Salvador pode ganhar memorial de Raul Seixas na Cidade Baixa

A Cidade Baixa pode ganhar em breve um memorial para um de seus mais ilustres moradores, o roqueiro Raul Seixas, que completaria 80 anos no próximo sábado, 28. A Prefeitura de Salvador está dialogando com familiares do músico, morto aos 44 anos, em 1989, para trazer do Rio de Janeiro parte do acervo do músico, que até hoje é largamente reverenciado pelos fãs, com passeatas nas ruas e visitas coletivas ao seu túmulo em Salvador no Dia de Finados, além dos constantes gritos de “toca Raul” em bares com música ao vivo ou shows de artistas renomados.Há dois meses, o pedido “Toca Raul!” foi feito durante uma apresentação de Lobão em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, provocando a ira do artista, que foi às redes sociais dizer que o cantor baiano tinha morrido na miséria. Mas a legião de “raulseixistas” segue firme, reivindicando o legado do seu ídolo, como moscas pousando nas sopas de quem não entende a dimensão de Raul.E a capital baiana pode se tornar definitivamente o epicentro desse culto, caso se concretizem as negociações, que ainda estão em fase embrionária. “Nada mais justo do que trazer para Salvador o acervo de Raul Seixas, que é um ícone do rock e da música brasileira”, afirma o presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro, que, entretanto, demonstra cautela, ressaltando que ainda não há um fato concreto. As negociações por parte do município são conduzidas pela vice-prefeita, Ana Paula Matos.

Fãs reverenciam Raul no Dia dos Finados

|  Foto: Raphael Muller | Ag. A TARDE

Raul Seixas e sua conexão com as festas juninas

|  Foto: Cedoc A TARDE

Poucos artistas brasileiros ganharam a dimensão social do “Maluco Beleza”, o cara que enxergou semelhanças entre os repertórios de Elvis Presley e Luiz Gonzaga e conseguiu forjar uma carreira que, mesmo sendo curta, penetrou fundo na alma brasileira. Alguém poderia até arriscar que Raul criou o “forróck”.A ligação entre o músico e as festas juninas vai além da coincidência de o aniversário de seu nascimento ser na véspera do dia de São Pedro. Um dos seus sucessos, o forró Capim Guiné foi composto em parceria com o piritibano Wilson Aragão, morto no último dia 24. Aragão, aliás, tinha show marcado para a sexta-feira passada em Piritiba, sua cidade natal, citada em Capim Guiné. Em seu lugar, aconteceu um tributo a Aragão, com a participação de vários músicos.Um deles foi Marcos Clement, integrante da banda raulzista Arapuca, que não conheceu Raul pessoalmente, mas se tornou amigo de seu parceiro piritibano, com quem criaria o espetáculo teatral Contando Raul Seixas.Marcos descobriu Raul aos oito anos de idade, quando ouviu Eu nasci há dez mil anos atrás e na sua inocência ficou curioso com a história de alguém que tinha tanto tempo de vida e testemunhou tantos fatos históricos. “Isso foi em 1989, quando Raul morreu e as suas músicas voltaram a tocar mais”, conta o músico.Na sequência, o pequeno Marcos ouviu outra obra instigante de Raul, O Dia em que a terra parou. “Era como se todo mundo tivesse deixado de fazer as suas tarefas”, diz o artista, ao explicar suas sensações ao ouvir a música na infância. O músico lembra, aliás, que durante a pandemia de Covid-19 houve quem creditasse o isolamento social a uma profecia de Raul.

