Igreja lucra com terras coloniais, enquanto terreiros lutam para sobreviver

A relação entre religião e a posse de terrenos no Brasil é curiosa. A Igreja Católica recebe, até os dias atuais, uma taxa chamada de laudêmio a cada vez que um imóvel é comercializado em alguns terrenos urbanos que eram de sua propriedade no período colonial. Mesmo que a posse da terra tenha mudado de mãos há décadas.Por outro lado, terrenos pertencentes a cultos afro-brasileiros sofrem constantes ameaças de invasão e violações, como aconteceu ao Terreiro da Casa Branca, que viu suas dependências serem ameaçadas pela construção irregular de um prédio em uma encosta vizinha.Primeiro templo não-católico a ser tombado pelo Iphan, a Casa Branca esteve sob ameaça da edificação clandestina por três anos, até a demolição da obra no segundo semestre do ano passado.Professor da Faculdade de Arquitetura da Ufba, Leo Name destaca ainda que na esfera do patrimônio cultural há diferenças no trato dos imóveis, a depender do credo. “Muitas vezes, os terreiros não são considerados patrimônio material, mas sim imaterial”, destaca Name.Em um artigo publicado em 2019 na revista acadêmica Epistemologias do Sul, em coautoria com Mabel Zambuzzi, Name aponta que as edificações de matriz europeia representam 99% do patrimônio material tombado, contra 1% de construções de matriz africana.A diferença na classificação de um bem como material ou imaterial pode ajudar a determinar o seu grau de conservação. Terreiros geralmente são registrados como patrimônio imaterial, sem tombamento. Diferente do que ocorre com igrejas católicas e fortes do período colonial.”O tombamento é meio que para sempre, não há como reverter. O registro de patrimônio imaterial precisa ser renovado de tempos em tempos e é uma proteção bem mais frágil”, compara Name, que é um dos organizadores da Escola Brasileira de Pensamento Decolonial junto com o professor João Pena, da Uneb, e que acontece em Salvador de 25 a 30 de agosto.”O projeto da escola surgiu em 2024, quando a gente se deu conta de que este ano estamos comemorando o centenário de Frantz Fanon e 90 anos de Lélia González”, explica Pena, doutor em urbanismo e professor da Uneb. O martinicano Fanon e a mineira Lélia são duas referências nos estudos sobre decolonialidade. Um tema que começou a ganhar corpo na América do Sul a partir de 2009, inclusive com um núcleo de pesquisadores da Universidade da Integração Latino-americana (Unila).Leo Name, que ensinava na Unila, tornou-se coordenador do grupo de pesquisa Decolonizar a América Latina e seus Espaços (Dale) e, ao ser transferido para a Ufba, trouxe o projeto para Salvador. “É uma discussão que a gente já faz no grupo, que tem como elemento central o debate sobre raça. E já havia um entendimento sobre trazer a questão para o Brasil e o enegrecimento da epistemologia decolonial, a partir de nossa história”, afirma Pena.A programação do evento, que acontece na Uneb e na Ufba, pode ser vista no site escoladecolonial.org. O projeto deve acontecer a cada dois anos, em diferentes cidades. A edição de 2027 será, provavelmente, em uma cidade mineira, em função do grande envolvimento de acadêmicos daquele estado com o projeto.Tema a ser explorado é o que não falta. A experiência da colonização, juntamente com a tragédia da escravização de pessoas, deixou suas marcas em virtualmente todas as áreas da vida social brasileira. Na organização do trabalho, na segurança pública ou mesmo na moda, área de interesse da antropóloga paulistana Mi Medrado, pesquisadora líder do Núcleo de Pesquisa de Ciências Sociais em Moda (CiSoM) e diretora do Research Collective for Decoloniality and Fashion.

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RepensarA acadêmica considera que, no seu campo de atuação, um exercício da decolonialidade é construir dimensões críticas pautadas na ideia de que raça e poder administram a estética. “Do ponto de vista decolonial, a gente quer repensar a moda a partir de uma multiplicidade de possibilidades, em vez de uma estrutura normativa, que reivindica falsamente uma universalidade”, afirma a antropóloga, que também edita o fanzine Decolonialize Fashion.Como referencial teórico, a acadêmica menciona o diálogo da sua pesquisa com a escritora e psicóloga portuguesa Grada Kilomba e com a sua conterrânea Cida Bento, autora do livro O pacto da branquitude. E também opina, na prática, sobre o que observou em Salvador.”O que eu vejo na sociedade soteropolitana são ações de resistência e contraposição do universal”, afirma a pesquisadora, que cita a exposição Dona Flor e outras joias negras, no Museu de Arte Contemporânea de Salvador, como exemplo.”É uma história que não está escrita ainda em nenhum livro de design, ainda não foi ensinada em nenhuma escola de moda, mas cria ferramentas e referências políticas para que a gente crie narrativas e retire desses lugares o silenciamento”, afirma a antropóloga.

