O filme de diretor baiano que foi banido durante a ditadura militar

O Dia do Cinema Brasileiro é celebrado nesta quinta-feira, 19, data que marca o início das primeiras filmagens feitas no país, em 1898, com imagens da Baía de Guanabara captadas por Afonso Segreto. Mais de seis décadas depois, em um Brasil imerso em tensões políticas, o cineasta baiano Glauber Rocha lançou um dos filmes mais provocativos e emblemáticos da história: ‘Terra em Transe’ (1967), que acabou sendo banido durante a ditadura militar.A obra, reconhecida como um dos maiores marcos do Cinema Novo, foi a primeira produção de ficção brasileira a debater intensamente o papel do intelectual militante em meio a um contexto de crise política e cultural.

Leia Também:

Esses são os melhores filmes de ação para curtir com toda a família

A série de terror com bebê reborn que você não pode deixar de assistir

Os 17 melhores filmes para quem ama viagem no tempo

Em entrevista exclusiva ao Portal A TARDE, o crítico de cinema e cineclubista do Cine Glauber Rocha, Adolfo Gomes, definiu Terra em Transe como “veia poética e revolucionária aberta em plena América Latina sob o jugo do autoritarismo e da violência institucional”. 

Além de contribuir para a inserção do cinema no movimento tropicalista, Glauber, com esse filme, abriu o caminho para o discurso alegórico e realista que logo seria praticamente o único caminho possível para as artes brasileiras em tempos de ditadura.

Adolfo Gomes – crítico de cinema

Desafiou a censura e o poder militarDe acordo com informações tiradas dos arquivos de censura no Brasil, Terra em Transe não passou despercebido pelos órgãos de censura do regime militar. Em abril de 1967, o censor Sílvio Domingos Roncador emitiu parecer que apontava o caráter ideológico da obra.“O filme procura transmitir uma mensagem indiscutivelmente de cunho esquerdista e, neste amplo campo de ideias afins, procura timidamente uma visão marxista, inclusive lamentando que o povo seja miserável e analfabeto […] O autor, contudo, perde-se muitas vezes, interrompendo a sequência geral e fluente da película, primariamente confundindo distorções formais da administração pública com ideais filosóficos”, diz o parecer.O longa chegou a ser retirado de cartaz e proibido por semanas. A decisão gerou uma onda de protestos de intelectuais, artistas e movimentos culturais em todo o país. A pressão foi tamanha que, em 1º de maio de 1967, o então diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, coronel Florimar Campello, decidiu liberar o filme para exibição, com classificação indicativa para maiores de 18 anos.No parecer oficial que liberou a obra, Campello fez uma leitura alinhada ao discurso violento e militar da época, afirmando que o filme retrata a desordem reinante antes do golpe civil-militar que instituiu uma ditadura a partir de 1964, no Brasil. Ele considerou “ser sutil a mensagem ideológica contida na película examinada, somente percebida por um público esclarecido”.E que o filme “ressalta o drama de consciência de um idealista, envolvido pela atuação demagógica de falsos líderes políticos” e “que esse era o estado de espírito reinante antes de 31 de março de 1964, repudiado pelo povo brasileiro naquela memorável campanha que o levou às ruas de nossas cidades, em protesto cívico, e nos conduziu ao movimento redentor daquela data”.Mesmo enfrentando a repressão política, o reconhecimento internacional veio de forma grandiosa. No Festival de Cannes de 1967, realizado na França, Glauber Rocha foi agraciado com os prêmios Luis Buñuel e Fipresci. A aclamação em um dos maiores festivais da sétima arte do mundo foi um marco importante para o cinema brasileiro e reforçou a relevância estética e política de Terra em Transe.Crítica profunda ao populismo, à política e à estética tradicionalProduzido em um período de intensas revisões sobre os caminhos políticos e sociais da América Latina, o filme de Glauber Rocha se apresenta como uma resposta direta aos equívocos que marcaram a trajetória histórica do Brasil. O que Terra em Transe propõe, como já ressaltado por diversos cientistas sociais, é que não se deve confundir populismo com revolução.Nos anos de governo de João Goulart, por exemplo, a tentativa de aproximar essas duas realidades acabou resultando em uma política de conciliação que, em vez de promover uma ruptura estrutural, se limitava a pequenas reformas dentro da lógica de continuidade. O populismo, como representado no filme, acabava por apagar as distinções de classe, difundindo uma noção vaga e romantizada de “povo”.