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O impacto das letras de Raul Seixas na formação de novos fãs de todas as idades

|  Foto: Cedoc A TARDE

Na adolescência, encantado com a música, Marcos começou a comprar revistas com cifras musicais da obra de Maluco Beleza e aprendeu a tocar violão. “Aliás, eu tenho uma coleção de itens relacionados à vida de Raul. Eu tenho fitas cassete com shows de Elvis Presley que pertenceram a ele”, conta o músico, que durante a adolescência chegou a ganhar o apelido de Raulzito, tamanha a sua identificação com o ídolo. O que não era uma característica exclusiva sua. Muitos homens adotaram a estética de cabelos longos e cavanhaque espesso, evocando a aparência do cantor.Anos depois, Clement passou a integrar uma banda raulzista chamada Aluga-se, por meio da qual conheceu outro grande amigo de Raul, Valdir Serrão, o Big Ben, com quem fez o primeiro tributo ao roqueiro no Carnaval de Salvador em 2002, experiência repetida em 2003.Marcos se dedicou a homenagear o artista rebelde que durante a ditadura militar pregou a sociedade alternativa, junto com o parceiro Paulo Coelho. Ambos acabaram investigados pelos militares. Raul foi liberado e Coelho, ainda pouco conhecido, acabou sendo torturado, o que gerou a especulação de que o músico teria traído o parceiro. Essa controvérsia consta no livro Não Diga que a canção está perdida, de Jotabê Medeiros, mas a acusação foi desmentida por documentos oficiais que vieram a público posteriormente.Ao longo de sua curta carreira, Raul filosofou, pregou o desapego amoroso, satirizou o poder e 36 anos após a sua morte mantém um leque de admiradores que vai da esquerda à extrema-direita, de idosos a crianças.Em 1983, com o seu hit Carimbador maluco, o baiano se aproximou definitivamente do público infantil no programa Plunct, Plact, Zum, ao satirizar um burocrata que era a ameaça às aventuras intergalácticas dos pequenos protagonistas.Mas, vejam só, há histórias de pequeninos fãs que gostaram do Maluco Beleza a partir de seu repertório adulto. E Marcos Clement não foi a única criança a se interessar pelas canções instigantes do rei do rock brasileiro. O músico Paquito tinha 11 anos quando se encantou com Eu nasci há dez mil anos atrás. “Raul é um grande compositor da música popular brasileira. E o maior nome do rock no Brasil”, afirma Paquito, para quem o rock brasileiro é bom quando não é só rock.Paquito é autor do Jequietcong, um canal especializado em canções que há três anos publicou um post chamado Raul Seixas, o ícone do rock Brasil.O músico destaca o fato de que Raul conseguiu uma enorme popularidade sem se render a um modelo fácil. “O cantor mais popular do Brasil nas últimas cinco décadas é Roberto Carlos, um cantor romântico. Raul nunca fez média para ser popular, mas foi, com um obra muito questionadora”, pontua o músico, que lembra de calouros se apresentando em programas de auditório como o de Sílvio Santos e o de Big Ben cantando músicas do roqueiro.Como um episódio racista impulsionou a carreira de Raul

|  Foto: Cedoc A TARDE

A carreira de Raul teve impulso graças a um evento racista. Em 1967, Jerry Adriani se apresentaria no Clube Bahiano de Tênis, na Graça. O cantor foi informado de que sua banda não poderia se apresentar no clube por ter músicos negros. O produtor local do show ligou às pressas para Raul e a sua banda, Os Panteras, que acompanhou Jerry no show, ele gostou dos músicos e os levou para o Rio de Janeiro.O primeiro sucesso de Raul foi Ouro de tolo, lançada em 1973, canção na qual o artista expressa frustração com a vida confortável e sem grandes desafios de uma pessoa de classe média. “O interessante dessa música é que harmonicamente ela parece com Detalhes, de Roberto e Erasmo, só que a melodia é outra”, compara Paquito.A propósito, antes de estourar nacionalmente como cantor, Raul trabalhou como produtor da gravadora CBS, emprego arranjado por Jerry Adriani, até que conseguiu convencer os executivos da empresa a lançar o seu próprio disco.Em 1976, já famoso, Raul Seixas fez um show no Teatro Ipanema e teve na plateia a fotógrafa conterrânea Thereza Eugênia, responsável por alguns dos registros mais icônicos do músico. Thereza declara ter ficado impressionada com a sua performance no palco, sem camisa, e com a mistura de elementos em sua música.”Raul não era roqueiro, era ele mesmo, tinha um estilo próprio”, aposta a fotógrafa, que no dia 29 inaugura a exposição Encontros, no Centro Cultural Instituto Marcos Hacker de Melo, em Recife, com fotos de Raul Seixas e outros grandes nomes da MPB, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque e Ney Matogrosso.O legado musical e social de Raul Seixas

