Chuvas isolam comunidades, alagam plantações e deixam crianças sem ir à escola na região mais indígena do Brasil


Chuvas isolam comunidades e alagam plantações na região mais indígena do Brasil
Crianças sem aulas, plantações arruinadas, pontes destruídas e estradas tomadas por atoleiros. Esse é o cenário enfrentado por diversas comunidades indígenas em Uiramutã, cidade proporcionalmente mais indígena do Brasil, no extremo Norte de Roraima. Durante o período chuvoso do estado, que se estende de maio até setembro, as intensas cheias dos rios isolam comunidades inteiras, dificultando o acesso a serviços básicos como educação, saúde e transporte de alimentos.
🔎 Localizado na tríplice fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana, Uiramutã fica há 280 km da capital Boa Vista, e é o 10º mais populoso entre os 15 municípios do estado.
🛣️ A principal rodovia que leva a Uiramutã é a RR-171. Essa rodovia conecta o município à BR-433 e, consequentemente, à capital Boa Vista e outras regiões do estado. Fora da BR-174, o trajeto de Boa Vista até o município não tem asfalto, apenas estrada de barro, com buracos e lamas.
🔎 A região tem uma área territorial de 8.113,598 km². É lá onde está a maior parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ao todo, são 222 comunidades indígenas em Uiramutã. 96,60% da população se autodeclara indígena, ou seja dos 13.751 habitantes, 13.283 habitantes são indígenas.
Do total de moradores, 60% da população está isolada por conta das chuvas. A prefeitura do município chegou a decretar, no dia 11 de julho, situação de emergência quando o número de isolamentos chegou a 8.334 pessoas. Mas, de acordo com a Defesa Civil Estadual, todas as comunidades da região estão sofrendo com as cheias.
👉 No decreto, assinado pelo prefeito de Uiramutã, Tuxaua Benisio (Rede), foi levantado que 18 comunidades indígenas estavam isoladas pelas chuvas. A Coordenadoria Municipal de Defesa Civil, à época, identificou isolamentos nas comunidades:
Comunidades na vicinal Caracanã e outras como Serra do Sol, Área Única, Arikamã, Awendei, Baixo Mapae, Kumaipa, Manalai, Marasue, Pamak, Paranã, Pereimeitei, Pipi, Sauparú e polo Ingaricó: 5.611 pessoas;
Comunidade Água Fria: aproximadamente 990 pessoas;
Comunidade Mutum: 1.733 pessoas.
Mas, de acordo com o gerente de operações da Defesa Civil de Roraima, tenente-coronel Leonardo Menezes, o número de comunidades isoladas aumentou “consideravelmente”.
“Todas as comunidades indígenas da região estão passando por dificuldades. É uma área de acesso extremo, com estradas ruins, serras, pontes precárias, igarapés. Quando chove lá, a situação se agrava muito. Toda aquela região está em situação crítica”, disse o tenente-coronel.
Sede da cidade de Uiramutã, cidade proporcionalmente mais indígena do Brasil, onde nenhuma rua é asfaltada
Josivan Antelo/Rede Amazônica
O g1 percorreu quatro comunidades indígenas: Canapã, Barro, Makukem e Flexal — que não estão isoladas mas foram afetadas pelas chuvas — e ouviu lideranças que, entre lama e água, cobram providências.
O tenente-coronel destacou que a Defesa Civil estadual e a municipal produziram um relatório que foi enviado para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, para que a Defesa Civil Nacional decrete a situação de emergência a nível nacional.
Por meio de nota, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional informou que a Prefeitura de Uiramutã protocolou o relatório no dia 25 de julho. Atualmente, o pedido está em analise.
Carro leva indígenas para comunidade com ripas para improvisar uma ponte, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
O g1 procurou a prefeitura de Uiramutã e o Corpo de Bombeiros, questionou se há o interesse em se posicionar, mas não foi respondido até a última atualização desta reportagem.
