Festival desafia o machismo nas telas e coloca mulheres no centro da cena

“O cinema é um mundo machista”. É o que afirma a baiana Bianca Bomfim, uma das diretoras do curta-metragem Retrato Tumbalalá, que trata da luta por território do povo da Aldeia Indígena do Pambu, localizada às margens do Rio São Francisco. A opinião de Bianca não é exclusiva. Durante décadas, as telas foram dominadas por homens que não apenas ocupavam as cadeiras de direção, mas também decidiam quem seria visto e ouvido.No entanto, novos ventos apontam para uma mudança de cenário. Em Salvador, de 23 a 27 de julho, o 8º Festival Lugar de Mulher é no Cinema promete não apenas exibir filmes, mas também redimir silêncios e reconstruir imaginários.De acordo com a diretora executiva do festival, Day Senna, esta é uma oportunidade de garantir espaço de exibição para mulheres e pessoas não binárias que atuam no cinema. Ela destaca que, por causa da estrutura machista da sociedade, algumas produções não recebem o mesmo espaço em curadorias de diversos festivais: “Com o festival, estamos em busca de equidade”.Codiretora de Retrato Tumbalalá, Clara Campos afirma que contar histórias é um ato político. “É o que me incentiva a estar atrás das câmeras, seguir em frente, dar voz a essas lutas”, explica. “Isso me dá força para seguir no caminho do cinema independente”.Ao voltar da Argentina, onde estudou cinema, ela se lançou em uma viagem “para dentro de si mesma”. Foi no sertão nordestino que encontrou os vestígios dos avós e da ancestralidade. Conheceu os povos Pankararu e Pankararé, indígenas que vivem principalmente no sertão pernambucano. A comunidade tem forte relação com a família de Clara. “Me envolvi emocional e espiritualmente com essas histórias”.Dessa imersão nasceu a Escola Jurema, um projeto de comunicação itinerante criado por Clara e abraçado por Bianca. “Esse projeto é tipo um sonho”, conta. A atividade voluntária permitiu que a dupla se envolvesse cada vez mais com as comunidades indígenas. O cinema, para elas, deixa de ser apenas arte e se torna ferramenta de luta. “Eu sinto que meu trabalho está a serviço do que eles querem comunicar”, diz Clara.Homenagem

A diretora executiva do festival, Day Senna

|  Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

No sertão ou na metrópole, a violência de silenciar vozes é uma ferida compartilhada. É o que lembra a cineasta e performer Rastricinha Dorneles. Ela se tornou a primeira mulher transexual a receber o Prêmio Sol Moraes, honraria concedida pelo festival. “O audiovisual é capaz de provocar uma mudança de imaginário que dá a chance para uma travesti permanecer viva”, declara.Ao descobrir que seria homenageada, duvidou se era verdade. “Fiquei pensando que ia subir no palco e logo iam derrubar um balde de sangue de porco na minha cabeça”, diz Rastricinha, dando risada, em referência à clássica cena do filme Carrie, a Estranha, de 1976, em que a protagonista é humilhada em frente aos colegas.A desconfiança tem uma explicação. “Quando eu era criança, um professor me disse que alguém como eu seria no máximo uma caixa de supermercado”, conta. “Hoje, pensar que estou sendo homenageada num festival é algo fora do comum”. Para Rastricinha, o evento abre brechas onde antes havia muros. “Quando eu recebo esse prêmio, começo a destruir um pouco dessas vozes que dizem que eu não pertenço a este mundo”.

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Com 84 anos de vida e 68 de carreira, a atriz, cantora e dançarina Neusa Borges também será homenageada no festival. Com mais de 100 personagens no currículo, a catarinense diz que acredita nos direitos iguais entre gêneros. “Eu tenho horror da mulher ser sempre inferiorizada em tudo o que faz pelo homem”, declara.Apesar do sucesso em novelas como A Escrava Isaura e O Clone e de, mais recentemente, ter recebido o Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Cinema de Gramado pelo filme Mussum, o Filmis, Neusa admite que ainda sente o peso da exclusão: “Nunca me convidam para nada”. Para as jovens que desejam entrar no audiovisual, ela diz que é importante continuar a batalha. “Quem sabe um dia as coisas ficam iguais, não é?”, provoca.Filmes

