Qual o peso de nascer no bairro em que você nasceu para a sua trajetória? E das condições socioeconômicas da sua família?
O economista Michael França, 37 anos, nasceu e cresceu no bairro Costa Teles 1 em Uberaba, Minas Gerais. Filho de uma trabalhadora doméstica que estudou até o primeiro colegial, França se tornou doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e foi pesquisador visitante em universidades como Columbia e Stanford.
Sua biografia poderia ser lida como uma narrativa clássica de ascensão pela educação. Mas, ao pesquisar as desigualdades sociais, França percebeu que a realidade é mais complexa.
Embora reconheça que o estudo abra portas, ele mostra em sua pesquisa que a escolaridade, sozinha, não basta para compensar o peso de fatores como gênero, raça e lugar de nascimento. Esse conjunto de circunstâncias é o que chama de “loteria do nascimento”.
“Pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante. Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre”, afirma.
Na USP, França foi o único aluno negro de sua turma de mestrado e doutorado. “Se eu soubesse lá atrás o quão rara era aquela minha presença ali, talvez tivesse desanimado. Talvez eu não teria me esforçado”, afirma o pesquisador.
Nas últimas décadas, o avanço das políticas públicas afirmativas nas universidades mudou a cara das universidades no Brasil. O Programa Universidade para Todos (Prouni), por exemplo, completou 20 anos em 2025, custeando a formação de 3,5 milhões de estudantes em todo o país.
Mas o economista, hoje coordenador do Núcleo de Estudos Raciais (Neri) do Insper, defende que isso ainda não foi suficiente para alterar, de fato, a desigualdade da sociedade brasileira.
“A expectativa é que quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda, começará a acumular riqueza e romperá o ciclo. Mas não é bem assim”, diz.
“Existe a ideia de que a desigualdade existe porque não há educação de qualidade — e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos.”
França, que já venceu o Prêmio Jabuti Acadêmico, lança nesta quarta-feira (20/8) o livro A Loteria do Nascimento: filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico (Editora Jandaíra), em São Paulo. A obra é em coautoria com o sociólogo Fillipi Nascimento.
Abaixo, confira a entrevista com o pesquisador.
BBC News Brasil – O que é a “loteria do nascimento”?
Michael França – A loteria do nascimento é a ideia de que as circunstâncias pelas quais você nasceu — o local, a família, o gênero, a raça — influenciam nas chances e oportunidades que você vai ter na vida.
Isso é bem documentado pela literatura empírica, aquela baseada em dados e análises estatísticas robustas. Há muitos estudos nos Estados Unidos, mas também no Brasil e na Europa.
Esses estudos mostram que, por mais que as pessoas queiram colocar o esforço como determinante central, ele ajuda, mas só até determinada parte dos resultados que você vai atingir na vida. Porque, dependendo do local em que você nasce, do seu gênero, sexualidade, raça ou classe socioeconômica, isso vai afetar seus resultados.
Claro, se você tem um irmão gêmeo, vindo de uma situação muito semelhante, é evidente que aquele que se esforçou mais tende a ter resultados melhores nas áreas em que se dedicou. Isso gera o que alguns estudiosos chamam, no debate sobre desigualdade, de desigualdade justa: as oportunidades são parecidas e as diferenças vêm das escolhas e do esforço de cada um.
Mas, no caso brasileiro, grande parte da desigualdade é injusta, porque os indivíduos têm pontos de partida muito diferentes. Esses pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante.
Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre.
Por mais que essa mulher se esforce, a chance de ela atingir determinados resultados será mais baixa. Não quer dizer que ela não vá conseguir, mas terá que colocar muito, muito mais esforço.
BBC News Brasil – O subtítulo do livro traz o título de uma coluna sua na Folha: “Filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico”. Pensando nas políticas públicas que tivemos nos últimos anos, que melhoraram alguns acessos, como ao das universidades, quais são ainda os obstáculos para a mobilidade social no Brasil?
França – Escrevi esta coluna na Folha justamente com esse nome e ela viralizou quando publiquei, especialmente no LinkedIn. Percebi que havia ali um certo sentimento de frustração.