Por meio de nota, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), responsável pela manutenção de rodovias federais, informou que acompanha regularmente a situação da BR-433. Disse ainda que não foi registrada nenhuma ponte danificada ao longo do trecho sob a administração desta autarquia. A manutenção preventiva da rodovia está programada para ser executada após o período chuvoso
Já a Secretaria de Infraestrutura (Seinf) de Roraima, responsável pela manutenção das vias estaduais, informou que as operações de manutenção de pontes e estradas na região estão temporariamente suspensas em razão das severas condições climáticas do inverno.
Duas empresas contratadas pelo governo do estado, responsáveis pela execução dos serviços, permanecem na região com o maquinário necessário, aguardando a melhora do tempo para retomar os trabalhos.
“O rigor do inverno tem causado a submersão de rios e pontes, além do alagamento de vicinais, inviabilizando temporariamente a continuidade das atividades de manutenção. A Seinf reforça que a segurança das equipes e a eficácia dos trabalhos são prioridades, e que a situação está sendo monitorada constantemente”.
Pontes de ‘madeira, machado e coragem’
Estrada alagada na entrada da comunidade Flexal, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Na comunidade Flexal, a 28 km da sede de Uiramutã, os 485 indígenas macuxi produzem feijão e mandioca (ou maniva, como é chamada pelos indígenas) para produção de farinha. A cada novo ciclo de chuvas e cheia dos rios no município, a história se repete na comunidade: pontes arrastadas pelas águas, estradas tomadas por lama, erosão e plantações ameaçadas.
Para chegar até a comunidade é necessário colocar carros e caminhões dentro de igarapés — já que não há mais pontes no trajeto e as que existem foram construídas pela própria comunidade. Apenas caminhonetes chegam no local.
Restos de ponte destruída pela água no caminho para a comunidade Flexal, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
É lá que fica localizada a Escola Estadual Tuxaua Pedro Barbosa, que atende 238 estudantes de 8 comunidades da região. Com a cheia dos rios e a situação das estradas, os alunos precisam ir a pé para a escola — ou, simplesmente, não vão.
Em Uiramutã há 66 escolas estaduais e 5.323 estudantes matriculados. A Secretaria de Educação (Seed) informou que está ciente da situação enfrentada pelo município do Uiramutã devido ao inverno rigoroso.
A Seed destacou ainda que até o momento o Departamento de Educação Escolar Indígena ainda não recebeu nenhuma notificação oficial das escolas sobre a paralisação de atividades letivas em razão das fortes chuvas ou transporte escolar.
Finalizou informando que está estudando um calendário escolar diferenciado para atender as instituições de ensino localizadas em comunidades indígenas da região.
Indígenas da comunidade Flexal em mutirão para tapar buracos causadas pelas chuvas na via
Arquivo Pessoal
No início do mês, a comunidade realizou um mutirão para tapar os buracos na estrada por conta própria (veja no vídeo acima). Para o tuxaua de Flexal, Abel Barbosa, de 59 anos, Flexal está refém das cheias dos rios e das chuvas.
“Quando a cheia vem, leva tudo. As pontes somem. A estrada desaparece. E a nossa produção fica encalhada”, resume.
Abel Barbosa, tuxaua da comunidade Flexal, em frente ao que estrou da plantação comunitária de mandioca
Caíque Rodrigues/g1 RR
A produção de feijão na comunidade diminuiu, hoje está focada na farinha, por conta da dificuldade em transportar itens mais perecíveis — como o feijão. A farinha está guardada, esperando as chuvas diminuírem para que seja transportada e vendida na sede da cidade.
Neste ano, na roça comunitária, os indígenas produziram 88 sacas e esperam chegar a 150. Mas com as estradas em péssimas condições, a possibilidade de perder tudo é real.
“A farinha pode estragar. A gente tem medo de perder o trabalho de meses porque o caminhão não chega. E quando vamos atrás da prefeitura, a resposta é sempre a mesma: quebrou o caminhão, quebrou a caçamba, estada tá ruim. E nada é feito”.
Farinha feita na comunidade Flexal não consegue ser vendida e fica estocada em depósitos da comunidade
Caíque Rodrigues/g1 RR
“Foi na força do povo. Nos juntamos e reconstruímos a ponte com madeira, machado e coragem. A estrada estava cortando pneu de carro, de moto. Ninguém chegava, ninguém saía”, afirmou o tuxaua.
