Canção do imigrante

O rótulo de cinema político pode parecer um tanto pesado para falar sobre Apenas Alguns Dias, longa metragem de estreia da diretora francesa Julie Navarro, cujo roteiro escrito por ela e por Marc Salbert é baseado no livro, ainda inédito no Brasil, De l’influence du lancer de minibar sur l’engagement humanitaire (“A influência do lançamento de minibares no engajamento humanitário”, em tradução livre), de autoria do próprio Salbert.Escrito por este ao lado de Navarro, o filme surge em um momento propício para uma reflexão muito evidente da atual conjuntura política do mundo.Ao abordar questões ligadas à situação de imigrantes em Paris, especialmente aqueles oriundos do Afeganistão e que buscam escapar dos horrores da guerra, a obra chega aos cinemas brasileiros justamente em um momento no qual as notícias destacam a total arbitrariedade com a qual um ditador estadunidense eleito presidente esquece-se convenientemente que é filho de imigrantes e busca extirpar pessoas de seus sonhos de estabilidade e felicidade ao cassar suas permanências em um país no qual sua própria família chegou, décadas antes.Mas quando se rotula como cinema político um filme como Apenas Alguns Dias, um risco de se tirar a leveza com a qual o longa apresenta seu tema se torna claro.Na história de um jornalista musical parisiense que, escalado por seu editor para uma pauta sobre a situação de imigrantes na capital francesa, acaba acolhendo por alguns dias em sua casa um jovem afegão, um equilíbrio para esse peso de um tema político tão urgente em uma abordagem menos densa é alcançado.Drama bem dosadoA partir dessa citada leveza, com a qual seus dois protagonistas encontram pontos em comum nas suas próprias vidas, como a paixão por música e como a mesma é capaz de criar tal anestésico para a realidade, e como os problemas do francês parecem tão insignificantes diante do drama daquele imigrante que ele precisa ajudar, o filme de Julie Navarro encontra exatamente essa sintonia e compasso ideal que resvala para uma reflexão profunda de seu tema.A TARDE conversou com Marc Salbert, autor do livro no qual o filme foi baseado e co-roteirista da versão cinematográfica de seu romance, e o mesmo pôde aprofundar essa ideia. “Existe, sim, um contraste naquelas duas realidades em relação aos problemas do jornalista e da questão do imigrante”, afirma Salbert.“Seus problemas parecem, sim, um pouco fúteis em relação às questões dos imigrantes, que são bem mais complexas. A minha ideia era fazer uma forma diferente de abordagem do que vemos geralmente, que são filmes que falam sobre estatísticas em relação aos imigrantes”, explica o roteirista.Distante do didatismoNa proposta de abordagem de sua história, Navarro e Salbert buscaram uma ideia na qual o filme poderia, sim, trazer os aspectos sérios e urgentes de uma realidade política monstruosa, mas o aprofundamento de tais temas acaba por ser apresentado para seu público através de um modo menos agressivo. Ainda está lá o aspecto áspero de uma realidade, no entanto, o filme o capta muito pela sinergia de seus dois protagonistas e como suas culturas se somam, em um claro recado de inclusão e não de exclusão.“Eu e Julie (Navarro) queríamos fazer uma coisa diferente de apenas falar sobre os aspectos políticos do Trump. Abordar esse tema de uma forma diferente. Buscar trazer uma aventura humana, ao invés de ser um filme que fale somente sobre estatísticas como geralmente esse tema é abordado”, pontua Marc.“Queríamos falar disso, mas sem soar didáticos. Sem deixar as pessoas se sentindo culpadas ou impotentes por não poderem fazer nada em relação a essa situação dos imigrantes. Mas sem trazer um sentimento de culpa com relação a essa situação”, explica o roteirista e escritor.“A ideia também era dar um ar de comédia mais leve. Isso porque o assunto já é, em si, muito pesado”, nota.Música como traduçãoNeste encontro no qual uma amizade entre um francês e um afegão se consolida, o gosto musical de ambos, em sua forma de linguagem universal, acaba sendo um catalisador para aquela relação fraterna florescer.Jornalista cultural especializado em música, Arthur Berthier (vivido pelo ator e músico Benjamin Biolay), ao precisar dar abrigo ao afegão Daoud (Amrullah Sari), tem nesse compartilhamento do seu espaço físico com aquele homem que precisa de ajuda para não morrer enquanto tenta alcançar sua família, um encontro que enriquece a ambos – em caráter e em cultura.“Eu poderia tê-lo colocado atuando em outras especialidades no jornalismo, mas eu me interesso muito por música, por já ter trabalhado em rádio. Quando escrevi o livro e a partir dele o roteiro, naturalmente o herói se interessava por rock and roll, como eu mesmo me interesso. Foi uma escolha natural”, explica Salbert ao destacar a profissão de seu protagonista, e revela que Berthier foi um dos responsáveis pela pesquisa musical para a ótima trilha do filme.“Ele me ajudou muito nessa escolha por conta de seu conhecimento vasto de música. Ele e Julie se reuniram para poder escolher as músicas que estão no filme. Tem um momento da trama em que o personagem afegão Daoud escuta uma música do Afeganistão. E é a música preferida dele, mesmo. Do próprio ator. E ele mesmo é um refugiado”, salienta Salbert.“Ele nunca tinha atuado antes. Inclusive, ele nunca tinha assistido a um filme na vida. A primeira vez em que ele viu o resultado do filme, ele ficou muito impactado. Ele trabalhava como cozinheiro no restaurante que os produtores de elenco frequentavam. Ao vê-lo, convidaram para um teste”, relembra Marc Salbert.A vida (e a arte) servindo de lição para a necessidade de inclusão, de oportunidade, e não para a monstruosidade nacionalista imposta pela atual política.Apenas alguns dias (Quelques jours pas plus) / Dir.: Julie Navarro / Com Amrullah Safi, Camille Cottin, Benjamin Biolay, Andranic Manet, Makita Samba, Hippolyte Girardot / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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