Nos anos 1980 e 1990, as universidades no Brasil eram o parque de diversões das elites, basicamente. Não havia tantas universidades, a porcentagem da população com ensino superior era muito baixa e o prêmio salarial para quem tinha diploma era muito alto. A ideia era que, se você tivesse ensino superior, estaria em outro patamar de status na sociedade, já que era algo escasso.
Nos anos 2000, se inicia um processo de democratização, com a construção de mais universidades públicas, a criação de muitas privadas (mesmo de baixa qualidade), programas como Prouni e Fies, e as ações afirmativas das cotas. Muitos indivíduos de origens desfavorecidas viram a universidade como a grande oportunidade de ascender socialmente. Havia essa ideia de que, se você terminasse a faculdade, estava feito — ficaria rico no Brasil.
Essas pessoas fizeram um superesforço: estudavam, trabalhavam, moravam longe, pegavam transporte público. Conseguiram se formar. Alguns melhoraram muito de vida e, na média, todos tiveram alguma mobilidade social em relação a seus pais. Mas houve quem não avançasse muito, quem ficasse desempregado durante a crise de 2015, quem não conseguisse trabalhar na área desejada, virasse motorista de aplicativo ou entregador.
A ideia do livro é trazer essa discussão: mesmo com nível educacional elevado, classe social, raça e gênero continuam influenciando o mercado de trabalho. A educação não zera a loteria de nascimento.
A expectativa é que, quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda e começará a acumular riqueza. E romperá com um ciclo. Mas não é bem assim.
Podemos deixar de lado a questão racial e de gênero e olhar só para a classe: um indivíduo rico e outro de baixa renda, ambos formados, excelentes alunos e produtivos. Mesmo com qualificação igual, o de alta renda tem uma rede de contatos melhor, o que lhe garante oportunidades superiores.
E mesmo que ambos tivessem a mesma rede de contatos, o patrimônio familiar muda tudo: quem é rico pode arriscar mais, estudar no exterior durante crises, esperar por empregos melhores. Já quem é de baixa renda sente pressão para começar a trabalhar rápido, manter um estágio mesmo sem gostar, sustentar a família.
Além disso, mesmo que filho do rico e filho do porteiro entrem no mercado de trabalho em uma mesma função, o rico terá mais oportunidades, pois seu background cultural é mais próximo ao das lideranças da empresa. Ele sabe falar sobre viagens internacionais, música erudita — códigos culturais distantes da realidade do filho do porteiro. Essa diferença de referências cria afinidade com quem está no poder.
Quem vem de fora precisa assimilar valores, cultura, forma de falar e vestir para se sentir pertencente — e, muitas vezes, não quer abrir mão da própria identidade, o que pode gerar crise existencial.
A saúde mental entra aí: muitos jovens de baixa renda não têm histórico familiar de discutir saúde mental. Isso melhorou um pouco após a pandemia, mas antes não era comum. Enquanto isso, jovens ricos muitas vezes já têm acompanhamento psicológico desde cedo e acesso à medicação.
Também há a penalidade pela maternidade, que impacta fortemente mulheres no mercado de trabalho, e o assédio, que torna muitos ambientes tóxicos e afasta profissionais.
BBC News Brasil – Sobre saúde mental, você já falou um pouco do custo social para quem ascende e faz essa mobilidade. Qual o custo para quem “ganha” nessa loteria do nascimento?
França – Quem nasce em família rica não tem culpa disso. Mas pode haver dois caminhos.
Você pode ter aquela pessoa preguiçosa, que não faz nada, só quer viver do patrimônio dos pais e quase nada produz de bom — nem para a sociedade, muitas vezes nem muito para si. E há aquelas que nascem em ambiente privilegiado, mas aproveitam as oportunidades que têm, se desenvolvem como seres humanos, tentam aprender várias habilidades. Enfim, têm uma certa preocupação social e tentam ajudar na medida do possível.
Mas, ao mesmo tempo, em vários casos existe uma pressão. Num país muito desigual, ser muito privilegiado afeta também afeta o lado psíquico dessas pessoas.
