habitação, retrofit e atração de empreendedores. “Poucos lugares no Brasil reúnem arte, música, história, museus e infraestrutura como o Pelourinho. É o coração do Brasil.” Além de fomentar eventos, também empreende com hospedagem cultural pelo projeto Casa Schant, que recebe viajantes interessados na vivência afro-brasileira. “Neste momento, estou recebendo um hóspede do Quênia, um grande influenciador digital.” Para ele, revitalizar o Centro passa por fazer com que mais pessoas vivam, produzam e se conectem com o território de forma contínua e afetiva.
Hub Vale do Dendê
| Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE
Jorge do Bazar MusicalMorador e figura histórica do Pelourinho, Jorge nasceu em São Félix (BA), mas frequentava o Centro Histórico desde a infância, nos anos 60, hospedado na casa de um tio. Nos anos 70, mergulhou na cena musical local e conviveu com nomes como Batatinha, Nelson Rufino e Gentil. Em 1974, fundou o Bazar do Vinil, ponto de resistência cultural que atravessou todas as transformações tecnológicas, das fitas cassete ao MP3, mantendo vivo o som analógico: “Nada ia substituir o som do vinil”, afirma. Apaixonado pelo que faz, diz: “Só é bom e vai fluir quando você ama o que você faz.” E conclui: “Esse Pelourinho me deu muita coisa na vida, e ainda quero viver mais e ver esse Pelourinho bem mais aceso do que está agora.”KatukaCom 17 anos de história no coração do Centro Histórico, a Katuka Africanidades e o Mercado Negro Katuka são mais que lojas: são pontos de encontro com a estética e a memória negra de Salvador. Instaladas na Praça da Sé, em frente ao antigo cemitério de escravizados, tornaram-se símbolo de resistência e celebração das tradições afro-brasileiras. “Quando a gente pensou a Katuka, pensou como um espaço possível de encontro com a nossa estética, com as estéticas negras”, diz a idealizadora. As lojas mantêm forte conexão com o calendário cultural — do caruru de Santa Bárbara à festa do 2 de Julho, data que também marca o aniversário da loja. “Nós somos parte dessa realidade e vivenciamos essa realidade de uma forma bastante intensa”, resume.Turismo Étnico e Políticas Públicas: Salvador como capital da diáspora africanaSalvador tem buscado nos últimos anos uma síntese entre história, identidade e desenvolvimento econômico. O turismo étnico, que valoriza a herança africana presente na cidade, tem sido não apenas uma estratégia de posicionamento cultural, mas também um caminho concreto para geração de renda e fortalecimento do afroempreendedorismo. No coração desse movimento está o Pelourinho, espaço onde a cultura negra pulsa de forma mais visível e onde ações governamentais começam a se consolidar como políticas públicas.O programa Salvador Capital Afro, lançado oficialmente em 2022, é um dos pilares dessa nova agenda. Seu objetivo vai além do turismo convencional: pretende organizar e visibilizar a economia criativa de matriz africana. Isso envolve mapeamento de negócios negros, qualificação profissional, roteiros temáticos, feiras e capacitações. Dentro desse guarda-chuva surgem iniciativas como a plataforma Afro Biz, o programa Afro Estima e eventos como o Festival Movaê, realizado em 2024 com intensa participação de empreendedores e apoio de instituições como Sebrae, IFBA, Setur e Sepromi.A Feira Pretxs, realizada em 2023, é outro exemplo emblemático. Organizada por entidades do movimento negro como a Unegro, em parceria com o governo estadual, reuniu dezenas de empreendedores nas áreas de moda, cosméticos, gastronomia e artesanato. Com oficinas e atendimentos de orientação profissional, o evento demonstrou o potencial da cultura negra como vetor de desenvolvimento.Na infraestrutura, secretarias de Cultura e Turismo vêm apostando em roteiros guiados por profissionais negros, requalificação de espaços coletivos e fortalecimento de locais de memória ligados à ancestralidade africana. As ações incluem cursos de gestão, finanças e ferramentas digitais para pequenos negócios.Essas políticas buscam enfrentar gargalos como a informalidade. Ao integrar cultura afro e turismo como vetor de mercado, procuram também gerar pertencimento e autoestima. A aposta é que, ao consumir produtos e serviços vinculados à ancestralidade, o turista fortaleça um ciclo de renda que permaneça na comunidade.Contudo, desafios persistem. A continuidade das políticas, criação de linhas de crédito específicas e combate à gentrificação são pontos levantados por entidades como a Sociedade Protetora dos Desvalidos e o Fórum Permanente de Entidades Negras da Bahia. Para esses atores, a sustentabilidade do turismo étnico exige escuta contínua das comunidades e estruturas permanentes de fomento.Ainda assim, os resultados apontam para uma transformação estrutural. A cidade se projeta como destino do turismo de identidade, e Salvador se consolida como capital da diáspora africana nas Américas.