O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) encaminhou ofício aos juízes do estado comunicando que seja suspenso, de forma “temporária”, o recolhimento de inquéritos policiais para digitalização. A decisão vem após reclamações, publicadas pelo BHAZ, sobre a instabilidade recorrente do sistema PCNet e a exclusão de ordens de serviço pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) como forma de “melhorar a gestão das investigações”. Em coletiva, na última semana, durante a inauguração da nova sede da Delegacia do Turismo, o vice-governador Mateus Simões (NOVO) admitiu os problemas relacionados ao sistema e a necessidade de investimentos. Em nota ao BHAZ, a PCMG confirma a medida, mas nega que a decisão guarda relação com as reiteradas dificuldades apresentadas pelos servidores. Procurados, o TJ e o governo de Minas ainda não se pronunciaram sobre a suspensão.
Na decisão, o corregedor(a)-Geral de Justiça, desembargador Estevão Lucchesi de Carvalho, justifica a determinação em “virtude da necessidade de readequação do cronograma do projeto de virtualização do acervo de inquéritos”. Segundo o ofício, “uma nova data para a continuidade das atividades será comunicada oportunamente”.
O desembargador determinou ainda que “eventuais movimentações já realizadas seguindo o fluxo da virtualização deverão ser excluídas, com o retorno dos autos ao trâmite regular, até a retomada do cronograma”.
Em nota, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informou que, “a partir do dia 2 de setembro de 2025, as entregas de procedimentos físicos para digitalização estarão suspensas, temporariamente, conforme decisão judicial, para ajustes necessários ao sistema”.
“A PCMG ressalta que não haverá nenhum impacto nas investigações, que seguem sendo realizadas normalmente. Em breve, um novo cronograma de virtualização dos inquéritos policiais será divulgado. A PCMG informa ainda que a decisão não tem nenhuma relação com instabilidade do sistema. Até o momento, 235.749 inquéritos foram inseridos no PJ-e”, diz a nota.
Implementado em 2011, o Sistema de Informatização e Gerenciamento dos Atos de Polícia Judiciária, conhecido como PCnet, é a plataforma onde são armazenadas todas as informações e dados relacionados aos inquéritos da Polícia Civil. Atualmente, o sistema passa por um processo de integração com o Processo Judicial Eletrônico (PJ-e), ferramenta do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). A integração foi concluída em 2025 em boa parte das comarcas, mas, segundo os servidores, os desafios, que já eram considerados “grandes” e se arrastavam “há anos”, só “se agravaram”.
“Esse sistema sempre foi cheio de problemas, sempre fora do ar, sempre lento. A partir de 2019, quando começou a funcionar o plantão digital, o uso dele passa a ser ainda mais efetivo porque a gente começa a fazer flagrantes virtuais e atendimentos virtuais à distância. Recentemente, com essa questão da integração com o PJ-e, ele ficou ainda mais instável. E, agora, surgiu essa dificuldade, em muitos casos, de encontrar as ordens de serviço, que sumiram, por uma suposta ‘higienização do sistema’, devido à digitalização”, explica Marcelo Horta, presidente do Sindicato dos Escrivães do Estado de Minas Gerais.
O BHAZ conversou, em julho, com servidores de algumas cidades de Minas Gerais que trabalham em diferentes etapas do processo e teve acesso a documentos e mensagens que ilustram a dificuldade dos agentes em lidar, por dias, com o sistema fora do ar.
Na Polícia Civil há quase 20 anos, um servidor, que vivenciou toda a implementação gradual do PCnet, conta que são “frequentes” os problemas de conexão e que, por várias vezes, o sistema já ficou fora do ar por até 4 horas. Para conseguir concluir um depoimento de roubo, tráfico ou mesmo homicídio, as vítimas, testemunhas, policiais militares e suspeitos precisam aguardar um “longo tempo”.
“E em cada plantão, são seis flagrantes, em média, com quatro depoimentos diferentes para cada flagrante. E esses problemas, infelizmente, não são pontuais”, reclama.
