Polícia Civil de Minas apaga ordens de serviço ’em aberto’ de inquéritos e ação preocupa investigadores

A Polícia Civil de Minas Gerais decidiu excluir do sistema eletrônico as ordens de serviço “em aberto” de alguns inquéritos. Essas ordens são orientações dadas pelos delegados aos investigadores para que cumpram tarefas em busca de indícios e provas que possam auxiliar no esclarecimento dos crimes. Os servidores veem riscos de “retrabalho” e de que as apurações sejam prejudicadas. Em entrevista ao BHAZ, o órgão garante que foram apagadas apenas ordens de serviço de inquéritos já relatados e enviados à Justiça, ou “em aberto” há mais de doze meses, e reitera que não há ameaça aos processos. (Leia a íntegra abaixo.)

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Implementado em 2011, o Sistema de Informatização e Gerenciamento dos Atos de Polícia Judiciária, conhecido como PCnet, é a plataforma onde são armazenadas todas as informações e dados relacionados aos inquéritos da Polícia Civil. Atualmente, o sistema passa por um processo de integração com o Processo Judicial Eletrônico (PJ-e), ferramenta do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). A integração foi concluída em 2025 em boa parte das comarcas, mas, segundo os servidores, os desafios, que já eram considerados “grandes” e se arrastavam “há anos”, só “se agravaram”.

“Esse sistema sempre foi cheio de problemas, sempre fora do ar, sempre lento. A partir de 2019, quando começou a funcionar o plantão digital, o uso dele passa a ser ainda mais efetivo porque a gente começa a fazer flagrantes virtuais e atendimentos virtuais à distância. Recentemente, com essa questão da integração com o PJ-e, ele ficou ainda mais instável. E, agora, surgiu essa dificuldade, em muitos casos, de encontrar as ordens de serviço, que sumiram, por uma suposta ‘higienização do sistema’, devido à digitalização”, explica Marcelo Horta, presidente do Sindicato dos Escrivães do Estado de Minas Gerais.

Entre as diversas funcionalidades do sistema PCnet, duas dizem respeito à inserção e ao acesso às chamadas ordens de serviço — comandos que autorizam e orientam os investigadores nas ações de campo. Essas ordens são utilizadas para a realização de tarefas específicas e, por isso, muitas vezes são consideradas “essenciais” para o andamento das investigações. Um exemplo comum é a determinação para localizar testemunhas.

“Além de uma orientação importante, é também o respaldo legal que a gente tem para trabalhar, caso sejamos questionados, na rua, ou até mesmo por outros órgãos, como o Ministério Público”, explica um investigador que não terá a identidade revelada.

Relatos e denúncias recebidos pelo Sindicato dos Escrivães de Minas Gerais (Sindep-MG) indicam que, durante o processo de digitalização dos inquéritos e a integração entre os sistemas PCnet e PJ-e, diversas ordens de serviço de processos antigos deixaram de ser localizadas pelos investigadores.

“Isso tem sido recorrente, relatos de ordens de serviços que sumiram, o pessoal procura, mas não consegue achar. Juntou tudo: essa integração, lentidão, um sistema que é feito numa arquitetura que a gente acredita ser muito antiga e que não passou por nenhum tipo de atualização”, alerta Marcelo.

O BHAZ teve acesso a um ofício que o Sindep-MG enviou à direção do órgão em fevereiro deste ano pedindo explicações. Nele, a entidade expõe mensagens que teriam sido encaminhadas pela própria Polícia Civil aos cartórios, informando sobre uma “higienização abrangente”, após ter identificado ordens de serviço “inativas e pendentes”, e que estariam “impactando diretamente a agilidade e a eficiência do sistema”. O ofício não foi respondido e, agora, o Sindicato estuda entrar com uma ação no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

“Com a experiência de trabalho que a gente tem, com essa ‘higienização’, em vez de cobrar para que as ordens fossem realizadas, simplesmente apagaram do sistema. É o que a gente tem, mas não tenho informações oficiais, porque questionamos e não tivemos resposta até agora”, revela Marcelo Horta.

No ofício, a entidade questiona a veracidade de comunicados aos quais teve acesso, em que servidores são informados sobre o cancelamento de todas as ordens de serviço editadas até 31/12/2023, mas que “ainda não haviam sido emitidas no sistema, ou seja, não haviam sido aprovadas”.

“É um prejuízo enorme. São vários problemas graves. Uma ordem de serviço que o delegado determinou que acontecesse 5 anos atrás, se ela é apagada, é como se ela nunca tivesse existido. É como se uma fase do inquérito não tivesse acontecido. Isso é muito grave”, pondera Marcelo Horta, presidente do Sindicato dos Escrivães de Minas Gerais (Sindep-MG) .