|  Foto: Cedoc A TARDE

Depois do estrondoso sucesso de O dia em que a terra parou, em 1977, Raul entrou em um período de decadência, com problemas de saúde e, apesar de emplacar sucessos como Metrô Linha 743 e Cowboy fora da lei, manteve-se praticamente à margem do estouro do rock nacional na década de 1980. “Ele não é muito lembrado pelos roqueiros daquele período, com exceção de Marcelo Nova”, destaca Paquito.Raul Seixas e Marcelo Nova se aproximaram em meados daquela década e fizeram duas turnês conjuntas, que culminariam no lançamento do disco A Panela do diabo, que saiu em 19 de agosto de 1989, dois dias antes da morte de Raul.Paquito aponta, entretanto, para diferenças entre os dois roqueiros. “Raul era uma referência, mas Marcelo Nova era um colonizado, no sentido de achar que o que é de fora é melhor. Isso não aparece na obra de Raul, que tem uma ligação com Luiz Gonzaga”, compara o músico e colunista.Uma singularidade de Raul, aliás, foi a utilização de elementos da cultura baiana em sua obra. Na canção Mosca na sopa, de 1973, os riffs de guitarra são precedidos e entremeados de tambores, berimbau e um coral feminino análogo a um ponto de candomblé.Raul cantou versos inspiradores como “Se hoje eu te odeio, amanhã lhe tenho amor” (Metamorfose ambulante), “Amor só dura em liberdade” (A maçã), “Porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo” (Medo da chuva) e “Faz o que tu queres, pois é tudo da lei” (Sociedade alternativa).Mas também compôs o Rock das Aranha, que pode ser vista como uma canção machista: “Subi no muro do quintal. E vi uma transa que não é normal. E ninguém vai acreditar. Eu vi duas mulher botando a aranha pra brigar”.O raulseixista Marcos Clement admite que a canção é machista, mas vê na letra, uma parceria de Raul com Cláudio Roberto, uma ferramenta para se falar de um assunto tabu. “Foi um momento necessário, porque ninguém falava daquilo”, afirma.Primeiro artista brasileiro a se assumir homossexual publicamente, o também baiano Edy Star, declarou a A TARDE em março deste ano, um mês antes de sua morte, que seu amigo Raul Seixas não era homofóbico.A morte de Raul em 1989 aumentou exponencialmente o culto a seu nome. Mesmo pessoas que não o conheceram ou eram crianças quando ele morreu se tornaram raulseiixistas de coração, como o músico Marculino Beleza, que tinha 12 anos quando ouviu um disco inteiro do roqueiro pela primeira vez e quis se aprofundar em seu universo.”Eu achava muito interessante a questão da liberdade nas letras. Porque ali, nos anos 1990, a gente vivia uma realidade muito aprisionada. E você tinha aquela necessidade de rebeldia, de mostrar ao mundo que você está certo”, afirma o músico.Marculino, nome artístico do advogado e professor Marcus Vinícius Cruz Melo da Silva, aprendeu com Raul que a música era uma ferramenta de mudança. O músico, que hoje homenageia o roqueiro com os shows da banda Marculino e Seus Belezas, começou a questionar a vida através das músicas de Raul, perguntando ao seu pai como era possível ser um maluco beleza ou ainda um cowboy fora da lei, já que nos filmes de Hollywood os cowboys eram os mocinhos.Em Cowboy fora da lei, aliás, Raul cria um personagem sem disposição para ser mártir ou modelo, ao dizer que não é besta pra tirar onda de herói. “Mas acabou acontecendo o contrário, ele virou um herói”, considera Paquito.

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