O desafio, com os problemas técnicos, inclui colher as oitivas e redigir o depoimento em um programa de texto simples e de padrão gráfico diferente ao usado, e só depois, com conexão restabelecida, digitalizar e transferir para o PCNet, exigindo, segundo outro servidor ouvido pelo BHAZ, “um enorme retrabalho”.
“Você não consegue adotar o mesmo padrão, se for tentar, vai demorar muito tempo, você tem que ligar para outro colega, ver quem tem o modelo antigo. Se não sair correto, acaba surgindo margem, inclusive, para que a defesa questione uma possível ‘adulteração’ porque a peça não está no padrão, está diferente das outras, podendo virar argumento para atrasar ou anular todo o processo”, conta um escrivão.
O Sindicato dos Escrivães, no entanto, reforça que essa saída não é a ideal, uma vez que existe uma regulamentação que, inclusive, “proíbe qualquer procedimento policial fora do sistema PCNet”.
“O pessoal chega a comemorar quando o sistema está funcionando, de tanto que é rotineiro. Um atendimento que levaria, por exemplo, 40 minutos, está levando duas, três horas por causa desse tipo de problema”, conta Marcelo Horta, presidente da entidade.
Em nota, a Polícia Civil diz que o sistema PCNet funciona “normalmente, de maneira efetiva”, mas explica que “para garantir o bom funcionamento, passa por manutenções programadas que podem, eventualmente, resultar em algum tipo de instabilidade”. De acordo com o órgão, “os servidores são devidamente informados sobre as correções, que ocorrem em horários de menor fluxo de trabalho, minimizando os impactos nas entregas”.
Sobre imprevistos técnicos e momentâneos, que, segundo a Polícia Civil, “podem ocorrer em qualquer sistema informatizado, a empresa responsável é acionada imediatamente, para o breve restabelecimento do sistema”.
Ao longo de vários dias, o BHAZ recebeu dezenas de relatos e imagens, em diferentes dias e horários, de problemas relacionados ao sistema. Ao entrar no PCNet, os agentes se deparam com a mensagem da Prodemge (Companhia de Tecnologia da Informação do Estado de Minas Gerais), responsável pelo desenvolvimento e manutenção do serviço, de que dificuldades de acesso já foram relatadas devido a “um erro no sistema” e “chamados foram registrados”, mas que “não havia um prazo para a solução”.
De acordo com os servidores, a digitalização em massa de todos os processos e a integração com o PJ-e pode ter aumentado o número de arquivos e de acessos simultâneos, fazendo com que o sistema não suporte a grande demanda. “É um sistema feito numa arquitetura que a gente acredita ser muito antiga, porque é de 2009. Não passou por nenhum tipo de atualização”, diz Marcelo Horta.
“Com essa integração com o PJ-e, a gente manda tudo pro sistema do Judiciário. É uma vantagem, claro, mas o problema é que o sistema não ajuda. Acontece, muitas vezes, de eu não conseguir transmitir durante o plantão. Daí, após o plantão, eu vou pra casa, e, de casa, envio as informações para o PJ-e”, relata um servidor.
Exclusão das ordens de serviço
Entre as diversas funcionalidades do sistema PCnet, duas dizem respeito à inserção e ao acesso às chamadas ordens de serviço — comandos que autorizam e orientam os investigadores nas ações de campo. Essas ordens são utilizadas para a realização de tarefas específicas e, por isso, muitas vezes são consideradas “essenciais” para o andamento das investigações. Um exemplo comum é a determinação para localizar testemunhas.
“Além de uma orientação importante, é também o respaldo legal que a gente tem para trabalhar, caso sejamos questionados, na rua, ou até mesmo por outros órgãos, como o Ministério Público”, explica um investigador que não terá a identidade revelada.
Relatos e denúncias recebidos pelo Sindicato dos Escrivães de Minas Gerais (Sindep-MG) indicam que, durante o processo de digitalização dos inquéritos e a integração entre os sistemas PCnet e PJ-e, diversas ordens de serviço de processos antigos deixaram de ser localizadas pelos investigadores.
