Como investigadores da Força Aérea recriaram voo da Voepass para entender causas da queda


Tragédia da Voepass: vídeo mostra como foi acidente de avião em Vinhedo
Em um voo experimental na França, um ATR 72 pilotado por investigadores da Força Aérea Brasileira percorreu o céu com um único propósito: ajudar a desvendar as causas da queda de uma aeronave idêntica em Vinhedo (SP), em agosto de 2024, matando 62 pessoas.
A França não foi escolhida por acaso. É lá que fica a sede da ATR, fabricante do modelo, que mantém aeronaves próprias para treinamentos e estudos aerodinâmicos. Só que, dessa vez, a missão era complexa: recriar, com precisão, as condições e os fatos que levaram à tragédia do voo 2283 da Voepass.
Nessa etapa, os investigadores do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) precisaram chegar ao limite. Durante o voo, eles conseguiram aproximar a aeronave da velocidade de estol (ou perda de sustentação) e, depois, atingiram o “limiar” dessa condição.
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“O objetivo foi analisar, com precisão, o comportamento aerodinâmico da aeronave e avaliar sua reação e capacidade de recuperação em situações de stall [perda de sustentação]”, explicou o Cenipa ao g1, em nota.
No ar, os investigadores queriam entender como o avião se comporta em velocidades próximas à perda de sustentação. O foco estava em dois instantes gravados pelas caixas-pretas: quando soaram os alarmes Degraded Performance e Cruise Speed Low, sinalizando queda de desempenho e baixa velocidade de cruzeiro, respectivamente.
No voo 2283, esses dois alarmes soaram e piscaram na cabine menos de três minutos antes de a aeronave perder o controle. Segundo o relatório preliminar do Cenipa, no mesmo momento em que os alertas eram emitidos, a tripulação se comunicava com o controle de tráfego aéreo e em nenhum instante declarou emergência.
Destroços de avião em Vinhedo
Miguel Schincariol/AFP
Do céu ao solo
Ainda na França, na sede da ATR, os investigadores recorreram a um simulador da própria fabricante para reproduzir, com exatidão, o voo do dia do acidente. O objetivo era entender como os pilotos perceberam e reagiram:
às condições meteorológicas;
às tarefas rotineiras de comunicação na cabine (entre eles, a torre de controle e a tripulação); e
à combinação de alertas sonoros e visuais emitidos durante o trajeto.
“Foram simulados o tempo necessário para consulta e execução do checklist, recomendado pelo fabricante da aeronave para cada tipo de procedimento. […] A análise considerou, também, as condições da aeronave, incluindo o acúmulo de gelo em sua estrutura e o impacto desse gelo na degradação de sua performance aerodinâmica”, detalhou a Força Aérea.
Mais do que repetir os movimentos e ações, os voos recriados buscavam responder a perguntas como: as ações dos pilotos foram, realmente, as mais adequadas? Algum procedimento ou tarefa dentro da cabine influenciou a atenção e o foco da tripulação?
Essas simulações – tanto no ar quanto no solo – foram guiadas pelas informações obtidas das caixas-pretas, resgatadas do local da queda no dia do acidente e recebidas pelo laboratório do Cenipa em Brasília (DF) no dia seguinte:
o Cockpit Voice Recorder (CVR), que registra comunicações e sons da cabine; e
o Flight Data Recorder (FDR), que registra parâmetros técnicos.
Apesar da importância das caixas-pretas na reconstituição de voos, elas não são o único elemento usado para decifrar um acidente. “As atividades conduzidas pelos investigadores abrangem diversas atividades e avaliações complexas nos fatores operacionais, humanos e materiais de uma ocorrência aeronáutica”, frisou o Cenipa.
Caixa-preta da aeronave que caiu em Vinhedo (SP)
Divulgação/FAB
Cooperação internacional
Desde o dia do desastre, a investigação contou com a participação de órgãos de investigação e fabricantes estrangeiros, incluindo:
a própria ATR;
o Escritório de Investigações e Análises para a Segurança da Aviação Civil da França (Bureau d’Enquêtes et d’Analyses pour la Sécurité de l’Aviation Civile, BEA, em francês); e
o Conselho de Segurança nos Transportes do Canadá (Transportation Safety Board, TSB, em inglês), país onde os motores da aeronave foram fabricados.
Segundo a Força Aérea, esse procedimento de cooperação é adotado “especialmente quando, após esgotadas as possibilidades de análise no Brasil, torna-se necessário utilizar recursos e instalações do próprio fabricante”, que tem equipamentos e técnicas especializadas exclusivos.