A pesquisadora Mi Medrado

|  Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE

Mi, que termina no ano que vem seu doutorado em antropologia pela Ufba, está tentando responder como desfazer os nós coloniais do presente. O tema do seu doutorado na Bahia é O sistema de moda em Luanda-Angola – Estética, raça, e política econômica Sul-Sul.Uma das preocupações da acadêmica é fazer, a partir da Bahia, um contraponto teórico ao seu outro doutorado-sanduíche, na Universidade da Califórnia/Los Angeles, onde investiga o efeito dos figurinos das telenovelas brasileiras na moda angolana. “É um trabalho feito a partir da pesquisa que eu estou conduzindo em Luanda, de processos criativos e da circulação comercial na cidade”, explica a antropóloga.No evento, Mi conduz um minicurso sobre moda e decolonialidade. “A Escola Brasileira de Pensamento Decolonial tem uma grande importância, como parte das iniciativas soteropolitanas que promoverá uma série de atividades para fomentar a desaprendizagem do legado racista em territórios amefricanos”, afirma.Amefricanidade, aliás, é o termo cunhado por Leila González para evidenciar as experiências das pessoas negras e indígenas nas Américas, em contraposição ao colonialismo. “É muito fácil a gente relacionar o trabalho dela com o conceito de decolonialidade’, afirma a professora carioca Thula Pires, que vai falar sobre a intelectual mineira no projeto.Racismo por denegaçãoFoi Leila que criou o conceito de racismo por denegação, que traduz uma característica de sociedades que não reconhecem suas práticas racistas e, consequentemente, não enfrentam o racismo. “Havia um discurso forte contra o imperialismo orientando o trabalho de Leila, em torno do que hoje é a decolonialidade”, afirma Thula, doutora em direito constitucional e professora da PUC/Rio.Encarregado de falar sobre Fanon no seminário, o professor paulistano Deivison Mendes Faustino avalia que o centenário intelectual martinicano ainda é muito atual: “Quando ele escreveu, a revolução estava na ordem do dia, se apresentava como possibilidade concreta. Havia uma ascensão da luta em todo o mundo”.No Brasil, a independência não resultou no fim do colonialismo. “Como dizia Florestan Fernandes, a nossa descolonização foi interrompida por uma classe dominante que foi incapaz de levá-la às últimas consequências”, afirma Faustino, que faz a palestra de abertura do seminário justamente sobre Frantz Fanon.Deivison remarca que ao romper com Portugal as elites brasileiras mantiveram a estrutura local de poder, baseada na escravidão, no latifúndio e na subserviência à Inglaterra.Ao ressaltar que o processo de independência nacional foi anterior ao período revolucionário na África nos anos 1960, e sem a mesma pulsão de guerra, o professor considera que no Brasil atual a margem de um novo horizonte político se estreitou muito. “Hoje você tem uma esquerda que não almeja mais a superação do capitalismo, como na época do Fanon. Ela almeja, no máximo, gerir melhor o capital do que a direita. A esquerda quer ser gestora dos conflitos e não intensificá-los até a sua superação”, pontua Deivison, que é doutor em sociologia e professor da USP.Psiquiatra, filósofo e ativista político, Fanon morreu precocemente, aos 36 anos, vítima de leucemia. Mas escreveu livros que influenciariam a luta anticolonialista em diferentes partes do mundo, desde a Palestina, ocupada pelos ingleses e, desde 1948, em crescente perda de território para o Estado de Israel, até a América Latina.Pele negra

|  Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE

Entre as obras mais famosas de Fanon estão Os condenados da terra e Pele negra, máscaras brancas. Fanon deixou um farto legado, uma obra teórica que dialoga com diversas áreas. “Pele negra, máscaras brancas traz elementos para pensar a filosofia, a psiquiatria e os estudos culturais. Mas também traz elementos para implodir essas fronteiras entre as disciplinas”, afirma o professor.Vários estudos acadêmicos comparam Fanon ao seu contemporâneo indiano Mahatma Gandhi, líder pacifista, no que concerne ao uso da violência na luta contra o colonialismo.Em 2020, o livro Pele negra, máscaras brancas, publicado pela Edufba (2008), com tradução de Renato da Silveira, foi um dos mais vendidos da editora. Também em 2020, a editora baiana Segundo Selo publicou um livro com duas peças teatrais de Fanon: O olho se afoga / Mãos paralelas.Uma outra preocupação dos organizadores do seminário é que a o ensino da história afro-brasileira seja difundido nas universidades. “Esse currículo já é obrigatório no ensino básico por lei federal. Mas quem vai dar o conteúdo no ensino básico? No ensino superior, não há uma lei que obrigue o ensino de cultura e história afro-brasileira”, afirma João Pena.

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