Filme conta companheirismo entre Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé

Em meados do século passado, a ialorixá Mãe Senhora, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá – um dos mais importantes e tradicionais de Salvador – elevou Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé ao cargo de Obá de Xangô.Criado anos antes pela mãe de santo Aninha, fundadora do Afonjá, trata-se de um título dado a pessoas não iniciadas no candomblé, mas que possuíam estreita ligação com os princípios da religião de matriz africana, a fim de estabelecer uma relação entre o terreiro e a sociedade civil.É a partir da comunhão em torno dessa honrosa distinção, fora a bonita amizade forjada pela proximidade com as artes e pela baianidade sedimentada pelo trio em suas obras, que se sustenta o documentário 3 Obás de Xangô.Dirigido pelo cineasta baiano Sérgio Machado, o filme ganha sessão na noite de hoje na 20ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, ligada à preservação e memória do cinema nacional. O filme será exibido na Praça Tiradentes, dentro da Mostra Contemporânea.O diretor conversou em exclusividade com A TARDE sobre o longa: “Às vezes eu fico achando que esse é o meu filme mais pessoal. No entanto, a ideia não partiu de mim, mas do produtor Diogo Dahl, que me convidou para dirigir, a partir do roteiro de Gabriel Meyohas, que teve a ideia de fazer um filme sobre os três, a partir da correspondência entre eles”.Machado, no entanto, achou que aquele material não era suficiente para o filme. “Por conta da amizade, eles ficavam elogiando um ao outro o tempo todo. Daí eu comecei a pesquisar mais e cheguei nesse ponto dos três serem Obás de Xangô”, confidenciou.BaianidadeSeja na literatura de Jorge, na música de Caymmi ou nos desenhos de Carybé (este nascido na Argentina, mas radicado na Bahia), a ideia de baianiade sempre esteve presente em suas criações.É como se os três tivessem ajudado a tecer uma identidade cultural baiana no comportamento e nos costumes retratados em suas obras.Isso é algo que o documentário busca mostrar a partir da interlocução entre eles, sejam pelas correspondências ou pessoalmente, mas também pelos sons e imagens de muitos registros distintos que costuram o filme.Curiosamente, Machado dirigiu recentemente o documentário A Bahia Me Fez Assim – uma produção do Canal Curta! que retrata a cena musical baiana atual, reunindo diversos talentos interpretando clássicos da música local.São propostas diferentes, mas ambos os filmes dialogam na maneira de enxergar os signos da baianidade e de uma identidade cultural que se tornou marca registrada a partir das manifestações artísticas.“Tem um fato curioso entre os três, inclusive com uma fala igualzinha deles em momentos diferentes, que é sobre se considerarem documentaristas. Todos eles falam que buscaram no começo retratar o povo das ruas. Eles se dedicaram muito a falar do mar, da mulher e do candomblé em suas obras”, pontuou Sérgio.Além disso, o filme começa com uma narração de Lázaro Ramos e traz depoimentos atuais de outras personalidades, tais como o escritor Itamar Vieira Jr., o pesquisador Muniz Sodré, a líder religiosa Mãe Lúcia, Gilberto Gil, entre outros.“Eu pensei em trazer só baianos para que eles refletissem sobre a importância desses caras no mundo contemporâneo. E todos ele têm um cargo ou alguma relação com o candomblé”, acentuou.Arquivos rarosA exibição do filme no CineOP é muito reforçada pelo uso e trabalho dos materiais de arquivo que Machado e sua equipe garimparam para compor o longa.Há trechos raros dos três em seus espaços de criação, além do farto material iconográfico tanto deles, quanto da vida baiana que ilustra o que eles registraram em suas produções.Mas certamente o mais interessante é um encontro descontraído de Jorge Amado, Zélia Gattai, Carybé e Mãe Stella de Oxóssi no próprio terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá – casa que Mãe Stella assumiu como ialorixá desde os anos 1970.“João Moreira Salles filmou um documentário chamado Jorge Amado no final dos anos 1990. E aí agora, quando ele soube que eu queria fazer esse filme, me deu de presente todas as imagens originais que ele fez na época. São 30 horas de material bruto e a maioria nem está no filme dele. Então são inéditas mesmo”, revelou o diretor.Machado disse ter se surpreendido também com o fato de ter encontrado poucas imagens dos três artistas juntos. Muitas vezes eles estão em pares, falando do outro que falta, mas há poucos registros desse encontro tríplice.O candomblé é outro elemento que une o trio, mas também foi importante para o próprio cineasta: “Eu tinha muita vontade de me reaproximar do candomblé porque era a religião da minha mãe. Ela me levava muito aos terreiros, passei a infância assim. Minha mãe era muito amiga de Mãe Stella, de Pierre Verger. Então essa era também uma forma de resgatar a minha infância”, relembrou Machado.O diretor contou ainda que no início de sua carreira foi apadrinhado por Jorge Amado, que o levava ao cinema quando pequeno.Celebrando a sua própria memória, Machado reúne três figuras essenciais para a memória de uma Bahia sacramentada na literatura, na música e nas artes plásticas.3 Obás de Xangô tem conquistado o público por onde passa. Ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio, além dos prêmios de público nas Mostra de Tiradentes e de São Paulo.O filme tem previsão de estreia nos cinemas para o início de setembro.*O jornalista viajou a Ouro Preto à convite da produção do CineOP
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