‘Aqui, tudo é feito a pé’
Indígenas improvisam ponte para carro passar por igarapé na comunidade Barro, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Poucos metros da comunidade Flexal, há a comunidade Barro, que com 126 indígenas macuxi passam por problemas parecidos. A ponte que cortava o Igarapé Pequeno, que leva até o local, foi destruída pelas águas em 2024 e nunca foi reconstruída. O indígenas improvisaram uma nova ponte com ripas de madeira.
A rotina de crianças da comunidade foi interrompida pela falta da ponte. Sem transporte escolar, nem estrutura adequada, os estudantes estão há meses sem conseguir frequentar as aulas.
“Tem estudante que vinha da outra comunidade pra estudar no Flexal, mas agora não estão mais vindo. A ponte caiu e não tem como atravessar”, conta o tuxaua Ivanicio Barbosa, de 40 anos, liderança da comunidade Barro.
Ivanicio Barbosa, tuxaua da comunidade Barro, em frente ao local onde costumava ser a ponte da comunidade
Caíque Rodrigues/g1 RR
Ao todo, 60 estudantes vivem em Barro. Segundo o tuxaua, mesmo sem estrutura, a comunidade já reconstruiu a ponte quatro vezes com as próprias mãos. A comunidade chegou a solicitar da prefeitura de Uiramutã um barco para levar os estudantes até a escola, mas o pedido nunca foi atendido.
“A gente mesmo, com recurso do próprio bolso, vem tentando arrumar as pontes, tudo manualmente. A gente arruma, o carro volta a passar, mas logo o rio leva tudo de novo. E quem sofre são os alunos”, desabafou o tuxaua.
Local onde costumava ficar a ponte da comunidade Barro, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Em caso de emergência médica, a comunidade também não conta com transporte. “É só a pé mesmo. Se alguém passa mal, é andando que levamos. Aqui, tudo é feito a pé”, afirma Ivanicio.
‘A água passou e levou tudo’
Comunidade Makuken, em assembleia para discutir maneiras de lidar com as cheias, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Outra comunidade que sofre as consequências do período chuvoso do município é Makuken, que fica 17,7 km de distância da sede de Uiramutã. Lá vivem 172 indígenas do povo macuxi e a situação este ano foi ainda mais grave. A cheia levou quase toda a plantação comunitária de mandioca.
Quando o g1 foi até o local, a comunidade fazia uma assembleia que discutia soluções para remediar os estragos causados pela água. O tuxaua Cláudio Sousa Pereira, de 50 anos, comandava a reunião.
“Quando veio essa enchente, a água passou e levou tudo. A maniva ficou no fundo da água, morreu. E é com essa maniva que a gente faz a farinha. Isso deixou a gente muito preocupado, porque daqui pra frente vai faltar farinha. A gente depende disso”, contou ao g1.
Cláudio Sousa Pereira, tuxaua Makukem, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Segundo ele, a comunidade “se ajuda como pode”, dividindo o pouco que restou de alimento. Mas o cenário é incerto: o estoque de farinha pode durar até o fim do ano, depois, não se sabe.
“Se eu tenho um pouco de farinha, divido. Se outro tem feijão, reparte com a gente. Assim a gente vive. Mas agora vai ser difícil, porque todo mundo perdeu produção”, disse.
A esperança de recuperação é lenta. A mandioca, por exemplo, demora até dois anos para ser colhida. Com isso, a segurança alimentar da comunidade está em risco.
Local onde costumava ficar a plantação de mandioca da comunidade Makuken, tomada por capins após inundação
Caíque Rodrigues/g1 RR
“A produção rápida seria o feijão, mas agora já não dá mais tempo. E aqui ninguém tem bomba d’água, não tem irrigação. A gente só planta quando o inverno chega”, explicou.
Outro impacto direto da enchente foi na escola da comunidade, que atende 52 crianças. Segundo o tuxaua, as aulas estavam marcadas para recomeçar, mas se não houver merenda, as aulas podem ser suspensas.
