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O professor de História da Arte Cledson Ponce ressalta o valor das conexões urbanas, como as rodovias BR-116 e BR-324 e o terminal rodoviário, que materializam esse papel de entrecruzar caminhos. Para ele, a rodoviária tem valor simbólico não apenas para a cidade, mas também para sua trajetória: ali conheceu o painel de Lênio Braga, tema de sua dissertação.Já o publicitário e jornalista José Carlos Pedreira, o Zé Coió, vê a identidade de Feira também nas festas. Nascido na vizinha São Gonçalo dos Campos, mas morador de Feira desde os seis anos, ele participou da realização de 32 eventos diferentes. Nenhum, porém, lhe deixou mais saudade que o Caju de Ouro, baile pré-micaretesco criado em 1975 que se tornou o maior da cidade, reunindo artistas nacionais e a sociedade feirense. “Feira sempre foi muito festeira. Hoje é que é menos”, diz com nostalgia.Na perspectiva contemporânea, a professora de literatura Alana Freitas enxerga na vida cotidiana elementos que também contam a história da cidade: o anúncio de “Milena do Beiju, sobrinha de Raimunda”, do “acarajé gospel da Leide”, o sorriso da vendedora de amendoim da Queimadinha, seu João, caminhoneiro viúvo que se tornou motorista de aplicativo, muros com ofensas às “putas” e aos “cornos” que jogam lixo fora do lugar… Para ela, são detalhes como esses que compõem a narrativa da cidade.A história de Feira é assim, feita de grandes obras e pequenas memórias, de nomes ilustres e personagens anônimos, de mudanças urbanas e marcas afetivas.Obra de arte retrata alma nordestinaEntre chegadas e partidas, um sertão inteiro está preservado em azulejos na rodoviária de Feira de Santana. O painel de Lênio Braga, inaugurado em 1967, é mais do que uma obra de arte: é um retrato da história, do folclore e da alma nordestina, criado para marcar a identidade da cidade e receber visitantes e viajantes com imagens que falam de pertencimento.Para compreender o painel, é preciso voltar no tempo. Feira de Santana nasceu do movimento dos tropeiros que atravessavam a fazendas, transformando o ponto de descanso em feira de gado e, depois, na famosa feira livre.Já nos anos 1960, em um cenário de grandes mudanças com a construção das BRs 116 e 324, abertura da Avenida Presidente Dutra, instalação do Centro das Indústrias e da Universidade Estadual (Uefs), o governo da Bahia decidiu transferir a rodoviária para longe do centro do município e convidou o artista paranaense Lênio Braga para criar uma obra que simbolizasse a cidade.Formado em Belas Artes, em São Paulo, Lênio já vivia na Bahia desde os anos 1950, período do movimento do Cinema Novo, de Glauber Rocha, da produção literária de Jorge Amado e da musical de Dorival Caymmi. Multitalentoso, dominava pintura, escultura, fotografia e outras técnicas.Para o painel de Feira, fez uma parceria com o ceramista alemão Udo Knoff, que moldou artesanalmente cada peça de cerâmica. Sobre elas, Lênio pintou as figuras e cenas que, depois, foram queimadas no próprio ateliê para fixar as cores.Antes de iniciar a pintura, Lênio, que morava em Salvador, frequentou semanalmente a feira livre de Feira de Santana. Observava personagens, barracas, arranjos de mercadorias, tipos humanos. Fazia croquis, rabiscos e anotações, misturando-se à rotina e absorvendo o espírito do lugar. Esse mergulho deu origem a uma obra dividida em oito módulos, que tem a feira livre como tema central, mas também representa todo o sertão nordestino.O painel reúne figuras históricas, como Maria Quitéria e Antônio Conselheiro, e lendas populares, como o Bicho do Tomba. Lampião aparece em um cordel intitulado “A chegada de Lampião no inferno”. Há frases de caminhão, cenas de crenças e festas, as boiadas e contrastes marcantes, como a figura de um menino com cata-vento em uma extremidade e a de um homem armado na outra, simbolizando a tensão entre inocência e violência.Segundo o professor de História da Arte Cledson Ponce, que dedicou sua dissertação de mestrado ao painel, essa é a obra mais grandiosa de Lênio. “O primeiro passo para sua preservação foi o tombamento pelo IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), em 2001. O próximo é mantê-la viva, mesmo que um dia a rodoviária mude de lugar”, afirma.Apesar da imponência, muitos que passam pela rodoviária não conhecem a história do painel. A instrutora de Pilates Cassiana Carneiro, de Riachão do Jacuípe, é uma delas. “Sempre achei bonito, mas não sabia o que significava. Depois de ouvir a explicação do professor