Bahia registra aumento de 142% nos atendimentos por vício em jogos de azar em 2024

O número de atendimentos para pessoas com vício em jogos de azar teve um aumento percentual de 142,86%, entre 2023 e 2024, na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do estado da Bahia. Informados pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), os dados evidenciam um cenário onde o transtorno caracterizado pelo impulso incontrolável em jogar, chamado de ludopatia, é intensificado pela popularização das apostas online, afirmam especialistas.Coletados no Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SUS), os números mostram que, em 2023, foram 7 atendimentos, contra 17 no ano seguinte. Até junho de 2025, já são 9 pessoas atendidas com o problema.A ludopatia é o quadro reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como transtorno mental caracterizado pela incapacidade de resistência à prática dos jogos de azar, mesmo quando causa problemas na vida pessoal, financeira, familiar e profissional. A condição afeta mais de dois milhões de brasileiros, de acordo com pesquisa do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).Mas, se antes o problema estava restrito aos frequentadores de bingos e cassinos, hoje torna-se cada vez mais comum com a acessibilidade aos aplicativos e sites nos celulares, tablets e computadores, diz a professora de psicologia e psicanalista que lida com pacientes com o vício, Juliana Santos, para justificar o crescimento.“Como hoje o jogo está na palma da mão, a possibilidade de desenvolver uma dependência com aquilo, a partir de uma interação extremamente acessível, fica muito maior, e isso cria um quadro patológico”, avalia.RankingUma pesquisa referente ao mês de setembro do ano passado do Instituto DataSenado, do Senado Federal, verificou a Bahia como o 4º estado com o maior número de pessoas que gastaram dinheiro com apostas esportivas por meio de aplicativos ou sites na internet. No total, foram cerca de 1,5 milhão de apostadores baianos em 30 dias, número que ficou abaixo somente de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.Em Salvador, um grupo de vítimas do transtorno se reúne para discutir o tema. O Jogadores Anônimos existe há 18 anos na cidade, e atua promovendo encontros presenciais todas as terças e quintas-feiras no Centro Comunitário da Igreja da Pituba.“Há um tempo, a nossa irmandade não era tão relevante assim, em comparação ao cenário de hoje. Essa mudança ocorreu devido às bets e os ‘tigrinhos’ da vida”, se refere um membro do grupo às modalidades populares de jogos online. Ele preferiu não ser identificado, então vamos chamá-lo de “João” (nome fictício).“Antes, nós tínhamos um número de frequentadores de 12 a 15 pessoas por reunião. De uns dois anos para cá, os encontros têm tido entre 30 e 35 pessoas, e todas as vezes pelo menos duas são novas. Todos os dias recebemos ligações de pessoas querendo participar”, conta.

Cada vez mais, pessoas mais jovens entram. Essa maior frequência com certeza tem sido por causa das apostas online, que estão acelerando o processo de adoecimento dos jogadores