Muitas vezes, no íntimo, elas são muito frágeis. Por exemplo: a pessoa nasce herdeira e tenta se esforçar, mas, por algum fator, não vai muito bem na escola ou faz escolhas pouco assertivas, por motivos biológicos ou não.
Olhando de fora, parece que ela teve todos os privilégios — e, de fato, teve —, mas ainda assim enfrenta dificuldades. E, claro, são pouquíssimas histórias assim.
Mas há também o inverso: pessoas que saíram de condições muito desfavorecidas e cresceram na vida.
Tem também a questão da autoestima: muitas vezes, pessoas de baixa renda, apesar de mais resilientes, e sei que esse termo é chato de usar porque muitas vezes essa resiliência vem de muito sofrimento e esforço, têm autoestima menor.
E, em outros casos, pessoas mais ricas têm um “poço” de autoestima. Essas questões psicológicas são muito curiosas, e eu queria estudá-las mais. Mas, no mundo da economia, não dá para aprofundar tanto assim.
BBC News Brasil – Recentemente Lula tem explorado o discurso entre ricos e pobres, principalmente em torno da pauta da taxação das grandes fortunas. E tem sido acusado, por outro lado, de fazer “nós contra eles”. Como você avalia a forma que o governo tem usado esse debate?
França – O governo vinha cometendo várias “bolas fora” em diferentes questões durante um bom tempo. Agora, com essa pauta, retomou uma bandeira um pouco mais à esquerda, e isso foi uma “bola dentro” no sentido de gerar ganho de visibilidade e popularidade para Lula. É um tema um percentual alto da população apoia.
O “nós contra eles” é, a meu ver, um subterfúgio das classes dominantes para continuar sem abrir espaço. O problema central do Brasil é que o país não é só desigual na forma como taxa as pessoas — com os mais pobres pagando um esforço fiscal muito maior do que os mais ricos —, mas também é desigual na forma como gasta.
O Estado é um grande motivador do mecanismo de reprodução das desigualdades. Se olharmos para como ele opera na educação pública, nos gastos, nas desonerações, veremos que favorece muito mais as pessoas mais ricas. O pobre acaba atuando no orçamento mais amplo pegando as migalhas, apenas.
Para mudar estruturalmente essa situação, precisamos avançar muito nesses dois componentes do Estado: a forma como tributa e a forma como gasta. Esse é o centro da questão.
Não sou especialista em orçamento, mas quanto mais estudo desigualdade social e econômica, mais chego à constatação de que resolver este problema passa necessariamente por reformar tributação e gastos.
Muitas elites se apresentam como grandes entusiastas da educação. Eu mesmo sou um entusiasta: a minha grande mobilidade social veio pela educação. Mas percebo que esse discurso muitas vezes funciona como subterfúgio.
Existe a ideia de que “a desigualdade existe porque não há educação de qualidade” — e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos.
Essa narrativa serve para desviar do debate sobre tributação e privilégios. Vejo que parte disso acontece por ignorância: pessoas que realmente não entendem esses mecanismos por viverem em uma bolha muito específica ou terem formação técnica restrita a determinadas áreas. Mas parte é pura hipocrisia. Saber distinguir até que ponto é ignorância ou má-fé é difícil.
BBC News Brasil – E por que essas propostas, como a taxação de grandes fortunas e a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, enfrentam resistências e são tão difíceis de avançar no Congresso Nacional?
França – A meu ver, um dos aspectos centrais é a disputa pela opinião pública. Muitas vezes, o brasileiro não entende as próprias desvantagens, e fatores culturais acabam favorecendo quem já tem vantagens.
Se a gente comparar com os Estados Unidos, durante um bom tempo havia ali uma mobilidade social maior — que vem diminuindo nas últimas décadas —, mas ainda existia a possibilidade de alguém de origem desfavorecida chegar à classe média ou até enriquecer. Era o famoso “sonho americano”: tudo dependia do esforço individual. A economia era mais dinâmica, e havia planos de vida possíveis a partir desse esforço.
