Tribunais do crime: quando o poder paralelo substitui a justiça

“Uma pena é um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência.” Citação de Thomas Hobbes em sua obra mais clássica, Matéria, Palavra E Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, também popularmente conhecida como Leviatã.No Brasil de hoje, a lei nem sempre começa no papel do Estado. Em bairros e comunidades dominadas pelo crime organizado, o primeiro código a ser cumprido é o das facções. Nessas regiões, o que se conhece como “tribunais do crime” substitui o Judiciário: sequestram, julgam, aplicam tortura e até executam aqueles que desrespeitam regras impostas por essas organizações.Como funcionam os tribunais do crimeO sistema é baseado em hierarquia e disciplina interna. Crimes comuns, como roubo e furto, ou transgressões mais graves, como abuso sexual, podem resultar em punições definidas pela facção. Mas nem sempre a gravidade do ato é o que determina a sentença: a violação de regras sem autorização do comando criminoso é suficiente para ser julgada.Além disso, os tribunais miram rivais e moradores de bairros sob domínio adversário, bem como os chamados “X9”, pessoas que entregam informações à polícia ou à imprensa. Cada decisão segue um protocolo informal de julgamento, que varia de advertências até espancamentos, mutilações e morte. Em casos de mulheres, por exemplo, cortar o cabelo pode ser usado como forma de despersonalização.A origem e expansãoEsses tribunais surgiram dentro de presídios como forma de controlar conflitos entre detentos e impor regras de conduta. Nos anos 2000, com o crescimento do tráfico, essa prática extrapolou as grades e se espalhou para comunidades dominadas por facções como PCC e Comando Vermelho (CV). A partir desse momento, a “justiça paralela” passou a regular comportamentos cotidianos, preenchendo lacunas deixadas pelo Estado.Casos que chocaram SalvadorO Caso “Cê sabe”, no início deste ano, envolveu Ian Lucas Barbosa de Jesus, 20 anos, sequestrado após curtir uma festa em território rival. Vídeos mostraram o jovem sendo ameaçado por homens armados, e horas depois seu corpo foi encontrado na rua Mocambo, no bairro Trobogy.Outro episódio envolveu Thiago Tavares, jovem com epilepsia e integrante de uma igreja evangélica, sequestrado após entrar por engano em uma área controlada por traficantes. Em gravações divulgadas pelos criminosos, Thiago aparecia confuso, sem compreender o motivo do sequestro.Justiça paralela ou instrumento de terror?Os tribunais do crime não se limitam a punir desvios internos da facção; eles regulam comportamentos, consolidam poder e espalham medo. Nas áreas onde atuam, esses sistemas se tornam a primeira referência de ordem, muitas vezes antecedendo a presença do Estado, definindo quem pode viver, o que é permitido e qual será o destino daqueles que descumprem suas normas.
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