João

Nas reuniões, que duram cerca de duas horas, os participantes compartilham histórias de superação e luta contra o vício, como forma de ajudar quem ainda o estão enfrentando.Além dos encontros presenciais, o grupo mantém contato diariamente em reuniões remotas e grupos de mensagem. “Cada um transmite o que está sentindo, o que está fazendo para ficar longe do jogo, se recaiu ou não. É um jeito de ajudar na recuperação”.João evidencia, com a sua própria história de vida, como as apostas online são um agravante. Hoje, longe dos jogos há dois anos e cinco meses, ele conta que começou com o vício na adolescência, com o pôquer. Após oito anos de luta contra a compulsão, ele conseguiu passar os primeiros dois anos sem jogar, mas a recaída veio com a chegada da modalidade virtual.“Eu jurei que nunca mais ia voltar às casas de jogos, mas aí vieram as bets e os jogos de pôquer online, que me fizeram retornar para o fundo do poço. Eu me vi na mesma prisão que estava há alguns anos, isso veio para mostrar o quanto essa doença pode ser destrutiva. O processo de vício que durou cerca de oito anos antes, com as bets foi muito mais intenso em um tempo bem menor”, lembra.Ele completa, expondo os impactos que o vício na sua vida: “Me tornei uma pessoa totalmente manipuladora, mentirosa, raivosa, cheguei a tomar medicamentos contra depressão, e já tentei até tirar minha própria vida, devido ao tanto de problemas que estava vivendo. Além disso, fiquei completamente falido, devendo a mais de oito agiotas, e tentava arranjar dinheiro com todo mundo que conhecia para poder financiar o jogo. É algo muito parecido com o vício em drogas, quando acaba o último centavo a pessoa faz qualquer coisa para poder voltar a jogar”.ProcessoA psicoterapeuta Juliana Santos explica que o adoecimento é um processo gradativo, gerado por uma repetição de ações: “É um esquema de recompensas, que toma conta do sistema cerebral, com uma descarga excessiva de hormônios relacionados à adrenalina no momento do ganho de uma aposta, que se transforma numa nova referência de satisfação, o que o indivíduo precisa para se sentir bem. Daí se constrói a condição patológica, porque quanto mais ele faz, mais ele quer fazer, criando uma dependência. Nesse ponto, as perdas começam a ficar muito difíceis para o sujeito, porque o fazem sentir a necessidade de jogar novamente para lidar com a frustração, o que forma um ciclo de compulsão”.A profissional analisa ainda que o aumento de casos da condição pode estar associado a uma questão de sociabilidade: “Ocorre devido a um estímulo social, que tem, sim, um peso no desenvolvimento do comportamento patológico. Uma pessoa que nunca considerou jogar, por exemplo, vai considerar fazer porque está vendo muitas propagandas de divulgação na TV, ou está vendo os amigos jogarem e falarem sobre”.

Espaço de reuniões, onde participantes compartilham histórias de superação e luta

|  Foto: Raphael Muller / AG. A TARDE

É o caso de Maria (nome fictício), também participante dos encontros dos Jogadores Anônimos há quase 10 meses em abstinência, que diz ter entrado para o mundo das apostas ao ser influenciada por amigos e a publicidade na internet.“Comecei durante a Copa do Mundo de 2022, porque era um momento que as bets esportivas estavam muito em alta, e muitas pessoas ao meu redor estavam apostando. Por curiosidade, eu passei a fazer também. Mas foi em 2023 que eu comecei a apostar com mais frequência, porque comecei a ver os influenciadores fazendo propaganda”, relata.A partir daí, Maria confessa que passou a “viver para o jogo”, e lista os efeitos: “Cheguei a perder o emprego, menti muito, peguei dinheiro emprestado, perdi a confiança de algumas amizades, me tornei ansiosa, fechada, parei de me cuidar, deixei de comer, perdi peso, e até pensei em suicídio”.Educador financeiro, Rodrigo Guimarães concorda que a ludopatia está sendo potencializada pela tecnologia e expõe os impactos do problema.“O principal efeito é uma desordem no orçamento familiar ou mensal, devido à compulsão. Qualquer dinheiro que entra, a pessoa compulsiva volta a jogar de novo, achando que está fazendo um reinvestimento, mas não é o caso, porque é algo que depende da sorte. Nesse ciclo, a pessoa sempre acaba perdendo mais do que ganhando”.RecomendaçõesO especialista, então, orienta como agir nessa situação: “Para quem chegou no fundo do poço, a principal orientação é mapear qual foi o impacto financeiro gerado por esse vício, para entender o que é possível recuperar e de que forma. Nesse mapeamento, será possível verificar qual o tamanho da dívida e traçar estratégias, tais como: trocar dívidas mais caras por dívidas mais baratas; quando possível, buscar uma renda extra ou vender bens em comum acordo com a família; suspender de imediato gastos com supérfluos para diminuir os custos mensais, entre outras manobras”.Atualmente, a legislação responsável por regular as atividades relacionadas às bets no Brasil é a Lei 14.790/ 23, sancionada pelo presidente Lula em dezembro do ano retrasado. O texto impõe alguns cuidados obrigatórios às plataformas, como na publicidade e propaganda, que devem dispor, por exemplo, de avisos de desestímulo ao jogo e de advertência sobre seus malefícios, além de ações informativas de conscientização e prevenção do transtorno patológico.A regulação também assegura aos apostadores, como direito básico, à informação e orientação adequadas e claras quanto aos riscos de perdas dos valores das apostas. Além disso, é totalmente vedada a participação de menores de 18 anos, além de pessoas previamente diagnosticadas com a ludopatia.

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