Cledson (no momento da entrevista), a sensação que fica é de pertencimento. Feira conecta cidades, mistura culturas, e o painel mostra isso. Deveria ter um telão aqui contando a história para todo mundo ficar sabendo,” sugeriu.Restaurado em 2019, o painel de Lênio Braga permanece como um marco cultural de Feira de Santana, guardando em cores e formas um pedaço vivo do sertão. Uma obra que não é apenas para ser vista, mas para ser entendida e, assim, preservada para as próximas gerações.Carne de bode tem lugar garantindo na mesa sertanejaNa mesa sertaneja, a carne de bode tem lugar cativo e, em Feira de Santana, é mais que um prato: é tradição, identidade e memória afetiva. Quem chega à cidade logo descobre que o aroma do bode assado, da buchada ou do sarapatel faz parte da paisagem tanto quanto o vaivém do comércio. Não é exagero dizer que o bode é patrimônio não oficial da culinária local.Uma das guardiãs desse sabor é Luciene Nolasco, proprietária e cozinheira de um restaurante tradicional especializado na iguaria. Sua relação com a carne de bode começou em Jeremoabo, no sertão baiano, ajudando o tio, dono de um restaurante. “Eu prestava atenção em tudo: como ele retalhava, como manejava a carne. Sempre gostei de cozinhar e sempre fui curiosa”, relembra.O destino, ou talvez o instinto, trouxe Luciene para Feira de Santana nos anos 1990. Já casada e com filhos, viu o marido desempregado e ouviu dele um incentivo direto: “É o que você sabe fazer, é o que nós vamos fazer”. Nascia ali o restaurante, que já completou três décadas de portas abertas. Desde o início, a carne de bode foi o carro-chefe do cardápio, com destaque para o pernil desossado, campeão de pedidos. Mas a lista é farta: costela, calabresa, “mistão”, sarapatel e buchada também estão entre as opções.Luciene tem regras de ouro para garantir sabor e maciez: “O animal deve ser abatido novo e, se não for, precisa ser castrado. Se for velho, passa o ranço da carne de bode. E tem que cuidar da temperatura, manter refrigerado certinho”. O resultado dessa atenção é comprovado pela casa sempre cheia, com redução apenas nos meses de férias escolares, quando muitas famílias viajam.O gosto pelo bode, no entanto, já foi mais restrito. “Há 30 anos, tinha gente que tinha certo ‘preconceito’. Mas os estudos mostrando que é saudável mudaram isso. Nasci e me criei comendo bode. Aqui no Nordeste é cultura”, afirma Luciene. Hoje, o quilo da carne de bode em Feira de Santana custa, em média, R$ 36.Quem frequenta restaurantes especializados confirma a paixão. O policial rodoviário federal Édimo Pires, morador da cidade há mais de 50 anos, coloca a carne de bode entre seus alimentos favoritos. “A gente está no Portal do Sertão. O bode é comida típica daqui, e de excelente qualidade”, diz, citando o escritor Euclides da Cunha: “‘O sertanejo é, antes de tudo, um forte’ e a carne de bode tem parte nisso”.Nem todo mundo foi fã à primeira garfada. Mércia Cleide Mota, esposa de Édimo, admite que demorou a gostar. “Às vezes, o lugar que eu ia não era o que eu esperava. Até experimentar no lugar certo. Hoje, adoro. Quem não gosta, não sabe o que está perdendo.”O fisioterapeuta Yves Moreno, que trocou Salvador por Feira há dois anos, também tem raízes no sabor: “Aprendi a gostar de carne de bode em Barreiras, quando ia nas férias. Aqui em Feira, fiquei fã de carteirinha. E a assada é minha favorita”.Já a jornalista Emanuele Sena herdou o paladar do pai. “Ele sempre gostou, então foi natural. É extremamente gostosa, suculenta. Se vejo alguém falar que não gosta, digo: ‘coma de novo, mais um pedaço’. Não tem condição não gostar”.De geração em geração, o bode segue firme no cardápio e no coração feirense. Mais do que alimentar, ele conta histórias: de família, de resistência, de criatividade. Em cada prato, há tempero, cuidado e um pedaço da identidade do sertão baiano.Pernil de bodeO pernil de bode desossado é o carro-chefe da cozinha de Luciene Nolasco. Simples no preparo e rico em sabor, ele traduz a tradição da carne de bode servida à moda de Feira de Santana.Receita – Pernil de bode desossadoRendimento: 4 porçõesIngredientes900 g de pernil de bode (para 4 pessoas) ou 500 g (para 2 pessoas)Sal a gostoSementes de coentro a gosto, levemente amassadasModo de preparoPegue o pernil inteiro, desosse, limpe e abra em forma de manta (bife mais alto).Tempere com sal e sementes de coentro amassadas.Leve ao fogo para assar no ponto desejado: malpassado, ao ponto ou bem-passado.Sirva com os acompanhamentos de sua preferência.