“Isso tem sido recorrente, relatos de ordens de serviços que sumiram, o pessoal procura, mas não consegue achar. Juntou tudo: essa integração, lentidão, um sistema que é feito numa arquitetura que a gente acredita ser muito antiga e que não passou por nenhum tipo de atualização”, alerta Marcelo.
O BHAZ teve acesso a um ofício que o Sindep-MG enviou à direção do órgão em fevereiro deste ano pedindo explicações. Nele, a entidade expõe mensagens que teriam sido encaminhadas pela própria Polícia Civil aos cartórios, informando sobre uma “higienização abrangente”, após ter identificado ordens de serviço “inativas e pendentes”, e que estariam “impactando diretamente a agilidade e a eficiência do sistema”. O ofício não foi respondido e, agora, o Sindicato estuda entrar com uma ação no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).
“Com a experiência de trabalho que a gente tem, com essa ‘higienização’, em vez de cobrar para que as ordens fossem realizadas, simplesmente apagaram do sistema. É o que a gente tem, mas não tenho informações oficiais, porque questionamos e não tivemos resposta até agora”, revela Marcelo Horta.
No ofício, a entidade questiona a veracidade de comunicados aos quais teve acesso, em que servidores são informados sobre o cancelamento de todas as ordens de serviço editadas até 31/12/2023, mas que “ainda não haviam sido emitidas no sistema, ou seja, não haviam sido aprovadas”.
“É um prejuízo enorme. São vários problemas graves. Uma ordem de serviço que o delegado determinou que acontecesse 5 anos atrás, se ela é apagada, é como se ela nunca tivesse existido. É como se uma fase do inquérito não tivesse acontecido. Isso é muito grave”, pondera Marcelo Horta, presidente do Sindicato dos Escrivães de Minas Gerais (Sindep-MG) .
“Nós podemos estar falando de milhares de procedimentos que foram simplesmente removidos do sistema. Não temos uma explicação de como se deu isso e qual a base legal, porque a gente entende que o sistema PCnet é um sistema homologado, ele não pode sofrer alterações desse tipo sem uma ordem judicial ou sem uma explicação muito clara de como isso aconteceu”, completa.
O BHAZ conversou com dois servidores que relataram ter identificado o “sumiço” de ordens de serviço após a digitalização dos processos. Em um dos casos, a solicitação para verificar a existência de uma câmera de segurança, segundo eles, não constava mais no processo digital e uma nova ordem precisou ser emitida.
“Podem ser emitidas novas ordens de serviço, mas é mais complexo, porque é preciso fazer todo o trabalho novamente, ver de onde aquela informação surgiu, para que as novas ordens sejam feitas. Dependendo da investigação, você não vai conseguir recuperar as mesmas informações mais ou terá um atraso de um ano, seis meses”, conta um escrivão.
De acordo com o Sindep-MG, há impactos para o serviço público e para a sociedade. “Ao identificar que aquele documento deixou de existir, o servidor tem que refazer e, cada documento desse, para refazer, é necessária uma análise do inquérito. No mínimo, eu vou ser muito otimista, o colega vai perder 30 minutos. Se multiplica 30 minutos por 20 mil ordens, por exemplo, então, isso daria um prejuízo de 10 mil horas de serviço público”, calcula Marcelo.
No ofício enviado à Polícia Civil, a entidade argumenta, ainda, que caso seja confirmada a ação de exclusão das ordens de serviço, há um risco de que seja percebida como “uma fragilidade do sistema e sem transparência, sem amplo esclarecimento e publicidade das reais causas”. O Sindep-MG não descarta ainda o risco de que haja pedidos de “nulidade dos processos, caso essa insegurança e a falta de garantia na proteção de dados sensíveis e sigilosos seja questionada por advogados das partes investigadas”.
“Nosso ordenamento jurídico estabelece prescrições. Os crimes, quando passa determinado tempo, deixa de ser punível. Então, se acontece um crime e se eu não consigo apontar o autor daquele crime em um determinado período de tempo, por atraso em relação às ordens originalmente não cumpridas, acontece o que a gente chama de prescrição da punibilidade. O cara não vai ser punido por aquele crime”, acrescenta Marcelo.
