O que ‘terapeuta de ricos’ aprendeu sobre felicidade ouvindo os problemas dos milionários


Terapeuta de ricos em Nova York usa seriado Succession (acima) como exemplo de que excesso é tóxico para milionários
Cortesia/HBO
Desde que se especializou em atender pacientes milionários, o psicoterapeuta americano Clay Cockrell afirma que desistiu de tentar, ele próprio, enriquecer.
“Eu parei de jogar na loteria. Percebi os perigos de se ter tudo em excesso.”
Cockrell, que tem uma clínica de terapia em Nova York (EUA), conta que tenta ajudar seus clientes a lidar com o que o chama de “efeito tóxico da abundância”: a ideia de nunca se ter o suficiente.
“Aquela ideia de que ‘quando eu tiver US$ 10 milhões, vou estar seguro’. E daí você chega aos US$ 10 milhões, e percebe que, na verdade, precisa de US$ 50 milhões. A conclusão é que a felicidade não vai vir da conta bancária. Simplesmente não vai”, diz Cockrell em entrevista à BBC News Brasil.
“[Esse comportamento] tem um certo grau de vício. Porque os US$ 50 milhões não serão suficientes, e daí ‘vou precisar de US$ 100 milhões, US$ 250 milhões’.”
Um dos ângulos da terapia, portanto, é ajudar os pacientes a identificar propósitos que vão além de acumular dinheiro.
“Se a felicidade não está em uma cifra, está onde? E a partir disso começamos a experimentar. Está na filantropia? Está nos relacionamentos? Está em construir algo novo, do zero? Ter ambição é ótimo, mas desde que analisada e alinhada com um porquê.”
Cockrell se especializou em atender os super-ricos por acaso, depois que um paciente de altíssima renda gostou de seu estilo — o terapeuta faz suas sessões durante caminhadas pelo parque, em vez de dentro de um consultório — e o indicou para outras pessoas desse círculo.
E o próprio terapeuta se surpreendeu com os problemas trazidos pela riqueza — até os que são desdenhados como “problemas de primeiro mundo”.
“Assim como muitas pessoas, eu acreditava que o dinheiro solucionava problemas. Ele soluciona alguns, mas não todos. Muitos dos meus clientes dizem que terapeutas anteriores ouviam as queixas deles e respondiam: ‘Você não deveria tratar como problema coisas como onde estacionar seu iate ou como resolver a herança dos seus filhos’. Mas sempre acreditei em uma abordagem de compreensão e aceitação, de achar que os problemas deles são legítimos”, disse.
“Podem não ser os mesmos problemas que os meus, mas agora sei que dinheiro é um fator complicador na vida das pessoas.”
Essa, Cockrell ressalta, é a experiência de uma parcela ínfima da população global.
Para a maioria, questões relacionadas à escassez — e não à abundância — de dinheiro é que são fatores complicadores.
Um exemplo: uma pesquisa da Associação Britânica de Psicoterapia apontou que quase todos (94%) os terapeutas do país identificaram que a saúde mental de seus pacientes havia piorado por causa de preocupações financeiras e alta no custo de vida.
Especialistas explicam que a sobrecarga mental de fazer o dinheiro “render” até o fim do mês impacta nossa tomada de decisões e desempenho cognitivo.
Clay Cockrell tem uma clínica de terapia em Nova York que se especializou no atendimento a milionários
Reprodução
Dificuldades de relacionamento
De volta aos super-ricos, Cockrell faz a ressalva de que conhece tantos deles infelizes porque sua amostra é, naturalmente, enviesada: “pessoas não procuram terapeuta quando estão felizes”.
Mas ele aponta que “as pessoas que eu atendo são aquelas em que o dinheiro complicou sua vida e trouxe alguma negatividade, (…) falta de empatia, falta de capacidade de compreender quem não alcançou o mesmo nível de sucesso.”
Na mesma linha, ele diz que super-ricos acabam desenvolvendo dificuldades de relacionamento na família, tendem a se desconectar do mundo real e sentem muita desconfiança em relação a pessoas que se aproximem deles.
“Pessoas ricas costumam interagir apenas com quem consiga entendê-las. Isso é muito comum. E o que acontece é que elas ficam muito, muito isoladas e desconfiadas de pessoas novas”, diz.
