Durante o Maio Laranja* deste ano, a hashtag #saberliberta e números sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes foram projetados na fachada do Congresso Nacional, em Brasília. Foi bonito de se ver os letreiros coloridos lembrando a todos nós um assunto tão importante. Apareceu na televisão, nos sites, nas redes sociais, mas pouco se falou a respeito entre os brasileiros. O assunto indigesto tem sido mantido na intimidade das famílias, nas conversas trancadas nos quartos e, se possível, guardado debaixo do tapete.
Mas, levantaram o tapete. Na verdade, o influenciador Felca sacudiu o tapete, e espalhou o lixo na sala. Nunca, até agora, se viu tamanha mobilização envolvendo governo, senadores, deputados, ONGs e empresas por leis que protejam as crianças e adolescentes nas redes.
O que grande parte dos brasileiros não sabe, mesmo porque a maioria preferia não acompanhar o assunto, é que há mais de seis anos nasceu o Instituto Liberta que tenta jogar luz sobre o problema. Foi o Liberta que, em 2022, fez uma passeata virtual tentando quebrar o silêncio entre as vítimas. Foi o Liberta que estimulou e deu suporte às pesquisas que mostraram que as crianças e adolescentes somam o maior número de vítimas de estupros no país.
E, à frente do Liberta existe uma mulher que estuda, fala, briga, brada e batalha todos os dias para mudar essa realidade. Luciana Temer, 56 anos, mãe do Pedro e da Marina, advogada, mestre e doutora em Direito Constitucional, matéria que ensina há 33 anos na PUC-SP. Ex- secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo (governo Geraldo Alckmin) e ex-secretária da Assistência Social da Prefeitura de São Paulo (governo de Fernando Haddad), além de delegada da Polícia Civil.
Tendo uma carreira que percorreu tantos caminhos diferentes, como é que a Luciana pegou essa rota de coibir a violência sexual contra crianças e adolescentes?
Como secretária de Assistência Social de São Paulo, entre 2012 e 2016, Luciana desenvolveu um projeto na cracolândia da Luz que teve como parceiro o Grupo Cyrela, do bilionário e filantropo Elie Horn. Neste ponto, precisamos contar uma vivência do próprio Horn. Cerca de 10 anos antes de conhecer Luciana, ele tinha lido uma reportagem de Gilberto Dimenstein sobre prostituição infantil e nunca mais se conformou em não fazer nada contra.
Com o fim do mandato de Fernando Haddad e Luciana deixando a secretaria, Elie Horn pediu a ajuda dela para a construção e implementação de um projeto contra a exploração sexual de meninas. A experiência como delegada de mulheres, fez outra sugestão: “Doutor Elie, por que o senhor não coloca o seu dinheiro para o enfrentamento de uma violência mais estrutural, que é a violência contra a mulher?”. Horn respondeu: “Um: porque Deus me deu essa missão e tenho que cumprir. Dois: porque ninguém fala disso!”
Ele tinha razão. Falar “disso” era importante. Mas, Luciana também tinha seu quinhão de acerto ao querer olhar para a situação de forma mais ampla. Então, eles “meiaram” a razão. Eles concordaram em criar o Instituto Liberta com o objetivo de disseminar informações sobre a exploração e sobre todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes!
O desafio de colocar o assunto indigesto na roda de conversas está no DNA do instituto, que passou os primeiros anos estimulando empresas, educadores e a mídia a falarem do assunto, ao mesmo tempo que provocava e colaborava com a geração e análise de dados. Luciana aliou-se a parceiros como o Fórum de Segurança Pública, o mais conceituado repositório de informações sobre a segurança no Brasil, para tentar entender melhor quantas e quem eram as vítimas.
Em 2019, pela primeira vez, com participação de Luciana, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública separou estupro de estupro de vulnerável e o país soube que 57,3% das vítimas tinham menos de 14 anos. “A partir daí temos esse cuidado ano a ano. Hoje, 64,1% de todos os estupros registrados são contra menores de 14 anos. E se você puxar essa régua até menores de 18 anos, dá 75% de todos os registros de estupros no país. Ou seja, quem é estuprado no Brasil é criança e adolescente”, destaca.
