Ainda hoje, quando Salvador resolve se comportar de maneira fria, melancólica e carrancuda, e de sua parte superior lança sobre nós o forte ruído provocado por descarga elétrica na atmosfera, eu sinto o medo inaugural da forma de vida que me constitui. Quem, diante da sensação de perigo ou ameaça, não sente a inquietação que atravessa os tempos? A memória, como um telescópio, me ajuda a observar as coisas distantes, no tempo e no espaço, por meio das incontáveis experiências humanas
Quando Paulo Mendes Campos escreveu “Um homem liberto”, eu nem era nascido. O que importa? Já acomodado dentro de um trem que flutua, cujo destino eu desconheço, escuto suas palavras. Evidentemente, não só as suas palavras. Também as de gente que se parece comigo, como se nossas aflições e anseios fossem gêmeos univitelinos. As conversas coexistem e variam, com dilemas e consensos, em suas sonoridades e escolhas lexicais. A língua viva porque estamos vivos e a usamos para comunicar o que quer que seja, para nos fazer entender. Eis o desafio maior da vida. Penso nisso e me vem a sensação de formigamento na cabeça.
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Desde muito cedo, aprendi a desconfiar do mundo. Talvez por isso não goste de oferecer um otimismo infundado. A vida é mesmo cheia de males. Não gosto de aprender pelo sofrimento. A cada estação, me pergunto o que estou fazendo aqui. Busco coragem e força para ser compreensivo e empático na breve jornada. Afinal, eu tenho poucas respostas e muitas dúvidas. Mesmo que o mundo pareça interminavelmente agitado, procuro cultuar a capacidade de manter a calma. Não é fácil.
Inventamos fronteiras. Aqui e ali, explodem luzes que provocam entusiasmo e desespero. Como um movimento primeiro, mas permeado de milhares de outros, olho para cima e, em meio à fumaça que sai do trem, penso nas palavras de Wislawa Szymborska: “Oh, como são permeáveis as fronteiras dos países / Quantas nuvens flutuam impunemente sobre elas”. Acho que aqui reside a medida do encantamento. Assim como a crônica, a poesia tem a capacidade de nos fazer olhar ao rés do chão. A poeta polonesa segue com seus versos: “Entre os inúmeros insetos, me limitarei à formiga / que entre a bota esquerda e a direita do guarda / não se sente obrigada a responder à pergunta [de onde? para onde?”
Parece que é isso: leio um pouco mais para educar meus medos.*Evanilton Gonçalves é autor de Ladeira da Preguiça (Todavia)