Na década de setenta, a disposição das revistas, jornais e almanaques comunicavam uma certa hierarquia de saberes. E os sabores também eram localizados em lugares estratégicos. O pirulito do zorro, o caramelo de leite, ficavam muito próximos aos quadrinhos infantis. Já a goma de mascar em tabletes, os cigarros e as pastilhas de menta habitavam uma outra região. Os adultos se entretinham naquele aglomerado, falando em códigos e fazendo muitas mímicas. Seu Zé, o dono da banca coordenava o atendimento. Parecia ser ele quem decidia quem tinha idade para consumir revistas com ilustrações peculiares, quem podia comprar cigarros, refrigerantes de cola e os jornais. Até então, eu só tinha idade para consumir gulodices. Seu Zé, no entanto, enxergou em mim uma fome pelo saber.
Havia um conjunto de revistas que sempre me chamaram a atenção pela capa. Pela disposição na prateleira, não era possível folhear. Havia uma figura exótica, desdentada e caricata que me intrigava. Seu Zé fingia que não me via correndo os dedos gordinhos pela sessão de almanaques. O dono da banca fazia pactos secretos com as pessoas. Tudo no tempo da ditadura parecia estar meio velado. Senti que fui adquirindo patentes quando os doces foram mudando de textura. De repente, seu Zé me ofereceu uma balinha crocante, que começava azeda e terminava explodindo na boca com agradável sabor de surpresa. Bigbol era, na verdade, uma bala transformer. Virava chiclé.Numa tarde qualquer, vi meu irmão com um exemplar da tal revista, conversando alto, numa ciranda de meninos que tinham o dobro da minha idade. Ainda estava me alfabetizando. O nome daquela revista não fazia nenhum sentido para mim. M A D. Na roda dos escarnecedores (os amigos de meu irmão eram impossíveis), havia uma satisfação enorme em esconder o teor da revista e, ao mesmo tempo, mostrar que eles podiam acessar o código secreto dos adultos. Num momento de vacilo, roubei a revista e, longe da vista de todos, conferi o inteiro teor da publicação. Era crítica social em código morse. Nada entendi. Achei os desenhos estranhos, a tipografia esquisita. Naquela mesma época, descobri os quadrinhos no jornal. Encontrei o amigo da onça. Também passei batido. O mundo era cifrado demais para mim.
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Esperei pelo sábado, lavei os tapetes do carro do meu pai, e ganhei uns trocados para comprar doces na banca de seu Zé. Perguntei a ele se havia alguma revista de quadrinhos que eu pudesse entender, mesmo sem dominar a leitura. O seu Zé era um homem muito ocupado, mas diante da minha demanda, ele se inclinou gentilmente e ofereceu um exemplar de Luluzinha. Ele era mesmo vanguardista. Disse, em tom de segredo, que todo mês havia uma nova remessa e que, por sorte, tinha recebido uns exemplares de uma revista com tirinhas de um cartunista argentino.Aqui na Bahia, quando alguém entende muito de alguma matéria, a gente diz que a pessoa tem os paranauê. Seu Zé tinha o segredo das publicações em suas mãos. Ele me apresentou às telenovelas e, também, a publicação mais marcante da minha infância. A revista Patota tinha tirinhas da Mafalda. Essa menina curiosa e insubordinada ainda se destaca e é recomendada não apenas na sua cidade, mas em toda a América Latina.— Querida Mafalda, obrigada por encher meus dias de alegria e semear gotículas de rebeldia e descontentamento a minha caligrafia.
O bilhete foi escrito mentalmente e entregue em devaneios ao maior articulador político que conheci. Gosto de pensar que seu Zé, com sua discrição e simpatia, quebrou as pernas da ditadura.