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De dublagens a apresentações em bares e programas de TV, tornou-se uma figura conhecida também pela performance irreverente e pela voz afinada. Entre um corte e outro, guarda histórias saborosas sobre o bairro – da antiga barraca de quitutes da Dona Edna à fundação da igreja Santa Rosa de Lima. Nesta entrevista ao A TARDE, ele revisita memórias, conta curiosidades e fala com orgulho do legado que construiu.Confira a entrevista completaComo começou a sua trajetória profissional e de onde veio a inspiração para ser barbeiro?”Comecei minha trajetória como técnico em contabilidade, formação de nível médio. Inicialmente, trabalhei no Bradesco, como caixa executivo na agência da Avenida Sete, onde fiquei por cerca de oito anos e conquistei bastante reconhecimento. Depois, segui para o polo petroquímico, trabalhando na área financeira da empresa Metanor. Mas a barbearia já fazia parte da minha história antes disso tudo.Foi meu pai quem me introduziu nesse universo. Ele tinha uma barbearia no Centro da cidade e, ainda jovem, ele me chamou para tomar conta dos barbeiros. Eu ajudava passando troco e observando o trabalho no salão. Não fiz curso formal, aprendi tudo sozinho, só olhando. A profissionalização veio ali mesmo, na prática. Quando um dos barbeiros saiu, assumi a cadeira. Depois de um tempo, pedi ao meu pai para sair e seguir na área contábil, mas a paixão pela barbearia nunca me deixou de verdade.Quando fui dispensado da empresa do Polo, decidi que era hora de voltar às origens. Encontrei um terreno no Costa Azul, cercado por tapumes, e fui conversar com a dona, que me disse que o marido estava numa fase difícil por conta da bebida. Ela pediu que eu retornasse na semana seguinte, quando ele estaria sóbrio. Esperei e, quando o encontrei, ele me explicou que não possuía a matrícula do terreno, pois havia ocupado o espaço de forma irregular. Mesmo assim, redigimos um contrato de compra e venda e, como ele não sabia assinar, colocou o dedo como assinatura.Construí o ponto mesmo sem documentação, enfrentando várias dificuldades com a fiscalização da prefeitura. Precisei interromper as obras algumas vezes, mas aos poucos, com muita persistência, finalizei a construção e inaugurei minha primeira barbearia no bairro – onde hoje funciona o Bar do Luiz. O início foi desafiador, mas fui conquistando clientes. O primeiro, inclusive, foi uma mulher, algo incomum para uma barbearia. Com o tempo, os homens também chegaram, o movimento cresceu e comecei a fazer sucesso com os cortes, não por um dom artístico, mas pela qualidade do trabalho mesmo”
Samuel da Silva Alves Filho, 79 anos, o Samuka
| Foto: .José Simões / Ag. A TARDE
Em que momento o talento artístico se somou à barbearia e nasceu o Samuka intérprete de Ray Charles?”O lado artístico surgiu de forma curiosa. Um dia, enquanto cortava o cabelo de um cliente, ele viu uma foto minha ao lado de uma imagem do Ray Charles e exclamou: “Surge o imitador baiano do artista americano!” Esse cliente, que era diretor de uma empresa chamada Stallophony, me convidou para estrelar uma propaganda de celular — na época dos “tijolões” — e, de repente, eu estava na TV e no jornal A Tarde, sempre caracterizado como Ray Charles.Mas tudo começou muito antes. Cerca de 55 anos atrás, assisti a um filme com o Ray Charles no cinema da Baixa dos Sapateiros. Saindo da sessão, passei por um camelô e comprei um óculos escuro parecido com o do cantor. Quando coloquei, o próprio vendedor comentou que eu parecia com ele. Aquilo ficou na minha cabeça. Era uma época em que a dublagem estava em alta, com artistas como Tia Arilma, Big Bem, Tio do Gama e o Maluco Beleza, o Raul Seixas.Resolvi estudar músicas em inglês e me ver no espelho como o Ray Charles. A partir daí, vieram as primeiras apresentações e, com o tempo, me especializei também em outros artistas negros como Jimmy