“O medo é ‘será que você está entrando na minha vida só pelo que posso fazer por você? Por causa do meu status de celebridade, ou da minha riqueza?’. Talvez paranoia seja uma palavra forte, mas existe muita suspeita — e isso impede que novas relações sejam formadas.”
Série Succession mostra disputa de poder entre família multimilionária
Cortesia/HBO
Vida de herdeiro
E passar a infância e adolescência em uma família endinheirada traz também seus desafios.
“Os pais costumam querer poupar os filhos das dificuldades que eles próprios enfrentaram e dar-lhes uma vida mais fácil. Isso é normal. Mas é preciso perceber que superar as dificuldades foi o que fez você ser como é”, diz o terapeuta.
“Além disso, quando você expõe seu filho criança ou adolescente a esse mundo de jatinhos particulares, restaurantes maravilhosos e férias em lugares incríveis, quando ele tiver 21 anos vai ter a sensação de ‘já vi tudo, já provei tudo’ e se sentirá entediado. E daí começará a testar limites, seja com uso de drogas ou comportamentos de risco, para sentir a adrenalina. Só para ter a sensação de que está fazendo algo novo.”
Cockrell também observa que filhos de super-ricos sofrem “uma enorme pressão para se saírem melhor do que seus pais”, em especial os que seguem a mesma carreira que os pais — como celebridades do mundo do entretenimento, chamadas pejorativamente de nepobabies.
“É uma grande pressão, que contrasta com [a ideia de] percorrer um caminho próprio, descobrir as próprias paixões e ter direito a errar e fracassar. Em contrapartida, muitos também sofrem com a falta de ambição. ‘Para que eu vou cursar faculdade ou começar meu próprio negócio?’ Ter tanta riqueza pode ser deprimente, seja porque você deixa de ter propósito, seja porque você está sempre pressionado a se sair melhor do que os seus pais.”
Fascínio por super-ricos
Aliás, Clay Cockrell ganhou mais destaque nos últimos anos justamente escrevendo sobre os paralelos da sua prática com a série Succession (2018-2023), que mostra as disputas de uma família multimilionária para controlar o conglomerado midiático criado pelo patriarca.
“A série é bem correta” ao retratar o “efeito tóxico do excesso” sobre os multimilionários, apesar das licenças dramáticas, avalia Cockrell.
Parte do sucesso de Succession se deve ao fato de que super-ricos costumam despertar desde fascínio até desdém, a depender do interlocutor.
Bilionários tornaram-se ídolos, ganharam enorme influência política e têm, para alguns, o status de visionários e inovadores. Mas, para outros, viraram símbolos de um sistema fiscal global considerado injusto, que críticos dizem favorecer a concentração de renda às custas da população mais pobre.
Quando o bilionário Jeff Bezos organizou uma suntuosa cerimônia de casamento no centro de Veneza (Itália), em junho, por exemplo, foi recebido com manifestantes com cartazes queixando-se que “se você tem dinheiro para alugar Veneza, tem dinheiro para pagar mais impostos”.
O casamento acabou sendo transferido para fora do centro da cidade.
A organização britânica Oxfam calcula que a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo dobrou desde 2020, “enquanto a riqueza de cinco bilhões de pessoas caiu”. É o que a ONG chama de “crise de desigualdade”.
Clay Cockrell diz que seus pacientes ultrarricos estão cientes dessas diferentes percepções sobre eles.
“É algo que vai e vem em ciclos: há momentos em que a sociedade admira os mais ricos como pessoas que trabalharam duro, e há momentos em que isso muda e se converte em sentimentos negativos, de que eles conquistaram tudo por meios nefastos. Muitas dessas pessoas são incrivelmente inteligentes, batalhadoras e conquistaram coisas admiráveis em suas vidas. Às vezes elas são admiradas e às vezes, vilipendiadas. E elas se sentem muito confusas quanto a isso.”
Para as pessoas “comuns”, Cockrell acha que o maior aprendizado da sua prática é não acreditar que se tornar milionário é o segredo da felicidade.
“Para o restante de nós que acreditamos que ‘se eu conseguir aquele aumento, se eu trabalhar ainda mais, vou ser feliz’, veja as pessoas que têm tudo: elas não estão felizes. E isso nos desafia a pensar: então o que vai me trazer felicidade e alegria? É nisso que está o valor. É nos relacionamentos, na família, na contribuição que fazemos para a comunidade. É daí que virá a felicidade.”
As vantagens e os perigos da terapia por ChatGPT
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