O que diz a Polícia Civil
Em entrevista ao portal BHAZ, o porta-voz da Polícia Civil, Saulo Castro, explicou que a exclusão das ordens de serviço ‘em aberto’ busca melhorar a gestão das investigações armazenadas no sistema e explicou quais foram aquelas apagadas.
“Na verdade, houve a exclusão somente de ordens de serviço ‘em aberto’ de inquéritos já relatados e entregues à Justiça, além de ordens emitidas há mais de 12 meses. Essas ordens estavam pendentes de devolução, distribuição ou aceitação no sistema”, explica Saulo Castro.
De acordo com Saulo, no primeiro caso, mesmo com as ordens de serviço “em aberto”, o delegado de polícia, que é o presidente da investigação, entendeu que havia elementos suficientes para a conclusão do inquérito e envio à Justiça. “Ele faz antes uma análise técnico-jurídica”, garante.
No segundo caso, em relação às ordens que estavam há mais de 12 meses “em aberto” e sem movimentação no sistema, o delegado pode, se achar necessário, expedir uma nova ordem de serviço, nos mesmos termos da anterior
Sobre os riscos aos processos, Castro garante que todas as ações adotadas no PCnet são “auditáveis” e seguem padrões rigorosos de segurança da informação. “Não há risco à integridade do sistema ou comprometimento do banco de dados”, reitera Saulo.
O porta-voz explicou ainda que todas as investigações criminais, documentadas no sistema PCnet, são enviadas à Justiça e, como determina a legislação, são direcionadas ao Ministério Público. “O MP é o órgão titular da ação penal pública e, caso ache necessário, poderá requisitar diligências complementares imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, nos termos do art. 16 do Código de Processo Penal”, diz.
A reportagem questionou o órgão sobre quantas ordens de serviço “em aberto” foram apagadas, quando, se a medida foi comunicada às diferentes partes do trabalho de investigação e se há um back-up que permite o armazenamento e acesso a essas ordens de serviço apagadas, mas não obteve resposta a essas perguntas.
Sobre os problemas de instabilidade, em nota, a Polícia informou que o “sistema funciona normalmente, de maneira efetiva”, mas explicou que, “para garantir o bom funcionamento, o sistema passa por manutenções programadas que podem, eventualmente, resultar em algum tipo de instabilidade”. (leia íntegra da nota abaixo).
Procurado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) disse que o sistema PCnet é de uso e gestão exclusiva da Polícia Civil de Minas Gerais, “sem qualquer acesso direto pelas unidades judiciárias”. “Assim, os assuntos relacionados ao funcionamento dessa plataforma devem ser tratados diretamente com a Polícia Civil e com o delegado responsável pela gestão do software”, diz a nota enviada à reportagem.
Governo admite problemas
Durante a solenidade de entrega da nova sede da Delegacia do Turista, o vice-governador Mateus Simões (NOVO) comentou as críticas feitas pelo Sindicato dos Escrivães e Oficiais Investigadores de Polícia de Minas Gerais (Sindep/MG) às dificuldades enfrentadas pelos servidores com o sistema PCNet, da Polícia Civil.
“Nós temos um desafio grande. O PCNET, quando foi criado, era o que havia de mais moderno no Brasil. Infelizmente, o tempo passa para todos, também para o sistema. E a gente hoje tem necessidade de encarar esse desafio, que demanda não só alguns milhões, são centenas de milhões de reais de investimento para que a gente possa reestruturar o sistema”, diz Mateus.
Simões condicionou as melhorias à aprovação, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), do Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag). “A gente poderia ter um pouco mais de velocidade se houvesse mais dinheiro disponível. Toda vez que alguém conversa comigo, a gente acaba chegando na questão financeira. Por isso a importância do Propag, por isso todos os dias o meu pedido para que a Assembleia possa votar o que está lá esperando votação para que a gente possa seguir um novo caminho para a Minas Gerais a partir da adesão no ano que vem”, completou.
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