Os voos feitos na França, no entanto, são apenas uma pequena parcela de uma investigação complexa e multidimensional. Com 75% dos trabalhos concluídos, o Cenipa agora caminha para a divulgação do relatório final que deve apontar as causas da queda em “parafuso chato” do voo 2283.
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O que já foi feito?
Coleta de dados no local do acidente;
Extração e análise do gravador de vozes de cabine e de dados de voo no laboratório do Cenipa, em Brasília (DF);
Reconstrução gráfica do voo, incluindo análise de desempenho da aeronave, atuação nos comandos de voo, alertas e alarmes emitidos e dinâmica do acidente;
Análise dos exames anatomopatológicos de todos os ocupantes da aeronave;
Análise dos exames médicos dos pilotos;
Exames de ambos os motores da aeronave;
Exames dos componentes responsáveis por monitorar e controlar diferentes sistemas da aeronave, incluindo o sistema pneumático de degelo;
Exames e testes das válvulas distribuidoras duplas recuperadas dos destroços, que compunham o sistema pneumático da aeronave e eram responsáveis por abrir e fechar a passagem de pressão e vazão pneumática para as câmaras A e B dos boots das asas;
Testes do sensor do detector de gelo, instalado no intradorso da asa esquerda. O sensor indicava aos pilotos que a aeronave estava em condições propícias à formação de gelo por meio do acendimento da luz âmbar ICING no painel da aeronave;
Exames dos componentes do computador responsável pela aquisição e gerenciamento de dados digitais relacionados ao desempenho da aeronave, além do armazenamento de dados relacionados à manutenção do avião;
Exames dos filamentos de 34 lâmpadas dos diversos painéis da aeronave, com o objetivo de determinar se as luzes estavam acesas ou apagadas no momento do acidente;
Exames, testes e pesquisas no atuador do componente do sistema de proteção contra estol que atuava nas colunas de comando de voo da aeronave;
Exames, testes e pesquisas no sensor de posição que era responsável por medir o ângulo de atuação do profundor esquerdo;
Entrevistas com profissionais da Voepass, incluindo mecânicos, despachantes e pilotos;
Entrevistas com familiares dos tripulantes;
Análise de mais de 15 mil voos realizados por aeronaves da frota da Voepass, com o objetivo de identificar padrões operacionais, principalmente em condições de formação de gelo semelhantes às encontradas no voo do acidente;
Análise meteorológica completa, incluindo dados de satélite, radiossondagens e cartas SIGWX, que indicam áreas com fenômenos meteorológicos potencialmente perigosos para a aviação, como tempestades, turbulência, gelo e frentes atmosféricas;
Estudo específico de medição da severidade das condições meteorológicas presentes no dia do acidente;
Sessões em simuladores de voo do modelo da aeronave acidentada com o objetivo de familiarizar os investigadores com os sistemas embarcados, bem como com as condições enfrentadas pela tripulação no dia do acidente;
Realização de voo experimental em aeronave de ensaio do mesmo modelo da acidentada, para familiarizar os investigadores com as características aerodinâmicas relacionadas ao estol em condições reais;
Revisão documental e técnica, incluindo registros de manutenção, prontuários médicos, escalas operacionais, capacidades de manutenção, visitas técnicas, entre outros.
Quais são os próximos passos?
Conclusão das análises técnicas pendentes;
Elaboração da minuta do relatório final, incluindo as recomendações de segurança a serem emitidas;
Envio da minuta do relatório final aos países de fabricação da aeronave (França), e de fabricação dos motores (Canadá) para comentários;
Análise dos comentários enviados pelos dois países;
Emissão do relatório final de investigação;
Divulgação do relatório final.
O que diz a Voepass
Em nota, a Voepass informou que a queda do voo 2283 foi “o episódio mais difícil” da história da companhia e que, um ano após a tragédia, segue “solidária às famílias das vítimas”, mantendo “suporte psicológico ativo” e apoiando homenagens realizadas ao longo do período.
Também afirmou que somente o relatório final do Cenipa poderá apontar, de forma conclusiva, as causas do ocorrido.
A empresa destacou que “sempre atuou cumprindo com as exigências rigorosas que garantem a segurança” das operações e que a frota “sempre esteve aeronavegável e apta a realizar voos”, conforme padrões internacionais.
A companhia também afirmou que colabora com as investigações em andamento e reafirmou compromisso com a apuração dos fatos e com “a melhoria contínua nos processos de segurança da operação aérea”.
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