O Brasil não é assim. Aqui, a estratificação social é muito alta, com grupos que estão muito à frente de outros, acumulando vantagens históricas. Só que boa parte da população não entende isso, e acaba comprando a ideia de que basta esforço para progredir. Quando não consegue avançar, a pessoa se culpa. E isso gera um ressentimento latente, que foi muito bem explorado pela extrema-direita. A narrativa passa a ser: “você não avança por causa da esquerda”. Isso reforça a polarização.
Falta mais conscientização sobre esses mecanismos. As pessoas tendem a achar que os ricos são ricos por competência, esquecendo o peso da herança familiar e de como a estrutura social favorece alguns grupos.
Não é à toa que somos um dos países mais desiguais do mundo. Existe um processo de naturalização da desigualdade: o privilégio é visto como mérito, e a falta de mobilidade, como culpa individual. Contornar isso é muito difícil. Seria preciso mudar toda a engenharia social de um país tão desigual, o que envolve processos que se retroalimentam ao longo do tempo.
BBC News Brasil – Para quem argumenta que basta ‘se esforçar’ para vencer na vida, independentemente da origem, qual é sua principal resposta com base nos dados do livro?
França – Bom… e se essa pessoa tivesse “perdido” na loteria do nascimento, nascido pobre numa favela, por exemplo? Para entender, a gente precisaria do contrafactual dessa pessoa, o que nós não temos.
O exercício seria: para entender o quão meritocrática foi determinada trajetória, você teria que retirar dela o fator “nascer pobre” ou “nascer rico”.
Mas temos o contrafactual gerado por várias pesquisas, que fazem experimentos com grupos de tratamento e de controle.
As pessoas têm dificuldade de entender isso, porque exige certa complexidade de pensamento. E não se estuda esse tema. O Brasil é superdesigual e deveríamos ensinar sobre isso desde a escola. Mas ninguém estuda. Todo mundo opina com base em achismo.
Discutir pobreza, riqueza e desigualdade não é simples. Infelizmente, existe sempre quem repita discursos meritocráticos, independentemente do mérito real envolvido.
BBC News Brasil – E mexe também com o desejo da pessoa, né? Ela quer acreditar nessa mobilidade. Se você fala que existe a meritocracia, é mais fácil achar que vai conseguir ascender. Mas se você diz que há outros fatores além da meritocracia, essa mobilidade parece mais difícil…
França – É um ponto muito importante que você citou. Se eu tivesse essa consciência mais cedo, talvez não tivesse me esforçado tanto. Minha mãe foi empregada doméstica e estudou só até o primeiro colegial.
Eu era o único aluno negro na minha turma na USP. Se eu soubesse lá atrás o quão rara era aquela minha presença ali, talvez tivesse desanimado. Talvez eu não teria me esforçado.
Também me incomoda ser usado como referência do tipo: “Se ele conseguiu, qualquer um consegue”. Não se considera todo o esforço e o custo que isso teve para mim. Abri mão da juventude, fiquei trancado em bibliotecas. Estudei fora, mas paguei um preço alto. Hoje tenho uma carreira ótima, mas o custo não deveria ser tão alto para pessoas de origem desfavorecida.
Outra coisa que me preocupa é que, às vezes, pessoas mais favorecidas focam muito no lado negativo de suas vantagens e acabam paralisadas, sem avançar. Vejo gente com todos os recursos, mas sem desenvolver habilidades práticas, o que as impede de competir de fato.
A militância é importante, mas também é importante investir em competências e argumentos sólidos. O Brasil é muito complexo nesse sentido — não basta só “bater” no sistema, é preciso também ter ferramentas para navegar nele.
‘A desigualdade desafia tudo, desafia o contrato fundamental das sociedades’, diz Nobel de Economia
Super-ricos pagam mais imposto no Brasil que nos EUA e Reino Unido?