Cena de A Menina que Queria Voar

|  Foto: Divulgação

Enquanto Neusa carrega o passado como tocha, a diretora, roteirista e documentarista Taís Amordivino ilumina o presente com a delicadeza de quem se lembra da criança que foi. Em A Menina que Queria Voar, ela resgata a infância como território sagrado. O curta-metragem mostra como a imaginação infantil percebe tanto a beleza quanto as ausências e desigualdades ao redor.”Foi um exercício de resgate da minha própria infância”, conta Taís, que morou no bairro do Cabula, em Salvador, quando era criança. “Busquei me aproximar do ponto de vista de Lila, a personagem, com muita delicadeza, respeitando a forma como uma criança negra observa e sente o mundo”, explica.Para Taís, a infância é lugar de poesia, mas também de denúncia. “A infância precisa ser representada com verdade e afeto”, diz. Em cada quadro do filme, ela semeia sonhos e questiona ausências: “É essencial que crianças e jovens, especialmente os que não se veem com frequência nas telas, encontrem histórias que falem diretamente com suas experiências”.O curta integra a mostra Matinê do festival. Voltada à formação de público e à valorização do cinema desde cedo, a mostra reúne filmes que misturam leveza, imaginação e reflexão, vindos de diferentes regiões do Brasil e até do exterior. Para Taís, o público do festival deve sair com uma sensação de identificação e acolhimento. “Espero que enxerguem a beleza da infância e reflitam sobre o quão importante é sonhar”.ObstáculosEnquanto obras como a de Taís cultivam sensibilidade e abrem portas para novos olhares desde a infância, outras diretoras reforçam a necessidade de romper barreiras históricas no mercado. Para a diretora Bianca Bomfim, o machismo estrutural do audiovisual ainda mantém barreiras que afastam mulheres e dissidências de gênero das principais oportunidades criativas.”Cansamos de ver mulheres competentes sendo substituídas por machos alfa pouco profissionais”, denuncia. Segundo ela, apesar dos avanços, o mercado ainda é marcado por disputas desiguais e por um olhar masculino que dita o que merece ou não ser contado.Bianca acredita que festivais como o Lugar de Mulher é no Cinema são fundamentais para virar essa chave, ao criar um espaço de acolhimento, partilha e aprendizagem. Para a cineasta, esses eventos não se limitam apenas à exibição: são espaços de debate, reflexão e construção de novas narrativas. “O cinema é arte, cultura e educação”, completa, reforçando a importância de ocupar as telas com pluralidade e coragem.Segundo a diretora executiva do evento, Day Senna, é possível garantir a diversidade na seleção dos filmes das mostras com uma curadoria mais plural, que inclua pessoas de diferentes raças, idades, vivências e experiências profissionais. Fazem parte do time mulheres cis, trans, pessoas não binárias, negras, brancas, indígenas, periféricas e não periféricas.”Isso faz com que cada uma se coloque no lugar do outro e leve para a curadoria um pouco do que são, do que vivem e respiram”, explica. Assim, ainda de acordo com Day, o festival cria um espaço de escolha mais representativo, que reflete múltiplas perspectivas e assegura a inclusão de histórias que, em muitos outros contextos, permanecem invisibilizadas.

Serviços

8º Festival Lugar de Mulher é no CinemaQuando: 23 a 27 de julhoOnde: Salvador, BahiaQuanto: GratuitoLocais de exibição e atividades presenciaisMuseu de Arte Moderna da Bahia (MAM), Av. Contorno, s/n — Solar do Unhão, SalvadorEspaço Boca de Brasa Centro, Rua Barão de Cotegipe, 360 — Calçada, SalvadorBoca de Brasa 360 (Subúrbio Ferroviário), Rua das Pedrinhas, s/n — Plataforma, Salvador

Programação geralSessões de cinema (mostras competitivas Luas, Raízes e Matinê)Oficinas e rodas de conversaMasterclassCerimônia de abertura e entrega do Prêmio Sol Moraes (dia 23 de julho)MostrasLuas: Apresenta curtas-metragens realizados por mulheres e dissidências de gênero, explorando temas como corpo, ancestralidade, resistência e memória. As obras vêm de diversas regiões do Brasil e convidam o público a mergulhar em histórias de pertencimento, deslocamento e força coletiva.Raízes: Focada na força do audiovisual baiano, reúne curtas que brotam da terra e da memória, entrelaçando vivências negras, indígenas, femininas e populares. Os filmes percorrem Salvador, o sertão e outros territórios da Bahia, revelando camadas profundas da identidade local.Matinê: Com foco na formação de novos públicos, a mostra busca valorizar o cinema desde os primeiros olhares. Exibe obras capazes de encantar pessoas de todas as idades, combinando leveza, imaginação e reflexão. Os filmes vêm de diferentes cantos do Brasil e também do exterior, celebrando a infância, a juventude e o futuro do audiovisual com delicadeza e inventividade.Mais informações: @festivalmulhernocinema no Instagram

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