São João virou Festa da Colheita: a polêmica decisão de escolas na Bahia

Nos últimos dias, colégios de Salvador e Região Metropolitana, na Bahia, deram fim ao primeiro semetre letivo e iniciaram um recesso escolar aos alunos. Costumeiramente, uma festa junina, mais especificamente o São João, marcava o período, no entanto, nos últimos anos, diversas instituições de ensino têm suprimido a festa que leva o nome do santo católico e dando lugar a chamada ‘Festa da Colheita’.Na Biblía, a Festa da Colheita, também conhecida como Shavuot ou Pentecostes, era uma celebração agrícola que marcava o fim da colheita do trigo e da cevada. Este era um momento e ação de graças a Deus pela abundância da colheita. A festa também tinha um significado espiritual, pois comemorava a entrega da Lei (Torá) a Moisés no Monte Sinai.No entanto, apesar da nomenclatura Festa da Colheita, os festejos que são visualizados em colégios seguem signos próprios da comemoração do São João no Nordeste, como vestimentas, comidas e brincadeiras típicas. Ou seja, a problemática parece estar em comemorar utilizando o nome de um santo católico.Rafaela Fonseca, mãe de uma menino de 8 anos que estuda em colégio particular de Salvador, contou ao A TARDE ter reagido com surpresa com a mudança instituída na escola durante os festejos juninos nesta semana. Ela opinou de maneira contrária a comemoração da Festa da Colheita em substituição ao São João.”Foi o primeiro ano, uma surpresa, e acho que foge da tradição de São João, já começa a mudar, ir por outro lado. Também tem a questão da religião, porque no colégio do meu filho, o pessoal (diretoria) é cristão, então eu vejo que está voltado para isso e vai perdendo a tradição. Tem professoras que relatam que é questão de religião e eu não concordo”, falou à reportagem.Ela contou ainda que outras mães também se surpreenderam com o painel da festa e ainda acredita que a decisão partiu da diretoria da instituição de ensino, que é seguidora de uma religião neopentecostal.”Quando eu cheguei pra deixar meu filho, uma mãe tava tirando uma foto, e aí quando ela tirou a foto que ela leu o painel, ela fez ‘oxente a festa da colheita?’. Depois que eu fui na rede social olhar postagem, eu vi que estava lá, Festa da Colheita. Não teve informação nenhuma que iria mudar e nem teve, eu acho, pedido dos pais. Eu acho que vem mais da diretora do colégio, que é dessa religião”, disse.

Tem professoras que relatam que é questão de religião e eu não concordo

Segundo Rafaela, a mudança aconteceu somente neste ano e não houve mudança por parte dos pais e responsáveis.Para o antrópologo e mestre em antropologia, Daniel Soglia, essa mudança de nomenclatura tem a ver com essa expansão da religiosidade evangélica no Brasil. Conforme o último censo do IBGE, 26,9% da população brasileira se autodeclara como seguidores do evangelicalismo.”Os grupos religiosos, especialmente os evangélicos, eles se posicionam muitas vezes no espaço público com um tipo de modus operandi que nega o outro. Esse tipo de lógica muitas vezes leva a um tipo de apagamento cultural. Esse processo de expansão da fé evangélica tem a ver também com o processo de aproximação a um tipo de conservadorismo que vai se fechando em si e vai deixando em larga medida de perceber um conjunto de modos de viver como legítimos, concebendo a si mesmo muitas vezes como o único modo legítimo de existir”, disse Soglia ao A TARDE.

Esse processo de expansão da fé evangélica tem a ver também com o processo de aproximação a um tipo de conservadorismo

Daniel Soglia – antrópologo

A pesquisadora sobre educação, Júlia Hist, que tem como foco conflitos culturais no ambiente escolar, aponta os riscos da polarização política que virou rotina no Brasil nos últimos anos ao comentar a mudança para Festa da Colheita.”Esse debate tem ganhado força nos últimos anos, e está ligado à polarização, mas também ao avanço de pautas identitárias. Por um lado, há uma preocupação legítima com o respeito às diferentes crenças. Por outro, há um tensionamento político que muitas vezes transforma temas culturais em disputas ideológicas. O desafio é sair dessa lógica de confronto e entender a cultura como espaço de diálogo e pertencimento, uma vez que é importante lembrar que neste contexto a cultura não é campo de guerra”, falou Hist.