4 lições da Islândia, país com menor desigualdade entre homens e mulheres no mundo
O economista Michael França, 37 anos, nasceu e cresceu no bairro Costa Teles 1 em Uberaba, Minas Gerais. Filho de uma trabalhadora doméstica que estudou até o primeiro colegial, França se tornou doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e foi pesquisador visitante em universidades como Columbia e Stanford.
Sua biografia poderia ser lida como uma narrativa clássica de ascensão pela educação. Mas, ao pesquisar as desigualdades sociais, França percebeu que a realidade é mais complexa.
Embora reconheça que o estudo abra portas, ele mostra em sua pesquisa que a escolaridade, sozinha, não basta para compensar o peso de fatores como gênero, raça e lugar de nascimento. Esse conjunto de circunstâncias é o que chama de “loteria do nascimento”.
“Pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante. Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre”, afirma.
Na USP, França foi o único aluno negro de sua turma de mestrado e doutorado. “Se eu soubesse lá atrás o quão rara era aquela minha presença ali, talvez tivesse desanimado. Talvez eu não teria me esforçado”, afirma o pesquisador.
Nas últimas décadas, o avanço das políticas públicas afirmativas nas universidades mudou a cara das universidades no Brasil. O Programa Universidade para Todos (Prouni), por exemplo, completou 20 anos em 2025, custeando a formação de 3,5 milhões de estudantes em todo o país.
Mas o economista, hoje coordenador do Núcleo de Estudos Raciais (Neri) do Insper, defende que isso ainda não foi suficiente para alterar, de fato, a desigualdade da sociedade brasileira.
“A expectativa é que quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda, começará a acumular riqueza e romperá o ciclo. Mas não é bem assim”, diz.
“Existe a ideia de que a desigualdade existe porque não há educação de qualidade — e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos.”
França, que já venceu o Prêmio Jabuti Acadêmico, lança nesta quarta-feira (20/8) o livro A Loteria do Nascimento: filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico (Editora Jandaíra), em São Paulo. A obra é em coautoria com o sociólogo Fillipi Nascimento.
Abaixo, confira a entrevista com o pesquisador.
BBC News Brasil – O que é a “loteria do nascimento”?
Michael França – A loteria do nascimento é a ideia de que as circunstâncias pelas quais você nasceu — o local, a família, o gênero, a raça — influenciam nas chances e oportunidades que você vai ter na vida.
Isso é bem documentado pela literatura empírica, aquela baseada em dados e análises estatísticas robustas. Há muitos estudos nos Estados Unidos, mas também no Brasil e na Europa.
Esses estudos mostram que, por mais que as pessoas queiram colocar o esforço como determinante central, ele ajuda, mas só até determinada parte dos resultados que você vai atingir na vida. Porque, dependendo do local em que você nasce, do seu gênero, sexualidade, raça ou classe socioeconômica, isso vai afetar seus resultados.
Claro, se você tem um irmão gêmeo, vindo de uma situação muito semelhante, é evidente que aquele que se esforçou mais tende a ter resultados melhores nas áreas em que se dedicou. Isso gera o que alguns estudiosos chamam, no debate sobre desigualdade, de desigualdade justa: as oportunidades são parecidas e as diferenças vêm das escolhas e do esforço de cada um.
Mas, no caso brasileiro, grande parte da desigualdade é injusta, porque os indivíduos têm pontos de partida muito diferentes. Esses pontos de partida desiguais fazem com que a loteria de nascimento seja determinante.
Se você nasceu numa família rica, sendo um homem branco, hétero, numa cidade de um país desenvolvido, suas chances são muito maiores do que, por exemplo, as de uma mulher lésbica de uma favela do interior do Acre.
Por mais que essa mulher se esforce, a chance de ela atingir determinados resultados será mais baixa. Não quer dizer que ela não vá conseguir, mas terá que colocar muito, muito mais esforço.
BBC News Brasil – O subtítulo do livro traz o título de uma coluna sua na Folha: “Filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico”. Pensando nas políticas públicas que tivemos nos últimos anos, que melhoraram alguns acessos, como ao das universidades, quais são ainda os obstáculos para a mobilidade social no Brasil?
