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Como a sua vivência em Salvador moldou o olhar que você leva hoje para a clínica?Sou de Salvador, criada em favela, morei por 30 anos em Beiru, no bairro de Tancredo Neves. Tenho uma vivência marcada pelo território: sei o que é ser uma pessoa negra, favelada, conviver com a violência policial, com a falta de saneamento básico, com o lixo que não passa toda semana. Foram muitos desafios, mas também muita força coletiva para construir esse caminho.Você está entre as homenageadas do Prêmio Mulheres Negras Contam Suas Histórias, que será entregue nos próximos dias. Qual é a importância desse reconhecimento na sua trajetória?O prêmio chega em um momento muito bonito. A Baobá está completando seis meses de inaugurada. Eu não fazia ideia de que o nosso trabalho estava repercutindo tanto. É raro ver mulheres negras sendo homenageadas em vida e enquanto ainda são jovens. Tenho 35 anos. Então, recebo este prêmio como um verdadeiro abraço ancestral, uma confirmação de que estamos no caminho certo. O baobá é esta árvore sagrada africana, que alimenta, nutre, abriga a comunidade. E esse reconhecimento reafirma nosso compromisso com as pessoas minorizadas de direito: pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+. Estamos aqui por nós e para nós.Quais são os principais obstáculos que essas populações enfrentam para acessar cuidado psicológico?
A Psicologia tem uma dívida histórica com as populações negras, indígenas e LGBTQIAPN+. São as comunidades que mais sofrem na sociedade. Desde o início da profissão, houve práticas extremamente violentas. Quando a Psicologia chegou ao Brasil, seus principais teóricos e práticas vieram da Europa e dos Estados Unidos, sem qualquer preocupação em compreender as realidades locais. Ignoraram as interseccionalidades, as trajetórias e vivências singulares de quem habita este território. Até hoje, essa ausência de escuta persiste. Há debates em alguns espaços, sim, mas ainda são poucos e limitados. Parece que tudo é tratado como se fosse novidade, mesmo sendo uma profissão regulamentada há 60 anos no país. Já passou da hora da Psicologia acompanhar as transformações sociais e as urgências das comunidades
Um dos principais desafios hoje é que, mesmo com o Código de Ética determinando que profissionais da Psicologia atuem com respeito às religiões, às questões de gênero, raça e contra qualquer forma de discriminação – como racismo, sexismo e xenofobia – muitos ainda falham em cumprir esse compromisso. Psicólogos, em especial os brancos, frequentemente silenciam os relatos de pessoas que vivenciam essas violências no cotidiano. Quando uma pessoa negra compartilha experiências de racismo no consultório, muitas vezes escuta que é só ansiedade, que talvez esteja exagerando, ou até que pode ser mania de perseguição. Mas quem vive essa realidade sabe reconhecer a violência cotidiana. E enquanto isso continuar acontecendo, a Psicologia seguirá mantendo uma dívida profunda com essas populações.Como você enxerga o impacto dessa desigualdade na saúde mental dessas comunidades?Antes de falar sobre saúde mental, é preciso entender que, para que um indivíduo possa construí-la, ele deve ter seus direitos garantidos. E muitas pessoas ainda não têm acesso nem mesmo ao básico: educação, alimentação, moradia digna e emprego. A ausência desses direitos impacta profundamente. O genocídio da população negra, sobretudo de homens e meninos, assim como o encarceramento em massa, afeta a saúde mental de comunidades inteiras. Por isso, não dá para discutir saúde mental sem considerar essas questões. O grande desafio é justamente este: pensar políticas públicas que assegurem condições reais de vida. Porque, antes de qualquer coisa, ainda estamos lutando por sobrevivência.
| Foto: José Simões | Ag. A TARDE
Quais são os temas mais recorrentes trazidos por essas populações durante os atendimentos clínicos?A questão racial e o enfrentamento ao racismo são pautas centrais. Também aparecem com frequência os impactos das desigualdades no ambiente de trabalho, além de conflitos familiares e religiosos. O avanço do fundamentalismo religioso, em especial, tem sido muito preocupante, pois vem oprimindo esses grupos de forma alarmante. Esses temas costumam estar no centro das demandas que chegam ao consultório, muitas vezes acompanhados de adoecimentos psíquicos, como transtornos de ansiedade e quadros de depressão que se desenvolvem ao longo do tempo.Como a clínica prepara a equipe para lidar com demandas complexas, marcadas por dores estruturais e questões sociais que muitas vezes ultrapassam o âmbito individual?Você nomeou este ponto de forma muito interessante. Muitas pessoas não compreendem que o problema da discriminação é coletivo. Elas acabam individualizando suas experiências, achando que estão falhando, que algo está errado nelas ou que não estão conseguindo viver corretamente. Quando, na psicoterapia e no cuidado, não se reconhece esse contexto, a pessoa carrega um peso desnecessário. Por isso, é importante destacar que os desafios são reais, difíceis e que a estrutura social está configurada dessa forma. Muitas vezes, investimos em processos de cuidado e psicoeducação que ajudam a tirar o indivíduo dessa narrativa única. Ao compreender o que é estrutural, sistêmico e as instâncias institucionais envolvidas, as pessoas sentem um alívio, percebendo que não são as únicas responsáveis pela situação. Elas dizem: “Não fui eu, a estrutura é que foi pensada para isso”. Infelizmente, é verdade, mas criamos estratégias para combater essas estruturas opressoras.Qual a importância de ter psicólogos negros atendendo pacientes negros, considerando que muitos acreditam que qualquer profissional está apto para cuidar de diferentes grupos sociais?
A importância de uma pessoa se ver refletida é um grande alívio para a tensão que carrega. Muitas pessoas negras que atendemos relatam ter passado por experiências anteriores com psicólogos brancos nas quais precisavam selecionar os temas a serem tratados. Ao sinalizar algum desconforto, sentiam-se silenciadas, como se aquele espaço não fosse adequado para discutir suas questões. Essa situação gera intimidação, especialmente diante da figura do profissional, que pode parecer analisar o paciente como um objeto de estudo. Acredito que o reconhecimento e a identificação com quem cuida trazem essa sensação de segurança, pois o profissional compreende as vivências e as estruturas que permeiam a vida do paciente. Esse ambiente gera conforto e promove o bem-estar para corpos que vivem em constante estado de alerta