“Isso me preocupa muito. Se nossos filhos não estudarem, quem perde são eles. Mesmo que falte merenda, a gente tenta mandar pelo menos um mingau de casa”, contou Cláudio.
Estrada para a comunidade makuken, no Uiramutã, Norte de Roraima
Josivan Antelo/Rede Amazônica
A comunidade também sofre com as estradas descritas como “péssimas”. No auge das chuvas, “ninguém entra e ninguém sai”, conta o tuxaua. Sem acesso, a chegada de assistência de saúde também é prejudicada.
“A água empoça, ficamos isolados. Todo ano é assim. Este ano a enchente foi forte. Parou tudo de novo”, relatou.
‘A gente aprende a conviver com a água’
Indígenas usam quadricíclo para locomoção em vias alagadas, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
A comunidade Canapã fica do outro lado do rio Maú — que divide o Brasil da Guiana. No lado guianense, os indígenas macuxi falam inglês, português e a língua nativa, mas é no lado brasileiro onde levam as crianças para estudar, trabalham e fazem compras. Ao todo, 264 indígenas vivem na comunidade.
E todos os anos, entre maio e setembro, a cheia do rio altera completamente a rotina deles e, por isso, ele se adaptam à realidade. Carros dão lugar à quadriciclos — que conseguem transitar em rotas submersas com mais facilidade –, e até uma balsa realiza o transporte no valor de R$ 50 para atravessar o rio onde, de acordo com os indígenas, deveria haver uma ponte.
Balsa faz transportes entre os dois lados do rio Maú, onde deveria ter uma ponte
Caíque Rodrigues/g1 RR
O rio Maú ainda não atingiu a máxima prevista, mas os indígenas se preparam. É o que explica o segundo tuxaua da comunidade, Charles da Silva, de 31 anos.
“Quando o rio enche demais, a balsa já não é segura. A gente passa só de canoa, e isso é perigoso, principalmente para as crianças que estudam em Uiramutã”.
Atualmente, mais de 20 alunos da comunidade estudam do lado brasileiro e precisam fazer a travessia diariamente. O percurso pode custar até R$ 100 por dia (ida e volta), dependendo das condições do rio.
Charles da Silva, 31 anos, segundo tuxaua da comunidade Canapã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Canapã também é passagem obrigatória para pelo menos 24 comunidades indígenas da região, sendo sete delas menores e ainda mais vulneráveis. O transporte de mercadorias e a mobilidade entre essas localidades dependem de quadriciclos e motos.
“O chão vira só lama, as pontes ficam submersas e o acesso pela estrada desaparece. Ficamos totalmente comprometidos”, afirma o segundo tuxaua.
Apesar das dificuldades, a Canapã se adapta. A preparação para a cheia faz parte da cultura local. Quando percebem que o nível do rio começa a subir, os moradores se organizam, reforçam estruturas e buscam rotas alternativas.
“A gente aprende a conviver com a água. Não tem outro jeito. Mas isso não quer dizer que está tudo bem. A dificuldade existe, principalmente com transporte e saúde”.

Período chuvoso
Carro entra dentro de rio para atravessar em via onde ponte foi destruída, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Roraima passa pelo período chuvoso que compreende o mês de maio até setembro. De acordo com o meteorologista da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), Ramon Alves, o nível do rio Cotingo — que passa pelo município e desagua nos outros rios e igarapés da região –atingiu 440 cm neste mês, considerado alto.
As chuvas foram fortes durante o mês mas, de acordo com Ramon, a tendência é diminuir.
“Lá vem chovendo bastante, sim. Mas agora a tendência é de diminuir as chuvas e, consequentemente, os rios também devem baixar”, explicou o meteorologista ao g1.
De acordo com o meteorologista, Roraima só tem uma única estação meteorológica automática, que fica em Boa Vista, logo não há como saber se Uiramutã choveu acima do esperado.
O g1 procurou o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Conselhor Indígena de Roraima (CIR), questionou se estão acompanhando a situação do município, mas não foi respondido até a última atualização dessa reportagem.
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