França – Escrevi esta coluna na Folha justamente com esse nome e ela viralizou quando publiquei, especialmente no LinkedIn. Percebi que havia ali um certo sentimento de frustração.
Nos anos 1980 e 1990, as universidades no Brasil eram o parque de diversões das elites, basicamente. Não havia tantas universidades, a porcentagem da população com ensino superior era muito baixa e o prêmio salarial para quem tinha diploma era muito alto. A ideia era que, se você tivesse ensino superior, estaria em outro patamar de status na sociedade, já que era algo escasso.
Nos anos 2000, se inicia um processo de democratização, com a construção de mais universidades públicas, a criação de muitas privadas (mesmo de baixa qualidade), programas como Prouni e Fies, e as ações afirmativas das cotas. Muitos indivíduos de origens desfavorecidas viram a universidade como a grande oportunidade de ascender socialmente. Havia essa ideia de que, se você terminasse a faculdade, estava feito — ficaria rico no Brasil.
Essas pessoas fizeram um superesforço: estudavam, trabalhavam, moravam longe, pegavam transporte público. Conseguiram se formar. Alguns melhoraram muito de vida e, na média, todos tiveram alguma mobilidade social em relação a seus pais. Mas houve quem não avançasse muito, quem ficasse desempregado durante a crise de 2015, quem não conseguisse trabalhar na área desejada, virasse motorista de aplicativo ou entregador.
A ideia do livro é trazer essa discussão: mesmo com nível educacional elevado, classe social, raça e gênero continuam influenciando o mercado de trabalho. A educação não zera a loteria de nascimento.
A expectativa é que, quem não tem patrimônio familiar, mas conquista educação, terá alta renda e começará a acumular riqueza. E romperá com um ciclo. Mas não é bem assim.
Podemos deixar de lado a questão racial e de gênero e olhar só para a classe: um indivíduo rico e outro de baixa renda, ambos formados, excelentes alunos e produtivos. Mesmo com qualificação igual, o de alta renda tem uma rede de contatos melhor, o que lhe garante oportunidades superiores.
E mesmo que ambos tivessem a mesma rede de contatos, o patrimônio familiar muda tudo: quem é rico pode arriscar mais, estudar no exterior durante crises, esperar por empregos melhores. Já quem é de baixa renda sente pressão para começar a trabalhar rápido, manter um estágio mesmo sem gostar, sustentar a família.
Além disso, mesmo que filho do rico e filho do porteiro entrem no mercado de trabalho em uma mesma função, o rico terá mais oportunidades, pois seu background cultural é mais próximo ao das lideranças da empresa. Ele sabe falar sobre viagens internacionais, música erudita — códigos culturais distantes da realidade do filho do porteiro. Essa diferença de referências cria afinidade com quem está no poder.
Quem vem de fora precisa assimilar valores, cultura, forma de falar e vestir para se sentir pertencente — e, muitas vezes, não quer abrir mão da própria identidade, o que pode gerar crise existencial.
A saúde mental entra aí: muitos jovens de baixa renda não têm histórico familiar de discutir saúde mental. Isso melhorou um pouco após a pandemia, mas antes não era comum. Enquanto isso, jovens ricos muitas vezes já têm acompanhamento psicológico desde cedo e acesso à medicação.
Também há a penalidade pela maternidade, que impacta fortemente mulheres no mercado de trabalho, e o assédio, que torna muitos ambientes tóxicos e afasta profissionais.
BBC News Brasil – Sobre saúde mental, você já falou um pouco do custo social para quem ascende e faz essa mobilidade. Qual o custo para quem “ganha” nessa loteria do nascimento?
França – Quem nasce em família rica não tem culpa disso. Mas pode haver dois caminhos.
Você pode ter aquela pessoa preguiçosa, que não faz nada, só quer viver do patrimônio dos pais e quase nada produz de bom — nem para a sociedade, muitas vezes nem muito para si. E há aquelas que nascem em ambiente privilegiado, mas aproveitam as oportunidades que têm, se desenvolvem como seres humanos, tentam aprender várias habilidades. Enfim, têm uma certa preocupação social e tentam ajudar na medida do possível.
