Estado de SP é condenado a pagar R$ 350 mil por perseguir grupo em caminhada sobre cultura negra


Grupo de turistas e guias negros é acompanhado pela PM por 3 horas em walking tour no Centro de São Paulo
Heitor Salatiel/Arquivo Pessoal/BlackBird Viagens
A Justiça condenou o estado de São Paulo a pagar R$ 350 mil por danos morais coletivos à população negra após reconhecer conduta discriminatória da Polícia Militar durante a “Caminhada São Paulo Negra” realizada em 2020.
Na ocasião, guias de uma agência de turismo, que atua em locais importantes para a cultura negra, afirmaram ter sido seguidos por 3 horas, filmados e abordados por policiais militares durante um passeio no Centro de São Paulo. A PM disse, na época, que acompanhou o grupo devido à “grande concentração de público”.
A empresa Guia Negro, que na época se chamava BlackBird Viagens, iniciou seus trabalhos em 2018 e possui entre seus roteiros a Caminhada São Paulo Negra. O passeio leva turistas guiados com informações sobre a cultura negra da Liberdade ao Largo do Paissandu.
A ação civil pública, movida pela Defensoria Pública do estado de São Paulo, apontou abordagem excessiva e injustificada por parte da PM ao longo de um roteiro turístico com apenas 14 participantes.
“A atuação da Polícia Militar extrapolou os limites do exercício regular do poder de polícia, configurando uma ação discriminatória e desproporcional”, afirmou o desembargador Paulo Galizia, relator do processo, em seu voto.
Ao g1, o fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias, comemorou a decisão que reconheceu o racismo e destacou a importância do caso para criar jurisprudência e garantir que episódios semelhantes não aconteçam.
“Quando a gente disse que ia processar o estado, muitas pessoas falaram que ‘não ia dar em nada’, que ‘não valia a pena’. Algumas pessoas diziam que ‘era só racismo’, que seria difícil de comprovar, mas a gente dizia que é exatamente esse crime que não queremos que aconteça de novo”, afirmou.
Segundo a decisão, o valor será destinado a um fundo voltado exclusivamente a projetos culturais e turísticos em benefício da população negra.
O sentimento é de alívio. A gente espera que essa grana seja utilizada para ações de afroturismo com a polícia. A polícia não deve ser nossa inimiga, a polícia precisa entender o que é a cultura negra, andar do nosso lado e defender a população negra
Segundo o processo, o grupo foi escoltado por viaturas, motos e cavalaria policial mesmo após os organizadores apresentarem documentos que comprovavam o caráter cultural do evento.
O estado ainda pode recorrer. O processo foi encaminhado para intimação na terça-feira (15). Procurado, o governo paulista não se manifestou até a última atualização desta reportagem.
Relembre o caso
Em outubro de 2020, após meses parada por conta da pandemia, a agência de turismo retomou os trabalhos em um grupo formado por 14 pessoas, sendo dois guias e 12 turistas.
Logo na primeira parada, na Praça da Liberdade, o grupo foi abordado por policiais, que questionaram se o encontro se tratava de uma manifestação, de acordo com os guias.
“Explicamos que se tratava de uma atividade turística, mostramos nosso CNPJ, dissemos que eram nossos clientes e garantimos que não haveria aglomeração justamente por ser um serviço pago, com limite de até 15 pessoas durante a pandemia”, disse Guilherme.
Segundo ele, ali teve início uma perseguição policial, que durou até a última parada, às 13 horas.
O grupo seguiu com o passeio e se dirigiu para a Casa Preta Hub, espaço colaborativo no Anhangabaú, e foi acompanhado por policiais em motos.
“Na saída optamos por subir a escada rolante do Vale, que não fazia parte do nosso percurso, para tentar despistar aquele acompanhamento arbitrário, mas demos de cara com uma cavalaria. Adiante, no Largo do Paissandu, outra equipe se apresentou, questionou novamente se era um protesto, e chegou a nos pedir que assinássemos um documento, o que nos negamos a fazer”, continuou.
O g1 questionou a Polícia Militar se a corporação confirma que acompanhou os guias e os turistas negros por três horas e o motivo da ação. Em nota, a PM disse que, “por se tratar de um evento com grande concentração de público, foi realizado o acompanhamento, como regularmente é feito, a fim de garantir a segurança do grupo e demais cidadãos”.
“Eram 12 clientes, não era uma aglomeração. Tinha muito mais gente na fila para a exposição dos Gêmeos na Pinacoteca e junto a uma candidata que fazia uma caminhada política, mas em nenhum momento deixaram de nos seguir. A gente percebe que realmente era uma perseguição ao nosso evento”, disse Guilherme.
“A nossa caminhada é uma valorização da cultura negra, e a gente gostaria de convidar a Polícia Militar a fazer parte dessa caminhada, para entender a importância e a potência desse trabalho, para entender que pessoas negras juntas não estão necessariamente se manifestando ou fazendo algo criminoso. Pode ser uma atividade cultural”, completou.
A equipe da então BlackBird Viagem fez um boletim de ocorrência sobre o episódio, que a polícia registrou como “não criminal”, de acordo com a Secretaria da Segurança Pública (SSP), acionou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para avaliar outras medidas, e se reuniu com o Ministério Público.
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