Esse esboço do cenário permitiu ao Instituto Libertas iniciar ações mais voltadas ao público em geral a partir de 2022, ano em que realizou uma grande “passeata virtual” com adultos que tinham sido vítimas da violência sexual quando crianças. A campanha, batizada de #agoravcsabe, teve como meta estimular a quebra do silêncio, trazer a conversa para o meio da sala, retirá-la debaixo do tapete. Milhares de homens e mulheres aderiram à ideia e gravaram o vídeo dizendo “Eu fui vítima e agora você sabe!”
Entre os milhares, há que se destacar que 21 participantes cumpriam pena por abuso de menores. Como eles foram parar ali? Corta para o período que antecedeu a campanha e a Luciana fez várias palestras, para professores, empresários, colaboradores de grandes empresas e presidiários.
Uma dessas plateias foi composta por 50 presidiários abusadores de crianças. No final, um deles compartilhou sua experiência. Aos nove anos tinah que assistir o padrasto e mãe transando “para aprender a ser homem”. Ao final, uma pergunta: “Doutora, isso foi violência sexual?”. Sim, ele tinha sido uma vítima e agora ele e todos sabiam. Outros detentos criaram coragem para contar sobre as violências sofridas na infância. Ao final, 21 quiseram participar da passeata virtual.
De volta ao presente, em que provocados por um influenciador digital, todos falam sobre adultização das crianças, Luciana alerta para olharmos as muitas nuances do problema. “A violência sexual virtual é uma ramificação de todas as violências sexuais sofridas por crianças e adolescentes”, avisa, ao mesmo tempo que reconhece que o tsunami Felca Felca preparou o solo para falar de todos os abusos sexuais contra esse público, como sempre sonhou.
Diante de um terreno fértil, basta jogar as sementes. Desde que o assunto ganhou espaço, com apoio de Horn, Luciana reuniu empresários para falar sobre o até então assunto indigesto. Ela também voou até Brasília e foi ao congresso falar a respeito e, menos de uma semana depois, falou para diretoras de grandes companhias em um evento do Valor Econômico. A receptividade das empresárias foi tão grande, que virou capa do jornal. Mais um gol de placa nessa missão de colocar o tema no meio da sala, porque uma reportagem de destaque num dos mais importantes jornais do país é outro jeito de falar.
O que aconteceu na palestra dentro do presídio, a adesão à passeata virtual, o letreiro na fachada do congresso e os empresários e as maiores CEOs do Brasil pararem para ouvir o Instituto Liberta podem ser comparados ao que chamam de efeito liberação. Esse fenômeno é percebido quando, durante uma aula ou palestra, uma pessoa quebra o silêncio, reduz a inibição do grupo e cria um ambiente seguro para que outros se manifestem, promovendo a participação coletiva.
É esse “barulho” que a Luciana buscava (e ainda busca) porque, desde o início, se ela tinha alguma certeza é que era urgente falar mais sobre o assunto. “Precisamos discutir exaustivamente, rastrear o que acontece desde o momento da denúncia e descobrir as lacunas, para acabarmos com todo tipo de violência sexual contra as crianças e adolescentes”, resume a diretora presidente do Liberta.
“O que eu quero? Fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil com consciência para gerar esse movimento, para pressionar discussões e soluções e construção de política pública para a questão da violência sexual infantil”, ela encerra.
Encerramos também, com vontade de ouvir mais, aprender mais e contribuir mais para algo que sempre afetará a todos. Mas continuamos, e você pode vir junto com essa mulher e o Instituto Liberta para sabermos como podemos ser soma nessa luta! Siga essa mulher em @institutoliberta
(*) O Maio Laranja é dedicado a alertar a população e incentivar a denúncia de casos e o dia 18 é a data escolhida para a marcar a luta por um país mais seguro para a infância.
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