“Nós podemos estar falando de milhares de procedimentos que foram simplesmente removidos do sistema. Não temos uma explicação de como se deu isso e qual a base legal, porque a gente entende que o sistema PCnet é um sistema homologado, ele não pode sofrer alterações desse tipo sem uma ordem judicial ou sem uma explicação muito clara de como isso aconteceu”, completa.

O BHAZ conversou com dois servidores que relataram ter identificado o “sumiço” de ordens de serviço após a digitalização dos processos. Em um dos casos, a solicitação para verificar a existência de uma câmera de segurança, segundo eles, não constava mais no processo digital e uma nova ordem precisou ser emitida.
“Podem ser emitidas novas ordens de serviço, mas é mais complexo, porque é preciso fazer todo o trabalho novamente, ver de onde aquela informação surgiu, para que as novas ordens sejam feitas. Dependendo da investigação, você não vai conseguir recuperar as mesmas informações mais ou terá um atraso de um ano, seis meses”, conta um escrivão.

De acordo com o Sindep-MG, há impactos para o serviço público e para a sociedade. “Ao identificar que aquele documento deixou de existir, o servidor tem que refazer e, cada documento desse, para refazer, é necessária uma análise do inquérito. No mínimo, eu vou ser muito otimista, o colega vai perder 30 minutos. Se multiplica 30 minutos por 20 mil ordens, por exemplo, então, isso daria um prejuízo de 10 mil horas de serviço público”, calcula Marcelo.

No ofício enviado à Polícia Civil, a entidade argumenta, ainda, que caso seja confirmada a ação de exclusão das ordens de serviço, há um risco de que seja percebida como “uma fragilidade do sistema e sem transparência, sem amplo esclarecimento e publicidade das reais causas”. O Sindep-MG não descarta ainda o risco de que haja pedidos de “nulidade dos processos, caso essa insegurança e a falta de garantia na proteção de dados sensíveis e sigilosos seja questionada por advogados das partes investigadas”.

“Nosso ordenamento jurídico estabelece prescrições. Os crimes, quando passa determinado tempo, deixa de ser punível. Então, se acontece um crime e se eu não consigo apontar o autor daquele crime em um determinado período de tempo, por atraso em relação às ordens originalmente não cumpridas, acontece o que a gente chama de prescrição da punibilidade. O cara não vai ser punido por aquele crime”, acrescenta Marcelo.

O que diz a Polícia Civil

Em entrevista ao portal BHAZ, o porta-voz da Polícia Civil, Saulo Castro, explicou que a exclusão das ordens de serviço ‘em aberto’ busca melhorar a gestão das investigações armazenadas no sistema e explicou quais foram aquelas apagadas. 

“Na verdade, houve a exclusão somente de ordens de serviço ‘em aberto’ de inquéritos já relatados e entregues à Justiça, além de ordens emitidas há mais de 12 meses. Essas ordens estavam pendentes de devolução, distribuição ou aceitação no sistema”, explica Saulo Castro.

De acordo com Saulo, no primeiro caso, mesmo com as ordens de serviço “em aberto”, o delegado de polícia, que é o presidente da investigação, entendeu que havia elementos suficientes para a conclusão do inquérito e envio à Justiça. “Ele faz antes uma análise técnico-jurídica”, garante.

No segundo caso, em relação às ordens que estavam há mais de 12 meses “em aberto” e sem movimentação no sistema, o delegado pode, se achar necessário, expedir uma nova ordem de serviço, nos mesmos termos da anterior, caso ache necessário. 

Sobre os riscos aos processos, Castro garante que todas as ações adotadas no PCnet são “auditáveis” e seguem padrões rigorosos de segurança da informação. “Não há risco à integridade do sistema ou comprometimento do banco de dados”, reitera Saulo. 

O porta-voz explicou ainda que todas as investigações criminais, documentadas no sistema PCnet, são enviadas à Justiça e, como determina a legislação, são direcionadas ao Ministério Público. “O MP é o órgão titular da ação penal  pública e, caso ache necessário, poderá requisitar diligências complementares imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, nos termos do art. 16 do Código de Processo Penal”, diz.

A reportagem questionou o órgão sobre quantas ordens de serviço “em aberto” foram apagadas, quando, se a medida foi comunicada às diferentes partes do trabalho de investigação e se há um back-up que permite o armazenamento e acesso a essas ordens de serviço apagadas, mas não obteve resposta a essas perguntas.. 

O BHAZ também procurou o Governo de Minas e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), mas não houve retorno. O espaço segue aberto. 

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