A cultura não é campo de guerra

Júlia Hist – pesquisadora sobre educação

Por outro lado, Maria Clara, mãe da Luna, de 5 anos, afirmou não ver problema na Festa da Colheita, também realizada na escola em que sua filha estuda, em Lauro de Freitas. “O que eu entendo, pelo menos, é um evento que celebra o final de um período de aprendizado, onde os alunos colhem os frutos do que aprendem ao longo do ano letivo. É simbolizado por apresentações, atividades e a partilha de alimentos”, disse.”Eu respeito muito o fato da escola substituir a festa do São João pelo nome para a festa da colheita. Eeu sou do interior e minha filha hoje tem 5 anos, então ela sabe o que é o São João e ela também entende o que é uma Festa da Colheita”, completou Maria Clara, antes de admitir que “se a sua filha não fosse uma criança que tivesse essa referência, talvez sim, seria um problema”.Apagamento culturalA hashtag Festa da Colheita (#festadacolheita) no Instagram leva a postagens de diversos colégios de Salvador e Região Metropolitana – e de todo o Brasil – que aderem a comemoração cristã em substituição ao feriado de origem católica. Uma igreja da capital baiana explicou a comemoração nas redes sociais, afirmando que no Brasil, ‘o ritmo característico é o forró e as roupas são cheias de estampas’.Para o antrópologo Daniel Soglia, a medida executada por esses colégios pode ser considerado como um apagamento cultural, já que as festas juninas, apesar da origem católica, fazem parte do processo de produção de identidade nacional, como signos hoje de produção de coletividade, de produção de identidade, de autorrepresentação.”As festas juninas para o Nordeste em especial são momentos de auto percepção de si, de sua história, de seus modos de ser, seus modos de viver, é um processo de significação cultural de si mesmo e de uma coletividade. . A partir do momento que a escola retira o nome São João e produz uma festa da colheita a partir de signos e de uma linguagem e de um arquétipo de valores neopentecostais, inexoravelmente você está produzindo um tipo de esvaziamento histórico e identitário daquele signo junino”, afirmou.O antrópologo ainda lembra que as festas católicas chegaram ao Brasil através dos jesuítas, mas foram ressignificadas por matrizes indígenas e africanas. “Essas festas populares, por mais que elas tenham emergido na realidade nacional através da igreja católica, ela ganha outros desígnios na camada da identidade nacional e da identidade nordestina”.

Mesmo com origens católicas, as festas juninas foram ressignificadas por matrizes indígenas e africanas

Além do apagamento cultural, fica também a preocupação na construção da identidade cultural das crianças. Vale lembrar que as as festas juninas são consideradas patrimônio cultural do Brasil desde 2024, através da Lei Nº 14.900/2024. “Quando substituímos nomes, símbolos e práticas, podemos enfraquecer essa conexão dos alunos com sua própria história e identidade. Ao invés de apagar, é possível ressignificar, explicando os sentidos, as origens e as transformações dessas tradições. A chave é o diálogo e a educação patrimonial. As escolas podem criar espaços de conversa com as famílias, explicar as origens históricas e culturais dessas festas e oferecer alternativas de participação para quem, por razões pessoais ou religiosas, não queira se envolver em determinadas atividades”, opina a pesquisadora Júlia Hist.Ao A TARDE, a professora de educação infantil, Sherlene Apolinário, que atua em escola na cidade de Irará, na Bahia, explicou como acontece a Festa da Colheita na instituição de ensino, sem deixar também as raízes do São João.”Nossa comemoração aqui é sobre a festa de São João, que abrange a cultura nordestina. Todo ano a gente escolhe sempre um tema para estar mais focado. Pode ser a culinária, a vestimenta, músicas. A escola sempre busca não perder essa cultura, das danças e a quadrilha. Já a Festa da Colheita é uma festa direcionada mais a parte do agradecimento, pela fartura, é voltada mais para essa parte, e o do São João não”, iniciou. Conforme a professora, o ensino sobre os santos foi descontinuado como maneira de respeitar as diversas religiões dos pais e alunos. “Eu acho muito importante essa questão ainda de trabalhar o São João, porque é uma cultura do Nordeste, e como educadora na área pedagógica a gente pode abranger vários outros temas nesse segmento”, explicou.

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