Mas, ao mesmo tempo, em vários casos existe uma pressão. Num país muito desigual, ser muito privilegiado afeta também afeta o lado psíquico dessas pessoas.
Muitas vezes, no íntimo, elas são muito frágeis. Por exemplo: a pessoa nasce herdeira e tenta se esforçar, mas, por algum fator, não vai muito bem na escola ou faz escolhas pouco assertivas, por motivos biológicos ou não.
Olhando de fora, parece que ela teve todos os privilégios — e, de fato, teve —, mas ainda assim enfrenta dificuldades. E, claro, são pouquíssimas histórias assim.
Mas há também o inverso: pessoas que saíram de condições muito desfavorecidas e cresceram na vida.
Tem também a questão da autoestima: muitas vezes, pessoas de baixa renda, apesar de mais resilientes, e sei que esse termo é chato de usar porque muitas vezes essa resiliência vem de muito sofrimento e esforço, têm autoestima menor.
E, em outros casos, pessoas mais ricas têm um “poço” de autoestima. Essas questões psicológicas são muito curiosas, e eu queria estudá-las mais. Mas, no mundo da economia, não dá para aprofundar tanto assim.
BBC News Brasil – Recentemente Lula tem explorado o discurso entre ricos e pobres, principalmente em torno da pauta da taxação das grandes fortunas. E tem sido acusado, por outro lado, de fazer “nós contra eles”. Como você avalia a forma que o governo tem usado esse debate?
França – O governo vinha cometendo várias “bolas fora” em diferentes questões durante um bom tempo. Agora, com essa pauta, retomou uma bandeira um pouco mais à esquerda, e isso foi uma “bola dentro” no sentido de gerar ganho de visibilidade e popularidade para Lula. É um tema um percentual alto da população apoia.
O “nós contra eles” é, a meu ver, um subterfúgio das classes dominantes para continuar sem abrir espaço. O problema central do Brasil é que o país não é só desigual na forma como taxa as pessoas — com os mais pobres pagando um esforço fiscal muito maior do que os mais ricos —, mas também é desigual na forma como gasta.
O Estado é um grande motivador do mecanismo de reprodução das desigualdades. Se olharmos para como ele opera na educação pública, nos gastos, nas desonerações, veremos que favorece muito mais as pessoas mais ricas. O pobre acaba atuando no orçamento mais amplo pegando as migalhas, apenas.
Para mudar estruturalmente essa situação, precisamos avançar muito nesses dois componentes do Estado: a forma como tributa e a forma como gasta. Esse é o centro da questão.
Não sou especialista em orçamento, mas quanto mais estudo desigualdade social e econômica, mais chego à constatação de que resolver este problema passa necessariamente por reformar tributação e gastos.
Muitas elites se apresentam como grandes entusiastas da educação. Eu mesmo sou um entusiasta: a minha grande mobilidade social veio pela educação. Mas percebo que esse discurso muitas vezes funciona como subterfúgio.
Existe a ideia de que “a desigualdade existe porque não há educação de qualidade” — e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos.
Essa narrativa serve para desviar do debate sobre tributação e privilégios. Vejo que parte disso acontece por ignorância: pessoas que realmente não entendem esses mecanismos por viverem em uma bolha muito específica ou terem formação técnica restrita a determinadas áreas. Mas parte é pura hipocrisia. Saber distinguir até que ponto é ignorância ou má-fé é difícil.
BBC News Brasil – E por que essas propostas, como a taxação de grandes fortunas e a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, enfrentam resistências e são tão difíceis de avançar no Congresso Nacional?
França – A meu ver, um dos aspectos centrais é a disputa pela opinião pública. Muitas vezes, o brasileiro não entende as próprias desvantagens, e fatores culturais acabam favorecendo quem já tem vantagens.
Se a gente comparar com os Estados Unidos, durante um bom tempo havia ali uma mobilidade social maior — que vem diminuindo nas últimas décadas —, mas ainda existia a possibilidade de alguém de origem desfavorecida chegar à classe média ou até enriquecer. Era o famoso “sonho americano”: tudo dependia do esforço individual. A economia era mais dinâmica, e havia planos de vida possíveis a partir desse esforço.