No Festival de Cannes de 1967, realizado na França, Glauber Rocha venceu dois prêmios pelo longa Terra Em Transe

|  Foto: Divulgação

Enquanto uma revolução buscaria uma quebra efetiva com o sistema político estabelecido na época, o populismo acabava por adiar essa transformação, preservando as estruturas existentes, sem promover mudanças reais.Terra em Transe representa o momento em que o Brasil e outros países latino-americanos começaram a fazer uma revisão crítica das chamadas “revoluções populares”. A obra de Glauber Rocha constrói uma tripla crítica: política (ao atacar o populismo e o reformismo), intelectual (ao questionar o lugar e a função do intelectual na sociedade) e estética (ao romper com o modelo da arte tradicional).Essa crítica não se restringe ao conteúdo, presente nos diálogos e discursos, mas se amplia de maneira essencial para a estrutura da forma do longa: nos enquadramentos, na iluminação dramática, na montagem não-linear e na edição sonora marcada por sobreposições e cortes bruscos. Glauber rompe não só com práticas políticas, mas também com os modelos estéticos que dominavam a produção cultural brasileira até então.“Não influenciaram ninguém. E isso é bom e ruim, ao mesmo tempo”, afirmou Adolfo Gomes ao ser questionado sobre o impacto do filme nas gerações seguintes. “O lado positivo é a liberdade de imaginar um cinema novo, de novo. De negativo, destaco esse ressentimento por não se ter as mesmas condições utópicas e, sobretudo, a poética de Glauber. No final das contas, isso se traduz numa certa negação da filmografia glauberiana. Isso não é necessário para se afirmar”, pontuou. Paradoxo latino-americano: a estética do inconformismoParadoxal como o próprio Brasil, Terra em Transe reflete de maneira clara as contradições e misérias sociais de um país do terceiro mundo, com elites predatórias e distantes da realidade popular. A obra, como muitos dos filmes de Glauber Rocha, força o espectador a pensar, sacode consciências adormecidas e provoca um incômodo intelectual que permanece décadas após seu lançamento.Lançado em 1967, um dos anos mais conturbados da história política brasileira, o filme se tornou um marco justamente por sua visão corrosiva sobre a política oportunista que atravessa as instituições brasileiras. “O populismo e o idealismo intelectual são características ainda presentes na cena política atual”, reforçou Adolfo Gomes. 

É sempre estimulante rever ou descobrir os filmes de Glauber. De certa forma, eles demandam a fruição coletiva, o bate-papo após a projeção e outras vantagens afetivas que o Cineclube, como espaço de cumplicidade, ajuda a compartilhar.

Adolfo Gomes – Crítico de cinema e cineclubista

Glauber Rocha recorre a uma estética de choque, de ruptura, para contar a história de Paulo Martins, o jornalista e poeta que protagoniza a trama. O personagem conduz o espectador por um Brasil alegórico, onde os embates políticos e ideológicos expõem o conservadorismo de líderes como Diaz e o populismo falho de figuras como Vieira. Martins oscila entre o apoio e a traição, entre a fé na mudança social e o desespero diante da hipocrisia política.

Glauber utiliza música de Villa-Lobos, jazz, óperas e sons de metralhadoras para compor um clima de constante instabilidade

|  Foto: Divulgação

Para Adolfo Gomes, essa força permanece viva:

Glauber é o nosso mártir, uma espécie de Tiradentes. Entregou sua vida à cena político-cultural brasileira. No exílio, alargou suas fronteiras revolucionárias.

Adolfo Gomes – crítico de cinema

Para Adolfo, Glauber “não diferenciava, no sentido humanista, o Brasil, de Cuba ou da África; também não se exímia de sacrificar o próprio corpo pelo cinema. É difícil sobreviver a tudo isso. Seu pensamento, no entanto, continua a ser um desafio permanente, mas vivo.”Na construção da narrativa, Glauber utiliza música de Villa-Lobos, jazz, óperas e sons de metralhadoras para compor um clima de constante instabilidade. As cenas de comícios, marchas e repressão são filmadas de maneira a intensificar o senso de urgência e de agonia, como se o espectador também estivesse em um estado de transe.“A perene modernidade do filme, assim como da obra de Glauber, é que Terra em Transe tem algo de premonitório, que se renova a cada geração”, ressaltou Adolfo. 

A obra glauberiana nunca acaba, o título já sugere essa instabilidade ancestral, como se o futuro nunca chegasse, mas nem por isso deixasse de estar sempre à espreita, assustadoramente perto, porém nunca efetivado. Desde aquela época, esperamos por dias melhores, e eles vêm e vão, sem que nossas vidas se transformem de fato.

Adolfo Gomes – Crítico de cinema e cineclubista

Em 2015, quase meio século depois de sua estreia, Terra em Transe foi incluído na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).*Sob supervisão de Bianca Carneiro

Adicionar aos favoritos o Link permanente.