Cliff, Billy Paul e Nat King Cole. Fiz apresentações em Salvador e até em casas noturnas em São Paulo. Hoje, mesmo na terceira idade, continuo me apresentando em eventos e fazendo voz e violão, o que me mantém feliz e em contato com o público.”O bairro do Costa Azul guarda muitas memórias para você. Quais são as lembranças mais marcantes dessa sua vivência?”Tenho uma história de 40 anos com o Costa Azul, então vi muita coisa mudar por aqui. Quando cheguei, não existia nem a Escola Thales de Azevedo — tudo era barro puro. Hoje temos escolas como o Portinari e empreendimentos diversos. Morei no Edifício Rio Mar, que ainda está de pé, prédio de três andares sem elevador, como era comum na época.Me lembro bem quando uma casa de um cliente que eu atendia foi vendida e virou o Shopping Bahia Mar. A pandemia fechou muitos shoppings, mas esse resistiu. Outra memória viva é da igreja Santa Rosa de Lima, que começou feita de madeirite, algo bem simples. Mas com o apoio dos fiéis e do padre, conseguimos transformá-la nessa bela construção que temos hoje.Tinha também o Bar do Seu Manuel, um português. A placa do bar era o “M” de Manuel com um bigode. Era famoso pelo caldo verde e durou muitos anos antes de virar uma galeria de lojinhas. Na entrada do bairro havia a Padaria Trigo, que deu lugar ao Banco do Brasil. Aliás, no campo onde jogávamos bola, foi construído o GBarbosa. O que antes era um espaço de lazer virou comércio, mas, por outro lado, hoje temos mais infraestrutura: mercados, farmácias, serviços.E, ainda assim, mantenho viva a tradição. As pessoas que cortavam cabelo comigo há décadas continuam vindo, e agora trazem os filhos e os netos. Isso me emociona. Sempre digo que o cliente entra feio e sai gatinho (risos). Esse é o slogan da minha barbearia.”
Samuel da Silva Alves Filho, 79 anos, o Samuka
| Foto: .José Simões / Ag. A TARDE
Quais são as histórias e curiosidades que mais marcaram o seu cotidiano no bairro?”Tem tantas que daria um livro. Uma das mais gostosas de lembrar é sobre a Dona Edna, uma cozinheira de mão cheia. Ela tinha uma barraca na esquina da Rua Clóvis Veiga, onde hoje existe um prédio. Vendia mocotó, xinxim de bofe, paelha, feijoada, coxinha de galinha e pastel — tudo delicioso. Era tão famosa que as pessoas almoçavam sentadas no passeio, mesmo sem banheiro por perto. A barraca dela era também o único lugar onde acontecia a tradicional queima de Judas no bairro. Isso tudo desapareceu com o tempo, mas quem é das antigas se lembra.Outro exemplo é o restaurante Bartal, que hoje funciona onde era a casa de uma família que eu atendia — fazia o cabelo, a barba dos filhos. Aos domingos, faço voz e violão por lá. Também tenho um espaço no GBarbosa, o Caminito, onde canto às sextas-feiras, das 19h às 21h. São momentos que me conectam com a comunidade, e que reforçam essa relação afetiva com o bairro.”Como você enxerga o futuro do Costa Azul e qual legado você acredita ter deixado?”O bairro mudou muito e vai mudar ainda mais. Todas as casas que ainda resistem, acredito que serão transformadas em prédios ou estabelecimentos comerciais, como aconteceu com tantas outras. Com isso, virão mais farmácias, mais salões, mais barbearias.O que eu gostaria, mesmo que talvez não esteja mais aqui para ver, é que tivéssemos um novo clube. O antigo Clube do Baneb foi desativado e está até hoje abandonado. Foi lá que minhas filhas aprenderam a nadar. Um novo espaço de lazer traria mais qualidade de vida.Mas, no fundo, fico realizado. Hoje temos mercados, farmácias, escolas e bares. E tenho o orgulho de ser parte da história desse lugar. Não cheguei a ser artista nacional, mas sou conhecido no bairro como alguém que tem talento musical e uma trajetória de trabalho honesta e afetiva. A barbearia me deu tudo. E, acima de tudo, me deu o carinho das pessoas, que ainda hoje batem à minha porta para cortar cabelo, ouvir música e compartilhar boas histórias.”