O Brasil não é assim. Aqui, a estratificação social é muito alta, com grupos que estão muito à frente de outros, acumulando vantagens históricas. Só que boa parte da população não entende isso, e acaba comprando a ideia de que basta esforço para progredir. Quando não consegue avançar, a pessoa se culpa. E isso gera um ressentimento latente, que foi muito bem explorado pela extrema-direita. A narrativa passa a ser: “você não avança por causa da esquerda”. Isso reforça a polarização.
Falta mais conscientização sobre esses mecanismos. As pessoas tendem a achar que os ricos são ricos por competência, esquecendo o peso da herança familiar e de como a estrutura social favorece alguns grupos.
Não é à toa que somos um dos países mais desiguais do mundo. Existe um processo de naturalização da desigualdade: o privilégio é visto como mérito, e a falta de mobilidade, como culpa individual. Contornar isso é muito difícil. Seria preciso mudar toda a engenharia social de um país tão desigual, o que envolve processos que se retroalimentam ao longo do tempo.
BBC News Brasil – Para quem argumenta que basta ‘se esforçar’ para vencer na vida, independentemente da origem, qual é sua principal resposta com base nos dados do livro?
França – Bom… e se essa pessoa tivesse “perdido” na loteria do nascimento, nascido pobre numa favela, por exemplo? Para entender, a gente precisaria do contrafactual dessa pessoa, o que nós não temos.
O exercício seria: para entender o quão meritocrática foi determinada trajetória, você teria que retirar dela o fator “nascer pobre” ou “nascer rico”.
Mas temos o contrafactual gerado por várias pesquisas, que fazem experimentos com grupos de tratamento e de controle.
As pessoas têm dificuldade de entender isso, porque exige certa complexidade de pensamento. E não se estuda esse tema. O Brasil é superdesigual e deveríamos ensinar sobre isso desde a escola. Mas ninguém estuda. Todo mundo opina com base em achismo.
Discutir pobreza, riqueza e desigualdade não é simples. Infelizmente, existe sempre quem repita discursos meritocráticos, independentemente do mérito real envolvido.
BBC News Brasil – E mexe também com o desejo da pessoa, né? Ela quer acreditar nessa mobilidade. Se você fala que existe a meritocracia, é mais fácil achar que vai conseguir ascender. Mas se você diz que há outros fatores além da meritocracia, essa mobilidade parece mais difícil…
França – É um ponto muito importante que você citou. Se eu tivesse essa consciência mais cedo, talvez não tivesse me esforçado tanto. Minha mãe foi empregada doméstica e estudou só até o primeiro colegial.
Eu era o único aluno negro na minha turma na USP. Se eu soubesse lá atrás o quão rara era aquela minha presença ali, talvez tivesse desanimado. Talvez eu não teria me esforçado.
Também me incomoda ser usado como referência do tipo: “Se ele conseguiu, qualquer um consegue”. Não se considera todo o esforço e o custo que isso teve para mim. Abri mão da juventude, fiquei trancado em bibliotecas. Estudei fora, mas paguei um preço alto. Hoje tenho uma carreira ótima, mas o custo não deveria ser tão alto para pessoas de origem desfavorecida.
Outra coisa que me preocupa é que, às vezes, pessoas mais favorecidas focam muito no lado negativo de suas vantagens e acabam paralisadas, sem avançar. Vejo gente com todos os recursos, mas sem desenvolver habilidades práticas, o que as impede de competir de fato.
A militância é importante, mas também é importante investir em competências e argumentos sólidos. O Brasil é muito complexo nesse sentido — não basta só “bater” no sistema, é preciso também ter ferramentas para navegar nele.
‘A desigualdade desafia tudo, desafia o contrato fundamental das sociedades’, diz Nobel de Economia
Super-ricos pagam mais imposto no Brasil que nos EUA e Reino Unido?
4 lições da Islândia, país com menor desigualdade entre homens e mulheres no mundo